Um mundo em que o plano astral está presente e faz parte do quotidiano parece afastado da nossa realidade.
No entanto, em diversos contextos históricos, geográficos ou mesmo em mundos criados pela imaginação artística, a existência de criaturas astrais, num plano coexistente e em estreita relação com o nosso, é um dado assumido, uma presença silenciosa mas inquestionável.
Na animação japonesa (anime), vários são os exemplos de um tratamento singular deste tema, criando cenários de inigualável beleza e profundidade, mundos de uma realidade dinâmica, abundantes em significado e magia.
Proponho que me acompanhem numa viagem sobre uma outra perspetiva do mundo e por diversos exemplos da animação japonesa.
I. Mundo Astral
O mundo astral é uma determinada dimensão ou plano do Universo que, não obstante interpenetrar e englobar o mundo físico, escapa aos nossos métodos ordinários de observação, pois é constituído por matéria de uma natureza muito diferente. Pode ser entendido como a matriz da matéria física.
É no plano astral que habitam os espíritos da natureza (elementais), seres que não são sobrenaturais, mas que, por existirem na sua dimensão, não são percetíveis a todos. Mas mesmo não sendo percetíveis, não estão longe da consciência e da mítica das sociedades humanas. São conhecidos como “seres fantásticos”, associados à idade média e à tradição celta. São os gnomos, fadas e duendes da terra, as sereias, ondinas e ninfas da água, os silfos e elfos do ar, as salamandras do fogo.
É no plano astral que habitam os devas do hinduísmo, que correspondem aos anjos celestiais ocidentais, os responsáveis pelos espíritos da natureza. É também aqui que encontramos os youkai japoneses.
Estes seres chamados pelo moderno esoterismo “elementais”, pelo hinduísmo “devas” e pelo cristianismo “anjos”, são tão variados e diferentes entre si como um cipreste e um trevo, não deixando estes por isso de ser vegetais. Jorge Angel Livraga, 2008
II. Youkai
A palavra é formada por you e kai. You é comummente traduzido como “atraente”, “sedutor”, “encantador”, características atribuídas ao feminino. Kai significa “mistério”, “suspeita” e “aparição”.
Literalmente, juntando you com kai, teríamos a designação para uma jovem mulher morta e misteriosa, geralmente bela e sedutora, que surge inesperadamente. Sendo essa a origem, a palavra youkai é, na verdade, um termo genérico para designar todas as formas de entidades e de criaturas entendidas como sobrenaturais. Ou seja, youkai é um termo próximo de “elementais”.
Estes seres misteriosos, com as mais diversificadas aparências, desde humanos mascarados a fuligem saltitante, são presença constante na animação japonesa, contribuindo para a construção de um mundo mágico.
III. Anime
O termo anime é simplesmente a abreviatura do inglês animation. No Japão, é utilizado para designar qualquer tipo de animação. No entanto, para os ocidentais refere-se especificamente à animação nipónica. Esta é a aceção utilizada neste texto. O anime não é um género, mas um meio de produção de qualquer género (ação, aventura, comédia, romance, etc.).
No entanto, há animação noutros pontos do planeta e não nos referimos a nenhuma delas com um termo específico. Alguma coisa o anime tem que o torna diferente.
Sendo uma forma cultural extremamente popular um pouco por todo o mundo e um pouco em todas as faixas etárias, não deixa de ter uma sólida base artística, construída sob altas tradições culturais. Denota influências de artes tradicionais japonesas (por exemplo kabuki e impressão em blocos de madeira), como também recorre a tradições artísticas do cinema e fotografia globais do século XX.
Mas não é só na técnica que o anime se aproxima de uma sublime forma artística. Os assuntos que explora, com frequência de formas surpreendentemente complexas, podem ser familiares, tanto para leitores de literatura (dentro ou fora do Japão), como para o público do cinema de autor contemporâneo.
Os textos de anime captam audiências ao nível mais básico de entretenimento mas, muitas vezes, em simultâneo, também movem e provocam a assistência noutros níveis, estimulando a pensar em determinadas problemáticas, intemporais ou específicas da contemporaneidade. A sua faceta de fenómeno pop consegue alcançar um variado leque de audiências de um modo que outras formas artísticas têm dificuldade.
A animação japonesa merece séria consideração como uma forma de arte narrativa, além do seu cativante estilo visual. É um meio narrativo, no qual diversos elementos visuais se combinam, proporcionando uma matriz de estruturas genéricas, temáticas e filosóficas, para produzir um mundo estético único. Esta matriz permite criar mundos particularmente arrojados, provocativos e trágicos, cenários para enredos com um grau de complexidade muitas vezes superior ao da indústria cinematográfica norte-americana.
Este arrojo, em diversas vertentes, é uma das características que diferenciam o anime de outras formas de animação. Por exemplo, em termos de humor, romance, nudez e papéis de género, o anime diverge nitidamente do senso normativo ocidental, confundindo, questionando e até chocando.
Um outro traço distintivo prende-se com a noção japonesa de que a ficção ocupa o seu próprio reino. As audiências japonesas não exigem necessariamente realismo estrito, nem mesmo para histórias encenadas em ambientes realistas.
Mas o anime, enquanto forma narrativa que desafia a assistência a questionar, interpretar e olhar o mundo de outras formas, é como um reflexo da natureza imensamente rica e complexa da religiosidade do Japão, também ela uma forma de questionar, interpretar e olhar o mundo.
O Japão é um país com uma história religiosa mista, desde a religião nativa orientada para a natureza do Shinto à primeira importação do budismo chinês misturadas com as orientações sociais do Confucionismo. Ao contrário de muitos países nos quais as tradições individuais permanecem estritamente separadas, no Japão todas estas tradições são combinadas numa miscelânea de cerimónias, ideias e comportamento. Robin E. Brenner, 2007
De resto, o anime tem sido estudado pelas ciências sociais por diversos motivos. Um deles é o facto de, falando de globalização, representar um exemplo de contra-corrente. A tendência é para que produtos ocidentais sejam adotados no oriente. Um outro motivo prende-se com a postura ousada no tratamento de assuntos tabu (por exemplo a sexualidade, o incesto e a morte). Também no âmbito do feminismo não pode ser ignorado, pois frequentemente desconstrói os papéis de género, e desenvolve o papel do feminino… E poder-se-ia continuar a assinalar focos de interesse, mas compreender que, ao falar de anime falamos, em simultâneo, de um fenómeno de cultura pop, de um movimento artístico, estético e filosófico, de um meio que permite tornar visível o mundo astral, bastará por agora.
O anime não é, meramente, um instrumento da fantasia, que responde, cresce e se alimenta com os desejos; não é somente uma fuga da realidade. O anime consegue ser um instrumento da imaginação, dá forma e evoca arquétipos, aprofundando a vivência e a noção do real.
IV. Explorar
Conhecidas as premissas, planeada a viagem, podemos começar, finalmente, a explorar as principais atrações.
Um aspeto interessante, que encontramos em diversas obras de animação japonesa e que nos fazem questionar a simples realidade que é o nosso quotidiano, é o facto de, em cenários realistas, os youkai aparecerem como apenas mais um elemento. Notáveis neste aspeto são as histórias criadas por Yuki Midorikawa, como o filme Into the Forest of Fireflies’ Light (2011) ou a série Natsume: O Livro dos Amigos (2005-2017).
O filme conta o crescimento de uma bela história de amizade e amor entre uma menina, mais tarde, jovem rapariga e um estranho de máscara que habita a floresta perto da casa onde passa férias, que nada mais é do que um youkai. Este terá sido o ponto de partida para a série Natsume, sobre um rapaz com a habilidade de ver youkai. O objetivo da autora terá sido criar histórias com elementos sobrenaturais que despertem a imaginação, da mesma forma que a sua se despertava com as histórias sobre youkai e deuses locais da zona rural onde cresceu.
A naturalidade da transparência do véu entre o nosso mundo, físico, e o mundo dos youkai, astral, é igualmente retratada, embora de uma outra forma, no anime Mushishi (2005-2014). A história aborda a interferência dos mushi na vida dos humanos, seres visualmente representados como entidades etéreas, luminosas. Está implícito que existem muito mais formas de vida do que plantas, animais, fungos ou bactérias, tais como os mushi que serão uma das mais antigas.
Uma outra obra particularmente sublime, enquanto exemplo do que tem vindo a ser dito, é o filme O Conto da Princessa Kaguya (2013), do estúdio Ghibli, realizado e escrito por Isao Takahata. É uma adaptação do “Conto do Cortador de Bambu”, considerada a mais antiga narrativa japonesa existente.
A personagem principal vem da lua para experienciar a vida na terra e, mais tarde, regressar à sua casa. Simbolicamente, este enredo pode ser visto como a viagem da alma humana, como a encarnação da alma para adquirir karma, desencarnar e continuar neste ciclo.
Do mesmo estúdio (Ghibli), vêm alguns dos melhores, mais ricos e transcendentes filmes da animação japonesa, criados por Hayao Miyazaki.
Os seus filmes são normalmente protagonizados por personagens femininas, sensíveis, astutas e perseverantes, e/ou crianças, destemidas e sonhadoras. A sua obra é revestida de personagens únicas, de cenários mágicos e de significados morais e éticos, que vão muito para além das imagens que nos chegam, constituindo e proporcionando uma reflexão sobre a humanidade. Não podem deixar de ser referidos, no tema deste artigo, O meu Vizinho Totoro (1988), Ponyo à Beira Mar (2008) e As Viagens de Chihiro (2001).
Totoro é único só pelo cenário, pelo contexto que cria. Quase toda a história decorre numa pequena habitação rodeada por uma floresta recheada de fauna, flora e youkai. Entre os diversos habitantes da floresta está Totoro, personagem icónica, parte deste estranhamente credível universo, em que criaturas como ele coexistem com a modernidade.
Ponyo traz ao grande ecrã uma princesa em forma de peixe-dourado que deseja tornar-se humana. Influenciado por A Pequena Sereia (Hans Christian Andersen), apresenta-se, como habitual no trabalho de Myazaki, infundido num misto de magia com crítica às eventuais forças de oposição que impossibilitam o desenvolvimento autónomo e livre dos mais jovens, alimentando os seus sonhos. A interpretação simbólica da pequena sereia é também aqui aplicável, a conquista heroica e a evolução da humanidade.
Este arquétipo de conquista e evolução está também demarcadamente presente em As Viagens de Chihiro. Este filme apresenta um paralelismo acentuado com a história de Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll), numa viagem pelo reino dos espíritos e para além das fronteiras padronizadas pela sociedade. Para além disso, trata-se de um retrato crítico e satírico da sociedade japonesa.
Tal como Alice no País das Maravilhas, representa uma jornada espiritual, sendo a temática principal do filme a viagem liminar que a protagonista, Chihiro, realiza até ao reino dos espíritos, como um rito iniciático. Esta passagem representa a transição da infância até à fase adulta, mas também a busca heroica da alma humana na conquista de si mesma. Mas este é só um breve aflorar da interpretação de uma das mais ricamente simbólicas animações japonesas.
Através de alguns animes, muitos mais do que os exemplos apresentados, podemos viajar para além da realidade aparente e rígida que nos envolve, ponderando a existência de um mundo mais amplo e profundo. Através do anime, as paredes que nos rodeiam tornam-se frágeis, dando lugar a cortinas de tecidos cada vez mais subtis, até que, através deles, conseguimos vislumbrar seres de uma dimensão que não é a nossa, mas que a interpenetra.
Carolina Gomes
Nova Acrópole Viseu
Referências
Aoi Kuwan. 2010. Criaturas Sobrenaturais – Parte 1: Youkai. 2010.
Jorge Angel Livraga. 2008. Os Espíritos da Natureza.
(Edições Nova Acrópole)
Lisa Marie Cooper. The history of Anime.
Lucas Brandão. 2017. Hayao Miyazaki, da Fantasia à Realidade.
Robin E. Brenner. 2007. Understanding Manga and Anime.
(Libraries Unlimited)
Susan J. Napier. 2005. Anime: from Akira to Howl’s Moving Castle.
(St. Martin’s Press)