Análise à Luz de uma Simbologia Transcendental


Introdução
Este trabalho teve como base dois vetores: o primeiro foi o facto de o trabalho de Lewis Carrol ser, por si só, um corpo laboral envolto em mistério e simbologia, muito mais se o estendermos à vida do próprio autor – Charles Lutwidge Dogdson – que, por intermédio de charadas e contos nos fez descobrir uma das obras mais vendidas do mundo da fantasia e, igualmente, da literatura juvenil e adulta – Alice no País das Maravilhas. Contudo, considerar um mundo de maravilhas a vida do autor será apenas um sonho idílico, já que, por intermédio de uma análise cuidada (e um pouco freudiana, confessamos) do autor, descobrimos sonhos reprimidos, pulsões fortes, simbologias de desejos proibidos e uma grande dança entre o divino e o maligno. O segundo vetor foi a própria obra e a sua simbologia transcendental, muito pouco analisada e, por vezes, até negligenciada. Negligenciada, porque a análise freudiana e onírica do Eros e do Thanatos ocupa a maior parte das obras de análise do conto infantil e, por essa mesma razão, perdem-se outras análises, deixando apenas à vista a polémica e deixando a obra numa espécie de Maya, sala produtora de ilusões. Todavia, devo partir de um princípio empírico factual para depois o mergulhar numa análise simbólica transcendental, sem que para isso perca a lucidez. Analisarei a obra por aquilo que a obra se me apresenta, um conto baseado ora na imaginação ora na fantasia, uma obra com uma intensa ligação à realidade e uma obra que, ao contrário da maior parte das obras infantis, não tem uma moral direta, mas sim uma lição obscura, obscura não por ser negativa ou, de alguma forma, maligna, mas sim obscura por estar envolta em muitos véus. Todavia, eis que a vida de Lewis Carroll não é mais do que isso… uma vida envolta em véus.

Autorretrato de Lewis Carroll. Domínio Público.

1. O Autor – Reflexão Crítica da Vida e Obra

Lewis Carrol nasceu Charles Lutwidge Dawson na Inglaterra Vitoriana e rocambolesca de princípios coordenados com uma aristocracia de pano de fundo em quase todos os retratos que obtemos da mesma época. Nascido no ano de 1832, filho de uma família de militares, Charles era um dos onze filhos que nasceu na mesma casa. De uma família severamente conservadora, recolhe o hábito de leitura e a prática da religião. Nos primeiros anos de vida cresce e estuda em casa, habituado às regalias intelectuais, provavelmente demasiado adultas para os padrões de hoje e, por isso, a sua biblioteca torna-se o primordial amigo durante a infância. Recordemos que, antes de Freud e da maior parte dos psicanalistas o defenderem, a infância não era uma parte da vida tida em conta pela sua importância no desenvolvimento posterior e, por essa mesma razão, a meninice era vista como uma miniatura da vida adulta, logo uma criança vestir-se-ia de forma formal, leria livros maduros e praticaria maneiras igualmente adultas, como um adulto em miniatura. A maioria das crianças seriam, possivelmente, um espelho exato da personagem do Eusebiozinho no livro Os Maias de Eça de Queirós. Todavia, ainda que os padrões de vida portugueses devessem muito à “britanicidade” do cosmopolitismo, Charles Dogdson não tem, nem de perto nem de longe, uma vida rigorosamente comum. Aos 12 anos é enviado para (hoje algo inexistente) uma Escola de Gramática, onde aprendeu os fundamentos da escrita (talvez devido ao seu amor aos livros), mas também desenvolveu – pelo que me parece – um raciocínio lógico profundo em relação às letras. Em 1850 – com apenas 18 anos – inscreve-se na Universidade de Oxford e, para espanto de muitos, desenvolve uma extraordinária relação com a Matemática e a Lógica e durante alguns anos o seu interesse parece ter revolvido ao longo de dois grande temas: o estudo aprofundado da disciplina citada e o aprofundar da sua relação com a Igreja Anglicana, eventualmente chegando a Diácono. Está espelhado no mundo de Alice a sua própria caricatura pela personagem do Dodo, com quem o próprio Lewis Carroll se identificava – os modos conservadores, o olhar embaciado pela pompa e circunstância, o seu raciocínio matemático sem compreender a inocência de Alice.

Exatamente a partir deste momento, dos 25/30 anos de Lewis Carroll, profundas mudanças se iniciam na sua vida, mudanças essas que, de algum modo, constrangeram a sua realidade e alteraram também a produção matemática da sua mente. Como Charles Dogdson não deixou análises sobre essas mudanças e os seus diários – alguns perdidos e desaparecidos (curiosamente aqueles que dizem respeito aos anos de 1853 e 1863, quando o autor tinha entre 21 e 31 anos) – são anotações muito lineares da sua vida – com quem jantou, com quem cerimoniou, o que jantou, quem fotografou, que tempo fez – e, portanto, enfadonhas e sem grande “sumo” psicológico, teremos que ver “através das linhas” para compreender que alma se fundiu entre os 21 e os 31 anos e que louco ou génio surgiu depois. Sabemos, então, que entre os 21 e os 31 anos (e posteriormente), Lewis Carroll iniciou uma nova paixão – o trabalho fotográfico. Embrenhou-se cada vez mais com três ou quatro famílias que, poderíamos dizer, tinham algum tipo de poder aristocrático ou de influência política, desenvolveu uma relação ambígua com a religião e continuou a amar a Matemática, mas, desta vez, os números passaram a ser uma espécie de veículo para as mensagens subliminares (como tudo o resto). Desta forma, cabe-nos então dizer que Lewis desenvolveu relações com três importantes famílias: a família Macdonald, a família Hatch e a família Liddell. Estas famílias que permaneceram no ângulo de circulação de Charles durante mais de 20 anos tinham em comum três coisas: influência a nível político e social – por exemplo Charles Macdonald já era um conhecido contador de histórias para crianças e Edwin Hatch era um famoso teólogo inglês – desenvolvimento de uma vida intelectual gratificante (que compensava a falta de sentimentos do diácono matemático) – todas as famílias eram estudadas – e, por último, todas as famílias tinham crianças do sexo feminino que eram o objeto de estudo fotográfico e de relação especial de Dogdson – as irmãs Macdonald, as irmãs Hatch e as irmãs Liddell – eventualmente sendo algumas destas crianças inspiração para o conto que estamos analisar. Em particular, Alice Liddell, como a própria Alice do país das maravilhas.

Alice Liddell (foto) foi a inspiração de Carroll para criar Alice no País das Maravilhas. Domínio Público.

Durante o período de 1850 e 1870, Lewis desenvolve um extraordinário trabalho de fotografia que, aliás, será, juntamente com a Matemática e até 1865 (data da publicação de Alice no País das Maravilhas), o único trabalho pelo qual Lewis será reconhecido. Graças a uma análise exaustiva das fotografias de Lewis Carrol (hoje, divulgadas na internet de forma gratuita e que o autor deste artigo aqui o remete), podemos retirar algumas conclusões assaz interessantes sobre a sua mente, não caindo no erro de as analisar à luz dos ideais morais de hoje. Em relação ao conjunto fotográfico do trabalho de Lewis Carroll, podemos advogar três coisas: a) Uma escolha predominante por raparigas com idades compreendidas entre os 7 e os 14 anos de idade, normalmente fotografadas com expressões de adulta, extasiadas com algo, vestidas de forma formal ou, pelo contrário, num ambiente fantástico, idílico e onírico. Estas raparigas tratam-se, maioritariamente, das filhas das famílias supra-mencionadas, mas não exclusivamente; b) O uso de fotografias de estátuas ou bustos de crianças, igualmente fazendo lembrar escultura greco-latina com o uso do nu e do idealismo escultórico clássico da perfeição, harmonia e simetria; c) A preferência, em algumas fotografias, pelo nu e pelo semi- nu. A conclusão que poderei retirar destas fotografias e de outras que, entretanto foram divulgadas, é que Lewis Carroll desenvolveu uma preferência pela Mulher-Criança, ao invés da Mulher, toldando-lhe e distorcendo-lhe os seus sentimentos em relação aos adultos e às mulheres da sua idade que, com certeza, as acharia aborrecidas e demasiadamente dramáticas nos seus interesses comuns. Uma curiosidade observada por mim próprio nas páginas dos álbuns é a demonstração na página 20 do primeiro álbum de uma espécie de figura angelical chamada Ariel, uma divindade presente no Livro de Isaías. Juntamente com um poema (possivelmente escrito pelo próprio Lewis Carroll), Ariel está representada no seu estilo medieval, como um espírito da Água, no entanto, iconograficamente é retratada como uma criança nua, na semi-puberdade, baloiçando esticada numa espécie de lua. Será uma referência à Inocência como elemento divino? À sedução do onírico pela figura da criança? À fuga da realidade?

Podemos, então, desta forma, sugerir, pela análise dos álbuns, o desenvolvimento do ideal de Mulher-Criança, cristalizado com uma criança cujo amor seria platónico, mas saciado pela pureza do seu ser (hoje interpretado como pedofilia). Tal foi uma das criações de Carroll neste período. Por sua vez, nas margens do Tamisa, consumando esta ideia, conta a uma jovem Alice Liddell e às suas duas irmãs, a história de Alice e, anos depois, escreve-a. Ao contrário do que os estudiosos sugerem (que Alice foi o início de uma apoteose na sua vida), as provas indicam exatamente o contrário – o conto foi o fim de uma era. Em 1870 Carrol tem perto de 40 anos, afasta-se das famílias que o acolheram como protetor das suas filhas, corta relações com a família Liddell, os próximos contos que publica não têm tanta aceitação no mercado, continua a desenvolver uma forte ligação com a Matemática e, por fim, com a religião. Os restantes 28 anos da sua vida são vividos tentando publicar o que hoje consideramos como “Non-Sense”: poemas, contos ou histórias (ao jeito de Alice) que não têm uma moral concreta nem uma lição. Representam apenas simbologias de algo maior, mais pessoal e, por vezes, reflexivo de um monstro interno que nos domina. É por isso que, na realidade, contamos a vida de Lewis Carroll antes e depois da publicação de Alice no País das Maravilhas. Em 1880, com 28 anos, Alice Liddell casa. Já há muito que deixa de ser uma musa para Lewis Carroll que, entretanto, compreende algo: a infância está encerrada num período de morte e com o término da mesma também os sonhos terminam não podendo ser mais do que captados pelas lentes de uma câmara, espelhados em fotografias de álbuns poeirentos e expressos em contos e estórias de metáforas com mensagens sublimes e proibidas. Em 1898, aos 65 anos, morre Lewis Carroll, deixando atrás uma vida que, infelizmente, parecerá apenas marcada por um livro que atingiu tanta fama como a própria Bíblia. Resta saber, o que significa ao certo esse livro.

2. A Obra – Alice no País das Maravilhas

Página do título da primeira edição. Domínio Público.

A obra Alice no País das Maravilhas está dividida em 12 capítulos, cada um com menos lógica do que o outro e, na realidade, sem uma ligação. No primeiro capítulo (e talvez o mais importante), Alice cai no buraco do coelho, depois de seguir este animal antropomorfizado por um par de luvas brancas e um relógio. O Coelho Branco (White Rabbit na tradução em inglês) aparece advogando que “estava atrasado”. Expressando curiosidade, Alice deixa Dinah (a sua gata) e persegue o coelho até à toca, caindo por um buraco muito comprido (onde navega de cabeça para o ar e faz muitas observações sobre o que vê). Chega uma sala que dará para uma floresta. Antes de passar pela porta que dá para a floresta, terá que beber uma poção que a encolhe e comer um bolo que a aumenta. Aumentando e diminuindo de tamanho e bastante frustrada com a sua situação instável, não podendo seguir o coelho nem passar pela porta, Alice começa a chorar grossas lágrimas, inundando o espaço. Na próxima cena Alice navega no mar de lágrimas que ela própria chorou, encontrando alguns animais antropomorfizados, como o Dodo (que Lewis diz representar a sua própria pessoa), um rato, ostras, um caranguejo, entre outras personagens. De seguida, Alice volta a seguir o Coelho, chegando a entrar na própria casa dele. Assustada, come um bolo que a faz aumentar de tamanho, levando o Coelho a pensar que ela era um monstro que invadia a sua casa. Rapidamente, o Coelho é aconselhado pelo Dodo a deitar a casa abaixo com um grande incêndio, a fim de expulsar o “monstro”. Não sendo bem-sucedido, Alice acaba por diminuir (através dos famosos bolinhos), mas quando diminui já não se encontra no mesmo sítio. Está na floresta (numa floresta onde as flores cantam) e segue uma onda de fumo. Essa onda de fumo, com várias cores e formas, dará a uma curiosa lagarta, com uma atitude relaxada, fumando um narguilé e libertando o ar em forma de letras e números, enquanto fala de forma expressiva. A solidificação das letras momentaneamente em forma da silaba sonora pronunciada faz a Alice inalar o próprio fumo, como se as palavras entrassem nela. Da floresta do alheamento, dos constantes crescimentos e diminuições, da perda de direção ao encontro de seres estranhos que cantam e dançam músicas e ao som de música sem qualquer tipo de lógica ou nexo, surge, enfim, um curioso gato, chamado o Gato de Cheshire, do qual, normalmente, só se vê os dentes que sorriem com a brancura de uma lua em quarto minguante numa noite sem estrelas. Alice pede-lhe o caminho para encontrar a Rainha de Copas, supostamente a responsável por todo aquele reino fantasmagórico (ou imaginário?), pergunta ou pedido ao qual o Gato responde abrindo um caminho numa árvore, um caminho para um castelo  … de cartas.

Representação original do coelho antropomórfico fictício do primeiro capítulo de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Domínio Público

Já no castelo, e inaugurando aquilo que eu considero a segunda parte do livro, Alice será confrontada com a presença de uma rainha autoritária e de um rei pusilânime, mediante um intermediário agitado, quem mais se não o Coelho que ela própria seguiu e que deu início a esta história. Daí que eu considere este início do fim da história a segunda e última parte. Até ao ponto, a história de Alice passou-se num país de aventuras com várias personagens, mas sempre seguindo uma premissa linear, “onde vai o coelho? Porque está ele com tanta pressa? O que vai ele fazer?”. Agora, como uma flor, os fios narrativos desabrocham e encontramos verdadeiramente a causa da pressa: honrar a rainha com jardins de rosas vermelhas…. Todavia as cartas, quais soldados da Rainha de Copas, tinham-se enganado e descobrem que as rosas existentes são brancas e não vermelhas e logo se apressam a tentar emendar o problema, pintando as rosas. A coisa não funciona e tanto as cartas como Alice são descobertas pela Rainha. A Rainha, dignidade superior no reino criado à sua medida, ao contrário do que se pensou no séc. XIX não representava a realeza britânica, mas sim o carácter patriarcal de determinadas senhoras da aristocracia, sempre prontas a interceder pelo conservadorismo e pelos bons costumes, algo que Lewis Carroll, ao que parece, parecia conhecer num e noutro extremo. Talvez, quiçá, a Rainha de Copas não fosse mais do que a mãe anónima das crianças que fotografou, a noiva ou mulher enfadonha que nunca quis ou as damas de corte que nada mais serviam para Carroll do que para companhia de chatas conversas. Quiçá… mas deixemos isso para a interpretação no capítulo ulterior. À boa maneira britânica e com um ar de desafio, a Rainha propõe um esquisito jogo de cricket, usando ouriços como bolas e flamingos como tacos e colocando as próprias cartas como arcos e balizas. Viciando o jogo, algo que Alice repara, a Rainha vence-a, declarando-se justa vencedora. Alice, enfadada, revolta-se contra a Rainha, levando, depois de algumas peripécias, a uma condenação. Alice seria condenada, tal como as cartas que pintaram as rosas de branco e não de vermelho, a ficar sem cabeça. Mas não antes de um julgamento. Nesse julgamento, que corresponde à penúltima parte do livro, uma parte muito pouco interpretada, todas as personagens da obra que de alguma forma interferiram nas aventuras de Alice, sentam-se no Banco dos Réus, e testemunham contra ela. Temos o coelho e o chapeleiro maluco da cena do chá, as flores, as ostras, a lagarta, o Dodo e muitos outros. Todos, se calhar, menos o Gato de Cheshire, o qual resolve aparecer a meio da audiência para esboçar um sorriso a Alice. O que significará isso? Independentemente do seu significado, sem dúvida superior ou mesmo divinizado na obra, o Gato abre quase sempre as portas para um novo plano, uma transição – é por isso um Mestre. Desta forma, e uma última vez na obra, o Gato abre as janelas para a dimensão real, onde Alice vê Alice a dormir profundamente e antes de ser atacada pelos fantasmas ou pela fantasia e sabendo que seria condenada e antes de o ser, acorda, regressando calmamente a casa. 

Ilustração original de Alice’s Adventures in Wonderland, por John Tenniel, 1865. Domínio Público.

Ilustração original de Alice’s Adventures in Wonderland, por John Tenniel, 1865. Domínio Público.

2 Interpretação à Luz de uma Simbologia Transcendental

Por uma questão de extensão, decidi fazer uma interpretação global da obra que funcionará como reflexão conclusiva e não uma interpretação de cada capítulo, visto que tal seria extremamente descritivo.

A obra Alice no País das Maravilhas, em primeiro lugar, teremos que a classificar como uma obra de amor, sim uma obra de amor fruto de, primeiro, uma grande capacidade interpretativa da imaginação das crianças e, segundo, uma catarse fantasiosa do próprio autor. É uma obra de amor, em duas medidas. Primeiro pelo próprio carinho que o autor teve ao redigir esta obra e pela universalidade dos pensamentos e clichés contidos nela – relembremos que Lewis Carroll escreveu e ilustrou manualmente o primeiro exemplar. Levou um tempo e uma paciência quase sobre-humanas a decidir sobre a apresentação das personagens ora animalizadas ou antropomorfizadas, a aperfeiçoar textos, charadas, poemas, lengalengas, adivinhas, canções, etc. Chegou a fazer desenhos ou estudos para as ilustrações. Essa é a primeira prova do amor contido por esta obra, que nasce, em suma, de outro tipo de amor. Este segundo amor é um amor mais proibido, um amor que leva a fantasias, que cria fantasmas e talvez frustrações (mas tudo isso não passará ainda de especulação), é o amor de Lewis Carroll por Alice Liddell, a quem dedica a obra, a quem lê a obra e a quem oferece a obra. Só algum tempo depois é que a obra passa para a esfera pública e para a publicação massiva e popularidade desmedida que conheceu. No entanto, ficam algumas questões, questões essas que só se poderão prender com o título deste trabalho – … análise à luz de uma simbologia transcendental: em primeiro lugar, qual o objetivo desta obra? Em segundo lugar, não sendo Lewis Carroll um escritor de livros de fantasia infantil como Charles Dickens, qual seria o seu objetivo pessoal? E em terceiro lugar, e mais importante, qual a moral da história de Alice? Na nossa interpretação, a fim de não cairmos num vazio deslindado em palavras, tentaremos responder a estas perguntas.

Em primeiro, qual o objetivo desta obra? Pois bem, na perspetiva de análise da obra em si, este conto, texto ou história entra perfeitamente naquilo que se chama Non-Sense em inglês, ou seja, numa tradução literal em português, Sem-Sentido. Mas eis que o objetivo das obras Non-Sense é exatamente o contrário, é dar um sentido a algo. Esse algo é a falta de explicação que encontramos para a perda de imaginação e da capacidade de “facilidade de aceitação” presente na infância, ou seja, numa altura em que a infância ainda não era verdadeiramente valorizada como uma fase de transformação e de formação, o objetivo passou por lhe dar voz (à infância e a Alice). Deste modo, Lewis Carroll, inspirando-se nas suas principais amigas – crianças e, em especial, crianças do sexo feminino que nutrem uma inocência maior pelos olhos do Professor – cria ou aproveita a personagem/pessoa de Alice como o pilar defensor da importância da infância. Porquê a infância? Porque a infância e a criança como ser vivente desta fase tem, sempre, resposta para tudo, justificação para tudo, amor por tudo, amizade e lealdade por todos e, além disso, cria a sua própria lógica nas coisas que nos parecem tudo menos lógicas. Portanto a criança vive o agora, aceita o agora, não se baseia em experiências passadas logo não intelectualiza a realidade, nem se baseia no futuro, pois os seus planos são ténues e imediatos. Este livro é também um meta-livro, pois a própria história incide sobre nós. Se visualizarmos o filme, criado pela Disney e baseado no livro, quando crianças, todas as cenas surrealistas que nos aparecem são fantásticas, mas igualmente assustadoras, todavia são aceites como realidade dita normal daquela história em concreto. Se as analisarmos pela primeira vez quando adultos, com uma mente viciada em conceitos de racionalidade e história linear e moral, então, possivelmente, ser-nos-á difícil compreender a obra. Sentiremos que é apenas uma obra sem sentido. Como vemos, as crianças são portadoras dessa magia, a magia de aceitarem o mundo como se lhes apresenta, logo flores que cantam ópera, gatos que riem e falam, coelhos atrasados com luvas brancas e uma Rainha cujo império é um castelo de cartas, tudo isso é totalmente natural. Também o mundo à sua volta é absorvido de uma maneira diferente. Um gato é mais que um animal de estimação para uma criança, um corredor à noite pode ser um caminho infinito, uma viagem pela natureza pode estar cheia de criaturas fantásticas e assim sucessivamente. Tudo isso é perdido não propositadamente, mas sim pelo tempo, pelo crescimento e pela constante intelectualização da vida, pelo embrutecimento dos sentidos e ainda pelo seu inimigo mais mortal – a rotina, que hoje, infelizmente, tanto incutem às crianças – e desde tão cedo – que nem espaço deixa para serem o que são na realidade, crianças.

Captura de tela de Alice do trailer do filme Alice no País das Maravilhas (1951). Domínio Público

A segunda questão, diz respeito à razão pela qual Lewis Carroll decidiu escrever este livro, não sendo verdadeiramente um escritor de livros de fantasia. Penso que, interpretando tudo o que estudamos até ao momento, é impossível desassociar o indivíduo da obra, ou seja, a história de Alice é uma parte de intensa significância na vida de Lewis Carroll, isto porque houve praticamente cinco anos da vida do autor em que ele se deliciou em passeios pelo Tamisa a contar histórias à família Liddell, mais concretamente às três irmãs Liddell. Durante esse tempo, a vida de Charles Dogdson deveria ser algo taciturno, justamente regulamentada pelos rígidos horários de professorado, investigação e funções religiosas. No seu tempo livre, o autor necessitava de encontrar algumas atividades que saciassem a sua mente imaginativa e encontrou duas – a fotografia e os passeios de barco. Numa primeira perspetiva, nada têm a ver uma com outra e no entanto tudo. Nos passeios de barco com várias crianças e famílias, o chato diácono ou o Matemático reconhecido, transformar-se-ia, passando a ser um exímio contador de histórias que transformava momentos comuns e quotidianos em momentos especiais, cheios de imaginação e amor, usando a natureza à sua volta com uma simbólica muito própria que só um verdadeiro Mestre da Imaginação compreenderia: as flores que tocam sinfonias, o coelho que foge apressado mas que na realidade está apenas atrasado para um desfile de pompa e circunstância de uma rainha, um buraco ou toca sem fim e que dá para o outro lado da Terra, os “Antípodas” ou “Antípatas” como diz a Alice, um gato que sorri, um Dodo com a mania da eloquência, um lagarto herói, um chapeleiro que celebrava os dias que não eram aniversário, enfim, um mundo ao contrário. Só que Lewis Carroll não queria que esses momentos (esse mundo) acabassem, como qualquer ser não gosta que o prazer de algo bom cesse e, por isso, tinha necessidade de repeti-lo, várias vezes, de o aperfeiçoar e até de o sacralizar no seu livro. As fotografias são exatamente isso, captações eternas de momentos, de pensamentos, de histórias, de pessoas, de olhares, de amor. Assim, um dia, quando já não houvesse força para mover os remos e todas as suas pequenas ninfas ou musas fossem já crescidas, quando a imaginação que as cativou passasse a ser a fantasia que o atormentava, os fantasmas de memórias que se passaram ou que até nunca aconteceram, nesse momento, ao menos, teria as fotos para olhar os seus rostos e pensar como foi feliz… ou como podia ter sido.

Ilustração original de Alice’s Adventures in Wonderland, por John Tenniel, 1865. Domínio Público.

Num terceiro ponto, iremos responder à questão: qual a moral da história de Alice? Provavelmente, essa é a resposta mais taciturna e paradoxal que vamos dar e que talvez proibisse este artigo de ser publicado num academismo clássico e empírico à maneira tradicional. A resposta é simples: esta história serve-nos para nos relembrar que nem tudo tem que ter uma moral, pois em si, concretamente falando, a história como narrativa não tem qualquer tipo de mensagem ou moral direta. Não podemos comparar esta história a qualquer outra história de fantasia clássica. No Livro da Selva (chamado de Mogli – O Livro da Selva em Portugal) a moral é a força da lealdade dos amigos, na Cinderela revemos o valor de justiça, mediante o merecimento da protagonista em relação às suas irmãs, no Pinóquio com certeza temos a ideia (repetido noutros clássicos) que o Mundo é a feira das vaidades, as más influências levam-nos por maus caminhos e a mentira é algo genericamente mau. Evidentemente, que não conseguimos encaixar Alice no País das Maravilhas em nenhuma destas fórmulas, pois Alice não aparece com uma personagem criada com um objetivo mensageiro de uma moral, ela não é, ao contrário de muitas heroínas dos contos infantis, uma portadora de um objetivo prático de ensinamento, não há aqui qualquer tipo de cariz didático propriamente dito nem um pensamento complexificado sobre o impacto da personagem- fantasia nos leitores. Então qual o objetivo já que não há moral? O objetivo e a moral da criação da história, que passa, enfim, por uma meta-moral, é a lembrança de que existem muitas coisas terrivelmente belas e importantes na nossa vida que não têm que ter um objetivo último e a infância é uma delas. Na infância, na forma como as crianças percecionam o mundo e os elementos do mundo, há uma forma muito própria de inocência e uma maneira muito peculiar de apreender o sentido de tempo. Para uma criança, o estranho é belo e divertido desde que produza uma ideia de amor e compaixão e esta forma de perceção de realidade é uma lição de moral em si mesma. Estando Charles Dogdson completamente rodeado e enclausurado em e por dogmas morais e comportamentais próprios de uma sociedade cheia de regras e pompa e circunstância, a verdadeira magia emanava do sorriso da criança, do riso da criança e da mente imaginativa desta que via uma pequena história cheia de significado em todas as pequenas coisas que nós tomamos como garantido. Esta lição de moral é atual e, por isso, esta história é atemporal, é um clássico que nos toca no mais profundo da nossa alma. Também nós nos esquecemos que as árvores podem falar, o vento suspira, os animais cantam e toda a natureza faz parte da nossa casa, também nós embrenhamo-nos demais ao dar justificações racionais ou tentativas teóricas e modelares em tudo aquilo que não compreendemos e também nós, infelizmente, rejeitamos tudo o que não tenha uma utilidade pragmática, pois o belo, na nossa era, está cada vez mais associado ao útil e se não tem qualquer utilidade – nem que seja a capitalização imediata – então com certeza que não é belo e nem servirá para coisa alguma. A Alice é uma história sem moral contida, mas de lição moral atemporal, pois sem a criança em nós sorrir tudo o resto se terá perdido. Tal como Lewis Carroll percebeu e tal como o autor o tentou elucidar.

Pôster de Alice no País das Maravilhas (filme de 1951). Domínio Público

Desta forma, concluo o artigo, levando o leitor a pensar sobre o verdadeiro significado simbólico de Alice. Será uma lição para a nossa vida? Terá Alice um efeito ressuscitador da criança que se perdeu em nós? Será a história uma outra forma de aprendermos a encarar a realidade e sermos menos escravos do tempo e da vida em si e mais amantes da Natureza? Natureza não no seu sentido vegetal, como muitos mentalizam, mas sim no seu sentido mais amplo, amantes de algo que não representa artificialidade, admiradores do grande espetáculo da vida e atores do agora, sem preconceitos nem preocupações. Provavelmente, a resposta é sim, mas, como na própria história e na vida do autor e da própria Alice, cabe a cada um saber o que é sonho e o que é realidade e despertar antes que seja tarde demais.

 

Cláudio Fernando Brito

 

Bibliografia

  • CARROL, Lewis, Alice no País das Maravilhas, Editora Civilização (2015), Lisboa
  • CARROL, Lewis (Prefácio e Comentários de Fernando Ribeiro de Mello e Manuel João Gomes), Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Edições Afrodite, (1976), Funchal, Madeira

Imagem de destaque: Alice no País das Maravilhas, David Revoy. Creative Commons