Ciclo “700 Aniversário da Morte de Dante”
“Razão não seja, que vos tolha a mente
De além do sol, tentar nobre aventura,
E o mundo ver, que jaz órfão de gente.”
No canto XXVI do «Inferno», Dante, acompanhado pelo poeta Virgílio, entra no círculo VIII, o dos falsários e trapaceiros. Tendo feito as suas habituais alusões políticas tanto à corrupção de Florença como aos seus rivais políticos, observa envoltos na mesma chama Ulisses e Diomedes.
Recordemos que anteriormente, no canto IX do «Inferno», Dante nos avisou que há na sua obra um sentido profundo e doutrinário segundo o qual a interpretação literal das suas palavras seria um erro, e que para conhecer o significado profundo da sua doutrina se deve ir mais longe. A este respeito, Apuleyo, no seu romance esotérico escrito no século II d.C., O Asno de Ouro ou As Metamorfoses, conta que o iniciado nos mistérios de Ísis levantava o seu véu para ver a verdade além das meras aparências.
Também noutra das suas obras, o Convite, declara que todas as escrituras, e não apenas as sagradas, podem e devem ser interpretadas de acordo com quatro sentidos, a saber: literal, alegórico, moral e anagógico, sendo o último aquele pelo qual podemos ver realidades e acontecimentos no seu significado eterno, entendendo que o que vemos acontecer ou nos é contado é a sombra terrestre de um arquétipo ou modelo celeste. Desta forma, Dante ao escrever A Divina Comédia não busca apenas desenvolver a doutrina eclesial sobre o destino da alma depois da morte, mas também a transmissão de ensinamentos morais e alegorias, assim como um sentido poético ou anagógico (do grego poiesis, produção ou criação) à sua grande obra.
Por outro lado, não podemos separar o poeta da sua época e do seu lugar. Dante escreve e vive entre os séculos XIII e XIV, quando a Igreja Católica está no esplendor do seu poder dominando territórios, consciências e vontades e estendendo a sua influência por todos os ramos da sociedade sem dar espaço à liberdade de consciência ou muito menos a interpretações doutrinárias que se afastassem da leitura oficial das escrituras sagradas propostas pela Cúria Romana, sob pena do desterro, prisão ou a mesmo morte na fogueira por intermédio da Inquisição.
Tudo isso deve ser tido em conta se queremos interpretar a obra de Dante num sentido filosófico e não apenas ficarmos com o prazer estético, pois já vimos que pode ser interpretado em vários sentidos e que nem tudo é claro ou manifestado no seu poema, pois se fosse assim não haveria lugar para a inspiração poética ou para o sentido anagógico, e perder-se-ia a intuição do arquétipo.
Assim, Dante e Virgílio entram no círculo VIII, seguindo um caminho difícil, pois para avançar por ele precisam usar os pés e as mãos para evitar tropeçar e cair devido aos numerosos obstáculos e pedras que encontram. Recordemos que este círculo é o dos falsos, daqueles que não respeitam a sua palavra, aqueles que pela mentira tornam tudo falso e inseguro, dificultando o trânsito diário na existência devido à falta de confiança.
Desta forma, Dante faz-nos entender metaforicamente que devemos ser verdadeiros e retos no nosso comportamento diário, tanto nas coisas grandes como nas pequenas. Mesmo ao ver o espetáculo das chamas ardentes onde são consumidos os trapaceiros, tem que se segurar a uma pedra para não cair no precipício que se abre diante dele. Os falsários ardem eternamente consumidos pelo fogo provocado pelas mentiras que contaram e pelas armadilhas que fizeram durante a sua vida na Terra. Uma das chamas atrai a sua atenção, e ele pergunta ao seu mentor quem são; este diz-lhe que se encontra diante das almas de Ulisses e Diomedes, que tantos feitos realizaram juntos na Guerra de Troia, como o roubo do Paládio, ou a artimanha do cavalo de madeira para entrar na cidade e conquistá-la.
Ulisses foi o protótipo do falsário na antiguidade clássica, porque graças à sua astúcia e truques ele conseguiu tomar a cidade, encorajando continuamente os seus companheiros de armas para não desanimarem ou cederem no seu esforço, alcançando finalmente a vitória. No entanto, ao regressar ao seu reino de Ítaca leva mais de dez anos, pois o deus Poseidon, protetor de Troia, obriga-o a passar por múltiplas provas e vicissitudes para regressar ao lar. Na simbologia tradicional, o mar e Poseidon, seu regente, representam as paixões. Assim, o seu regresso a Ítaca dura dez anos não por capricho de um deus, mas por ter como guia as paixões e o desejo de aventura que, como veremos, causará a sua perdição final.
Uma vez reconquistado o seu reino, antes de voltar para casa deve viajar a pé com um remo ao ombro até que em algum lugar lhe perguntem o que faz carregado com uma placa de moinho, (uma vez que não reconhecem o remo, ou seja, eles não reconhecem os instrumentos ou as artes de navegação, portanto, desconhecem o mar). Portanto, Ulisses teria chegado ao lugar onde as paixões já não existem, o império celestial.
Muito possivelmente Dante não teria lido a Odisseia, já que não sabia grego. No entanto, teria conhecimento de Ulisses graças à Metamorfoses, de Ovídio, ou à Eneida, de Virgílio, que ele certamente teria lido e estudado. Dante, então, pede ao seu mentor Virgílio para falar com eles; este concede, mas pede-lhe para reprimir a sua língua. Dante não deve falar diretamente com eles, pois “mostrar-se-ão evasivos por serem gregos às tuas palavras” (vv. 75). Não parece que seja um problema de linguagem, como alguns comentadores apontam. Devemos antes interpretar o imenso respeito que tem Dante pelo grande viajante da antiguidade, Ulisses, já que este fez várias viagens enquanto que aquele está apenas começando a sua jornada de ultratumba. Então, como sinal de respeito, comunicará através de Virgílio. Até este último pede a sua permissão dizendo-lhe se merece falar com eles, “por ter escrito versos altos no mundo” (vv. 82-83).
Então, Ulisses conta-lhe que o seu “ardor interior para conhecer o mundo e o vício e a virtude dos seres humanos” (vv. 97-99) pôde com o amor filial e o afeto ao lar e à sua esposa, de modo que com um simples navio e alguns fiéis que nunca o deixavam lança-se a percorrer o mundo cruzando as colunas erguidas por Hércules “para que o homem mais além não fosse” (v. 109). Para atravessá-las e encorajar os seus homens, arenga-lhes brevemente com os versos que encabeçam este artigo, de modo que nem mesmo ele, diz Dante, poderia tê-los impedido.
Deve ter-se em conta que Dante provavelmente teria sido inspirado para a sua fábula na lenda da antiguidade que situava a fundação de Lisboa nas viagens realizadas por Ulisses durante a sua odisseia, bem como na existência de umas Ilhas Afortunadas (hoje conhecidas como Ilhas Canárias) no Oceano Atlântico
Assim, atravessam o Estreito de Gibraltar e dirigem-se para poente, orientando-se para a esquerda, ou seja, para o Sul. Veem cinco vezes apagar-se e acender-se a lua (ou seja, viajam durante cinco meses), notando que as estrelas que os guiam são estranhas, pois as usuais no Norte quase não são visíveis no horizonte. Finalmente, avistam uma montanha, “como nunca tivera visto monte algum” (v. 135). Alegram-se com a visão, mas um turbilhão de água eleva-se e atinge o barco fazendo-o girar três vezes nas águas e, finalmente, à quarta engole-o engolindo toda a sua tripulação. No primeiro canto do «Purgatório» Dante nos avisará que esta montanha misteriosa é o próprio Purgatório, localizado nas antípodas do mundo e estando vedado aos mortais.
Note-se o conhecimento que tem Dante sobre a esfericidade da Terra, conhecimento que não era comum na sua época, uma vez que os ensinamentos oficiais aprovados pela Igreja diziam que o mundo terrestre era plano. Confirma a esfericidade do globo pela mudança do céu estrelado no hemisfério sul. Além das informações geográficas, pois diz-nos que este hemisfério está coberto de água, e a ciência moderna corrobora que os quatro quintos da terra emergidas se encontram no hemisfério norte.
Alguns exegetas da Divina Comédia enfatizam que Ulisses foi castigado pelo seu orgulho em querer conhecer tudo, e está condenado no inferno pela sua ânsia desmedida de conhecimento e aventura, já que Dante sim, pisará e atravessará a montanha do Purgatório guiado e ensinado pelo seu mentor Virgílio seguindo as instruções dadas a ele por Beatriz, a amada falecida de Dante e seu guia no último Cântico do poema, o do Paraíso. Recordemos que o próprio Dante era teólogo… e que tinha que se curvar às crenças de seu tempo.
O poeta lisboeta Fernando Pessoa, mais de quinhentos anos depois e fazendo eco de uma frase do romano Pompeu (navegar é necessário, viver não é necessário) soube captar, no seguinte poema, o verdadeiro espírito que animou Ulisses, o espírito de superação, de conhecimento e experiência para transmutá-la em sabedoria.
Para terminar, espero encorajar o leitor a começar a leitura da Divina Comédia, invocando anteriormente, é claro, a musa Polimnia, a dos cantos sagrados e da poesia sacra, que certamente inspirou Dante na sua obra imortal.
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Fernando Pessoa
Fco. Javier Ruiz
Imagem de destaque: O Embarque de Ulisses, Claude Lorrain, museus do Louvre, Paris, França. Domínio Público