“O culto à Virgem ultrapassou o de Cristo e ainda o do Omnipotente.” H.P. Blavatsky, Isis sem Véu
“Morrerei de pé, como os pinheiros que me embalaram com os seus murmúrios.” Fina D’Armada em “135917 A Chave de Fátima”
“Depois do fenómeno de Fátima, a história do catolicismo em Portugal assumiu rumos mais sentidos e amplos, e a devoção à Virgem de Fátima converteu-se no catalisador da vida religiosa do nosso povo. Centro religioso da nação, Fátima também se ergueu, como altar religioso do mundo. As peregrinações multiplicaram-se e os milagres físicos e sobretudo, morais, ali realizados, incentivaram a fé de muita gente, a vida cristã foi revigorada com as viagens da Virgem peregrina pelo país e pelo mundo e Portugal foi reencontrado como “A terra da Santa Maria”. No contexto das nações cristãs, Portugal, pode, por isso ser considerado como o país mariano por excelência…”1 A Devoção do Povo Português a Nossa Senhora nos Tempos Modernos, de Geraldo A. Coelho Dias

O Papa Francisco colocando a terceira Rosa de Ouro aos pés da imagem de Nossa Senhora de Fátima / Wikipédia

Portugal viveu autênticos dias de fervor e entusiasmo com a visita do Papa Francisco naquele 13 de Maio de 2017. Comemoraram-se os primeiros cem anos desde a primeira aparição de Fátima aos pastorinhos Lúcia, Francisco e Jacinto. O Papa ofereceu uma rosa de ouro à virgem “do manto branco” e depois de um “banho de multidão” e de orar em frente à Nossa Senhora de Fátima, e já no avião ao ser entrevistado disse que a “peste da igreja é o clericalismo”, inspirado quiçá pela Virgem na natural mística do português, que não é amiga de demasiados intermediários entre Deus e um coração fervoroso.

Negar o facto espiritual, como o faz o padre Mário de Oliveira no seu livro “Fátima nunca mais” ou numa entrevista ao jornal El Pais, é absurdo e contra toda a lógica, é ir contra a evidência do sucedido. Dizer que foi um fenómeno criado pela mesma Igreja Católica é uma afirmação audaz e que nega o que presenciaram milhares de pessoas a 13 de Outubro de 1917 no chamado “milagre do sol”. Efetivamente, o Sol não pode dançar astronomicamente no Céu, pois significaria um movimento impossível para a Terra, mas que milhares de testemunhos – entre os quais centenas de pessoas cultas e com formação científica – façam uma descrição semelhante do sucedido, é suficiente, neste caso, para descartar a fraude.


A multidão que olha o Milagre do Sol ocorreu durante as aparições de Nossa Senhora de Fátima / Wikimedia Commons

Milhares de curas contra todo os prognósticos, verdadeiramente milagrosas em nome desta Virgem, ou diante da sua efígie, ou depois de realizar um voto indicam uma forte presença espiritual curadora, que cada um pode negar, se quiser, como também pode negar que se está vivo – não será a realidade um sonho? – ou inclusivamente que apenas existimos porque pensamos. Também podemos, como Ibn Arabí, o místico de Múrcia, dizer que o todo é milagre ou que não o é, que tudo é divino ou que é matéria, que nada é mentira, ou que nada é totalmente certo. Bem, é assim, mas sem entrar nos paradoxos dos infinitos, o que mostram os acontecimentos é uma irrupção do sagrado no prosaico, do mistério no nosso mundo de parâmetros conhecidos e uma irrupção poderosa. Qualquer um que viva em Portugal já ouviu vários testemunhos presenciais, a narrar uma cura assombrosa em relação com a Virgem de Fátima. Daí o zelo, daí o fervor de ir de joelhos até ao santuário.


Percurso interior da colunata do Santuário de Fátima / Wikipédia

Como filósofo e estudioso das religiões antigas, nem quero nem posso negar o facto espiritual, o prodígio. O que para mim é seguro, é que se a aparição destas forças espirituais se tivessem dado na denominação muçulmana, teria sido considerada um djinn ou um arcanjo, portador de uma mensagem para o mundo. Se fosse mil anos antes, teria sido uma aparição da Deusa das Florestas e da Pureza, de Diana a Caçadora, ou antes a Deusa curadora lusitana Ataegina a quem os “portugueses” de então eram tão devotos. Desde há milénios, quando chega a hora, os espíritos guardiães das terras e das gentes, manifestam-se com a sua cornucópia de bênçãos. Assim foi, e assim será, pois a existência humana vive uma rede que o vincula não só às pedras, plantas e animais, mas também aos deuses e aos astros; sendo como um microcosmos que, tal como diz a Kalachakra budista, reúne em si os poderes do “circulo do tempo”, do universo inteiro. A raiz pura da devoção é o sentimento ou intuição do sagrado no devir humano, do divino que irrompe no seu trabalho quotidiano.

Tal como diz o Padre Mário de Oliveira – por quem o “Clericalismo” e os interesses criados em torno de Fátima não devem nutrir uma grande simpatia – ao ler as declarações iniciais dos pastorinhos e todo o dossier de entrevistas que fez, muito sensatamente, o pároco do local, e depois comparar com o rumo que tomou e com as declarações de Lúcia nas suas memórias – escritas no convento de clausura em Tui, já em terra espanhola e para nunca mais passar a fronteira – é fácil pensar que “aqui há gato”.

Fina d’Armada, no seu livro, “O segredo de Fátima” escrito em 1978 junto com Joaquim Fernandes faz revelações muito interessantes. Foi a primeira investigadora que divulgou parte do material discreto sobre Fátima, o que não se quis ter em conta ou se preferiu esquecer. A genialidade do seu enfoque é ir até às primeiras declarações dos testemunhos e separa-los das que se fizeram depois. Além disso, desde que se criou o DCF (Documentação Crítica sobre Fátima) qualquer interessado pode ler estes arquivos, que antes eram quase secretos.

Vejamos algumas:

  1. Lúcia não descreve a imagem como a Virgem. Ou seja, ela não se anunciou como tal nem como “mãe de Jesus” nem nada semelhante, pelo menos no princípio, nas primeiras aparições. Poderia dizer-se que as crianças, com menos de dez anos não sabiam nada de assuntos religiosos e das suas imagens, mas sim, sabiam segundo se deduz das memórias da irmã Lúcia, e a Virgem e Cristo estavam muito presentes na sua vida e até as suas austeridades. Durante os primeiros seis meses e inclusivamente durante os dezoito anos seguintes – segundo Fina d’Armada – Lúcia não disse ter visto a Virgem mas sim uma mulherzita muito bonita e de facto na sua última aparição, quando esta era vista ao Sol, já longe, vestia-se, ou era diferente da aparição, com um manto azul e não branco. Nos primeiros questionários descrevem-na como uma menina de uns doze ou catorze anos, de pouco mais de um metro de altura e com uma saia curta (!!!) “ Vinha vestida de branco. A saia era branca e dourada com uns fios dourados formando quadros. E era curta, ou seja, não descia até aos pés”. Fina d’Armada diz-nos que num documento do arquivo Formigão dizia claramente que a saia era pelos joelhos, o que é assombroso, pois nenhuma mulher se vestia assim naquela época e portanto teria sido muito difícil imagina-lo. Ao pároco que fez as primeiras entrevistas isto provocou-lhe sérios problemas de consciência, pois segundo ela a Virgem não podia mostrar-se de um modo tão indecoroso, o que quiçá era uma trama do diabo, pensava. “O casaco era branco, não dourado. Manto branco, que descia desde a cabeça até à borda da saia, com fios dourados formando quadros, nas bordas o ouro era mais intenso. O casaco tinha dois ou três cordões nos punhos. Não tinha cinturão, cinto ou faixa na cintura, parecia-lhe que tinha meias brancas, não douradas (!!!)” Os pastorinhos coincidem ao dizer que tinham um cordão de ouro no pescoço e logo depois – não nas primeiras aparições – um rosário branco nas mãos, com uma cruz. Símbolo que aberto, como nos diz Fina d’Armada, converte-se em Vénus desde épocas neolíticas.

Jacinta Marto, Lúcia dos Santos e Francisco Marto, realizando seus rosários em 1917 / Wikipedia

A imagem ou estátua de culto atual, deste modo, não corresponde à descrição original salvo nas cores branco e no bordado na costura de ouro, e não levava coroa, mas sim um manto branco que deixava ver a sua frente, aureolada de luz. De facto a luz era tão forte que cegava e as crianças às vezes não a podiam olhar de frente e tinham que baixar os olhos. A estátua atual foi realizada, a pedido, por um artesão de Braga, escolhendo num catálogo da Casa Estrela, uma imagem de Nossa Senhora da Lapa, a virgem encontrada numa pedra (lapa) e onde se erigiu um dos santuários mais importantes da península ibérica durante a Idade Média, perto de Viseu. Claro que nessa época não se ia fazer uma imagem da Virgem com minissaia e foi necessário ocultar zelosamente a descrição original.


Virgem de Fátima. Igreja de Nossa Senhora da Estrela / Wikimedia Commons

  1. Os assistentes das aparições – que não viam a dita “Presença espiritual” – ouviam Lúcia fazer perguntas e as respostas eram como o zumbido de uma abelha. Curiosamente, as Deusas Mães antigas, na Ásia Menor são “mães das abelhas”. Pensemos também na relação que as abelhas têm com Vénus nas velhas tradições esotéricas. Evidentemente, isto foi também necessário elimina-lo. Como vai a Virgem fazer o som da abelha, o melhor é dizer que simplesmente não se ouvia nada!

  2. Há vários elementos que desconcertaram os primeiros que entrevistaram os pastorinhos e que ainda hoje nos intrigam. A Virgem de Fátima, ao lhe perguntaram pela guerra – a primeira guerra mundial, já que estávamos em 1917 – disse que a “guerra terminava hoje” e que os soldados retornariam já. E não sabemos a que se referia, pois a guerra continuou durante um ano e meio mais. Tentou-se justificar de mil formas, mas todas elas “presas por alfinetes”.

  3. Há uma estranha matemática nas aparições. São sempre no dia 13 de cada mês. Todas elas duraram 10 minutos e os videntes são todos sétimos filhos, confirmando o folclore popular que diz que o sétimo filho está vinculado ao mistério. Lúcia era a sétima filha de um matrimónio, Jacinta a 7ª de um pai e Francisco o 7º de uma mãe.

  4. Podemos afirmar, um pouco ironicamente, mas sem querer fazer dano a ninguém, que a Virgem ia “marcando a época”, não só pela forma como ia vestida, com a saia pelos joelhos (os gregos teriam dito que era a túnica curta de Artemisa dos bosques) mas também porque o primeiro que disse às crianças foi que aprendessem a ler, a Francisco e às meninas. Só o primeiro obedeceu. O machismo não ilustrado, ou se quisermos eufemisticamente, a forma patriarcal de viver, fez com que em tudo o resto a palavra da Virgem fosse a “palavra de Deus”, mas nisto de aprender a ler as crianças os aldeões pensariam que até a Virgem se estava a exceder nas suas funções. Quando o pároco recriminou Lúcia porque não tinha começado a aprender se Nossa Senhora o tinha pedido, ela ficou de boca aberta. Na transcrição da entrevista simplesmente aparece em pontos suspensivos e admiração. Curiosamente alguns pensam que o mais importante da Mensagem estava dependente de que Lúcia soubesse ler. Que lhe ia ser mostrado letras de fogo ou que devia ler o que a Virgem lhe ia mostrar a todo o povo reunido?

  5. Até onde pude estudar o tema, em nenhum momento se fala, inicialmente do “Coração Imaculado de Maria” e ainda menos, portanto do segundo segredo de Fátima, de consagrar a Rússia (Saberia esta criança de dez anos onde estava a Rússia?) ao mesmo. Quase podemos afirmar que é agora, com Vladimir Putin, que se está a produzir a “conversão religiosa” da Rússia e o retorno massivo ao culto da Virgem Maria. Claro, que sendo da perspetiva ortodoxa e não da sua, não é grato aos católicos e não publicitam a verificação final da profecia, como o Papa atual Francisco nega com desprezo olímpico a mensagem e as aparições da Virgem, a Rainha da Paz de Medjugorge, que também, em 1981, e quando era imprevisível tal, anunciou a conversão da Rússia.

Lucia Santos foi parte dos três filhos a quem a Virgem Maria revelou seus famosos “três segredos” em Fátima, Portugal / Wikimedia Commons

Além do mais, na primeira declaração escrita de Lúcia, cinco anos depois das aparições, ou seja, já com 15 anos escreveu “que a Senhora trazia uma bola na cintura”. Esta bola ou esfera é o que, como diz Fina d’Armada, converteu depois Lúcia no Coração Imaculado de Maria, muitos anos depois, ao escrever as suas Memorias, no que diz “Diante da palma da mão direita da Nossa Senhora, haveria um coração rodeado de espinhos…”. E diz Fina d’Armada: Entendemos que era o Coração Imaculado de Maria. Em 1922 para ela, esse coração era simplesmente uma bola. Aqui em Fátima, há agora uma grande estátua com um coração fora do peito.”

  1. As Aparições de Fátima não foram apenas visões interiores, pois os três pastores coincidem sem dúvida na sua descrição, e logo dezenas de milhares de pessoas viram o fenómeno do Sol ou a Roda de Fogo em movimento, dançando e aproximando-se das gentes, “como querendo falar com eles”. A terra do lugar ficou com propriedades curativas assombrosas, mais além da fé do crente, os galhos do carvalho estavam todos orientados para o oriente, como se a orla do vestido da virgem os tivesse arrastado nessa direção ao sair, as pessoas experimentavam um calor físico ao aproximar-se da roda luminosa e muitas máquinas avariaram-se no momento da aparição do Sol, ou quando os pastores têm que baixar o olhar porque dizem que não podem resistir mais ao resplendor da virgem. Mais além das disputas do cardeal Ratzinger quando separa dialeticamente as aparições fenoménicas das visões intelectuais e logo estabelece um terceiro grau de visões interiores, aqui há fenómenos que arrastam mudanças materiais, isto não é apenas interior. Mens agitat molem (a mente agita a matéria), mas além disso há aqui forças desconhecidas tão palpáveis que alguns se aventuraram a falar de fenómenos de OVNI, ignorando, ou descartando, graciosamente, muitos dos elementos da aparição.

Na realidade, há todo um universo das aparições marianas e a devoção das gentes simples foi eletrizada, milhares de vezes com manifestações da Virgem ou com fenómenos espirituais, que levaram à construção de infinidades de santuários a ela hoje dedicados. O povo é simples, mas não é tonto, e se encontramos Virgens da Rocha, dos Pescadores, das Fontes, etc, etc, é fácil que o seu culto tenha sido precedido de aparições mágicas das que já não há memória nem oral nem escrita, apenas a lenda e um pequeno oratório. Estas mesmas aparições, – ou será que podemos ser tão obtusos de pensar que antes não havia, e que o sagrado não abraçava antes amorosamente as gentes simples? – haveriam conduzido a elevar um templo a Afrodita ou a Astarte se o povo era fenício, à Freya germânica ou a um Endovélico, deus curador, até ao qual se dirigiam peregrinos devotos desde os confins do império Romano. Quem sabe, as mensagens ou orações que estes “seres de luz” ensinaram sejam diferentes das de agora, quem sabe não. Uma semana antes das aparições de Fátima, outra Virgem apareceu a um pastor no Barral em Ponte da Barca e disse que rezassem ou cantassem “Estrela do Céu”, oração que ninguém recordava. Foi preciso ir ao Rito Bracarense, quem sabe o mais antigo que chegou até aos nossos dias (há especialistas que dizem que é do séc. V), e encontrar este hino, ou melhor esta antífona. E adaptaram uma bela oração:



Também nas antífonas gregorianas falamos da “Rainha dos Céus” que começava com estes belos e profundos versos:

 Ave, Regina Caelorum, Ave, Domina Angelorum: Salve, radix, salve, porta

Salve, Rainha dos céus e Senhora dos Anjos; salve raiz, salve porta, que deu passo à nossa luz

Não é difícil ver em todos estes epítetos, como em Stella Maris, ou nos quase mil que compilou Jacinto dos Reis no seu libro “Invocações à Virgem em Portugal mais cá e mais além do mar”, muitos dos epítetos dirigidos a Vénus, a Ísis ou à Mãe do Mundo, pois, não foi sempre o Eterno Feminino a Deusa dos Mil Nomes e formas?

Almada, 16 de Maio de 2017

Anotações

1. “Depois do fenómeno de Fátima, a história do catolicismo em Portugal tomou rumos mais sentidos e alargados, e a devoção a Nossa Senhora de Fátima tornou-se o catalisador da vida religiosa do nosso povo. Centro religioso da nação, Fátima guindou-se, também, como altar religioso do mundo. As peregrinações multiplicaram-se, os milagres físicos e sobretudo morais, ali realizados, incentivaram a fé de muita gente, a vida cristã revigorou-se com as viagens da Virgem Peregrina pelo país e pelo mundo, e Portugal reencontrou-se como «Terra de Santa Maria». No contexto das nações cristãs, Portugal pode, por isso, cotar-se como o país mariano por excelência…”