Agrada a todos e não agradarás a ninguém.

Esopo

Há alguns meses atrás, por ocasião de um congresso sobre a Hispano América, surgiu o tema da fome entre os povos do chamado, por alguns, Terceiro Mundo, e por outros, Grupo de Países em Desenvolvimento.

Mais tarde, diferentes meios da imprensa espanhola estavam interessados no tema mencionado e por alguém que, há 150 anos, desde Londres, lançou um folheto no qual se faziam algumas reflexões muito originais para o seu tempo, sobre as probabilidades de que a Humanidade fosse um dia, não muito distante, vítima do flagelo da fome ao nível quase planetário. Era o reverendo Thomas Robert Malthus, nascido em 1776 e falecido em 1834.

A sua obra não pretendeu ter muita importância, e tanto é assim que este cientista a publicou de maneira anónima, expondo a sua teoria simplista sobre a progressão geométrica em que a Humanidade crescia e a aritmética em que podia produzir alimentos, envolta nos algodões de um ecletismo invejável. Diz, por exemplo: o autor (…) é consciente de que ao usar tão negras tintas fê-lo convencido de que existem realmente na imagem e não são o resultado de preconceitos nem temperamento rancoroso. Na verdade, digno exemplo a seguir por todos os que vivemos no século XX, tão carregado de absolutismos e que costumamos escrever sem ter seriamente em conta que as nossas razões podem estar erradas.

Para melhor compreender o entorno e a projeção da sua profecia é conveniente que nos detenhamos numa breve biografia e em destacar algumas caraterísticas do momento histórico que lhe tocou viver.

A sua primeira educação recebeu-a de seu pai, homem muito à moda dos filósofos literários do século XVIII, e depois através de Robert Granes e Gilbert Wakefield, em 1784 entrou no Colégio de Jesus, de Cambridge. Recebeu as sagradas ordens aos vinte e dois anos e passou a servir nos arredores da sua cidade natal. Esteve lá pouco tempo, pois a sua inquietude levou-o a viajar pelo norte da Europa, visitando bibliotecas e recolhendo cópias de quantos documentos lhe interessavam, com uma capacidade de trabalho assombrosa. Em 1805 casou com uma filha do famoso Eckersall e foi nomeado professor de História e Economia Política no Colégio da Índia Oriental, em Haileybury, município de Hertford, exercendo este cargo até à sua morte.

A brochura que o tornou famoso era uma muito pequena parte das suas obras. Intitulou-a Ensaios sobre o princípio da população e, como dissemos, o seu nome nem sequer figurava nela. Mas o destino quis outra coisa e esse simples folheto mudou a opinião culta da sua época, publicando-se seis edições contínuas, a última em 1826. Segundo Malthus, apoiado em numerosas estatísticas da sua época, a população tende a duplicar-se a cada vinte e cinco anos. A sua doutrina, desenvolvida no mencionado livrinho e em outros, dedica-se a examinar estatísticas não só europeias, mas também – o que é raro no seu tempo – dados extraídos da América, África e Ásia. Menciona que nenhum indivíduo deveria contrair matrimónio e gerar novos seres até que o seu potencial económico garantisse um bom nível de vida à sua futura família. Falava do homem prudente, o qual exige uma análise de mercado antes de contrair a responsabilidade de trazer outros seres humanos a este mundo. Propõe que se retarde, na medida do possível, a idade matrimonial para que a maturidade sexual coincida com a económica e com a cultural, ideias evidentemente extraídas dos clássicos. Insiste inclusive no “princípio da amizade”, forma de amor platónico que deveria ser o prelúdio para o matrimónio, dado que estas relações sentimentais amistosas ajudariam a dar solidez às posteriores uniões, criando afetos duradouros e ajudando o casal a controlar a sua sexualidade.

Também faz referência ao perigo que são as esmolas e os socorros públicos, pois criam o hábito da irresponsabilidade social e o aumento desenfreado de uma população que consome e não produz. Como naqueles tempos rebentava a Revolução Americana, seguida pela Revolução Francesa – expressões violentas da problemática candente do século XVIII, onde distintas tendências intelectuais chocavam em torno de extremismos que iam desde um anarquismo naturalista até à racionalização da fé, e a mentalidade burguesa avançava à custa de reis e de eclesiásticos, entronizando uma metodologia positivista e lançando a funesta ideia da luta de classes e da origem animal do Homem –, as ideias de Malthus atraíram amigos e inimigos.

Os primeiros chegaram a propor a exterminação dos recém-nascidos, e os segundos, a defesa extrema dos camponeses, cuja ditadura deveria enforcar o último rei com a tripa do último sacerdote. Numa incrível sucessão, os Sans-culottes franceses foram continuados por um verdadeiro César que foi Napoleão. No cadinho da História fundiam-se as velhas formas herdadas do feudalismo, e o Estado burguês devorava-se a si mesmo dando à luz uma mistura de monarquias, repúblicas e impérios efémeros, que chegaram até a emitir moeda própria na Patagónia.

Os Sans-culottes em armas, de Jean-Baptiste Lesueur (1793-94). Domínio Público

As ideias de Rousseau, de Godwin, do marquês de Condorcet, Montesquieu, Pestalozzi, têm o denominador comum da tendência à teorização otimista, elaborada sobre mesas de trabalho abarrotadas de livros e folhetos heterogéneos, presididas muitas vezes por maravilhosos mármores gregos ou romanos; verdadeiros laboratórios teóricos e ao mesmo tempo santuários à Deusa Razão, onde o otimismo futurista, uma fuga para a frente, fez com que considerassem como certas as projeções exageradas das suas próprias reflexões.

Para todos eles, em geral, a culpa dos males do mundo estava nas formas de sociedade e de governo, raciocinando irracionalmente sobre as bondades inatas dos homens e chegando a afirmar que todos os males, mesmo as simples enfermidades do corpo e dos sofrimentos próprios do existir, provinham das formações passadas, dos excessos de autoridade e das ordens estabelecidas. Desconhecedores ainda da existência dos micróbios e dos vírus, tudo se resolveria num futuro brilhante, em que a Humanidade estaria impregnada de liberdade e felicidade natural. Predizem um desenvolvimento da moral e da inteligência humana que constituem verdadeiras mutações promovidas pela simples libertação dos homens, assim transformados numa espécie de semideuses prósperos, alegres e sem conflitos. E sobre uma ideia feliz montam outra, que o é ainda mais, até conformarem verdadeiras elegias ao futuro.

É tragicómico observar como, enquanto um lacaio elegante arqueia as suas costas para anunciar alguma visita, e um pequeno exército de cozinheiros se esmera em preparar-lhes comida de dez ou mais pratos variados e refinados, se explanam em afirmações sobre a igualdade de todos os homens e na necessidade de dar a todos a mesma oportunidade. Passam por alto não só pelas desigualdades entre as pessoas que os rodeiam, mas também se atrevem a dogmatizar sobre os povos distantes que só conhecem de nome ou através de românticas litografias. Intelectualizam tanto o conceito de Deus, que acabam negando-o ou reduzindo-o à segunda premissa de um silogismo.

O próprio Marx, que apesar dos seus erros e dos seus sofismas estava muito mais informado da realidade dos povos que eles, era um burguês pacífico cujo contacto com os camponeses se reduzia a compartilhar o seu piquenique com algum casual pastor das preciosas campinas. Este homem, cujas ideias mais ou menos seguidas e deformadas iam custar à Humanidade, em menos de dois séculos, 150 milhões de mortos, teria sido incapaz de disparar uma pistola sobre um semelhante e, provavelmente, não saberia nem como carregá-la.

Voltando aos Iluministas e aos Enciclopédicos do século XVIII, foram eles os primeiros a horrorizar-se face à queda das cabeças que rolavam sob as guilhotinas, face às obras de arte destruídas e às cidades em chamas. Como no mito de Pandora, teriam destapado prematuramente um cofre do qual saíram todos os males e do qual, por pouco, quase é arrastada a própria esperança. Quando Lafayette regressa da América do Norte convertido num herói da liberdade, o seu berço nobre trouxe-lhe problemas na própria França e terminou com o envio de 40.000 mercenários desde a sua pátria aos nascentes EUA, que, em agradecimento, daria a este revolucionário enormes quantidades de terra e a soma de 200.000 dólares de prata. Os seus biógrafos contradizem-se, mas abraçou calidamente o restaurado rei Luís Filipe, e há quem diga que exclamou:

Eis aqui a melhor das repúblicas. Morreu quase esquecido em França, embora nos EUA tivesse ficado como herói nacional ao que se prestaram homenagens post-mortem que, segundo os cronistas, nem mesmo Washington recebeu.

Este resumo de alguns pontos interessantes da charneira entre o século XVIII e o XIX dará ao leitor uma ideia aproximadamente certa do ambiente em que Malthus passou a sua vida. A sua inteligência e modéstia fizeram-no prever a possibilidade de que a Humanidade desenvolvesse novos meios para explorar as riquezas naturais e para conservar os alimentos. Mas não pode imaginar os perigos da contaminação nem da enorme onda de ódio e antifraternidade que se daria, na prática, pouco depois da sua morte.

Face a tudo isto… é válida a profecia de Malthus?

No momento histórico em que nos encontramos, sem cair em pessimismos nem otimismos injustificados, atendendo aos fatos e à progressão dos mesmos, podemos afirmar que, em linhas gerais, as suas previsões estavam certas. A Humanidade atual alberga mais milhões de famintos e miseráveis que nenhuma outra de que haja memória; o crescimento demográfico transborda paulatinamente todas as previsões e os povos ricos são cada vez mais ricos em relação aos pobres. Portanto, parece uma piada macabra aquilo de países em desenvolvimento, pois o autor, que viaja constantemente por eles, comprova de que maneira fracassam os esforços por elevar o nível de vida e como, se o comparamos com o que eram e representavam há cinquenta anos, é inegável que estão em decadência, carregados de dívidas e sem oferecer à crescente juventude os postos de trabalho prometidos. A fome, a miséria e a corrupção espalham-se por toda a parte e os atuais utópicos que creem que com a democracia esses povos levantariam a cabeça, teriam que raciocinar com o seu próprio estômago que a democracia não se come.

A fome na Índia: nativos à espera de ajuda em Bangalore. Domínio Público

Um desocupado, um faminto, um carente de habitação decente e de exemplos morais que o alentem, que já não crê em Deus nem em si mesmo, não se levantará duma ruína por introduzir um papelito numa urna para eleger o nome que lhe soe mais bonito dentro do nepotismo que o rodeia. Existem possíveis soluções, mas a longo prazo, mediante uma consciencialização diferente, e os choques sangrentos advertem-se como inevitáveis.

A Filosofia Clássica em que baseamos a Nova Acrópole ensina-nos que tudo é cíclico na Natureza e que mais além das formas que se renovam, a vida segue. Mas conceber soluções rápidas e simplistas para o problema da fome no mundo é equivalente a sentar-se junto ao cadáver de Godwin ou de Condorcet a espalhar pó na peruca enquanto se tecem utopias de salão.

A solução da crise que existe e que crescerá, deve passar inevitavelmente pelas portas da realidade prática.

O facto de dois homens terem pisado a Lua não terá evitado que 2000 milhões passem fome. Obviamente estamos no caminho errado. E esse caminho não se pode modificar nem refazer sem uma quota enorme de sofrimento e de violência. Avizinha-se uma nova Idade Média e, com os elementos atuais, nada faz pensar que a possamos evitar.

O realmente positivo é ir conformando uma nova ordem de coisas e novas relações entre os homens, sem esperar milagres, pois a História ensina-nos que toda a mudança profunda no caminho da Humanidade foi paga com grandes dores e privações. Tão só o valor pessoal e coletivo de aceitar as coisas como são, nos colocará de novo na singradura natural. Estamos a assistir às primeiras agonias de uma forma de civilização, e para que aquela que se segue nasça e cresça, vão ser necessários séculos de esforço e de controlo, artificial ou natural, do crescimento demográfico. Este controlo não deve confundir-se com as hipóteses de aborto nem com as do direito à vida dos nascituros. Já é tarde para panos quentes. Devemos esperar remédios muito mais radicais.

Alguns pensam que se os ricos se despojarem em benefício dos pobres, tudo se solucionará. Isso é utópico, pois não há tanta riqueza para repartir e, além disso, seria bom perguntar-se qual é a dinâmica que terá levado os povos potencialmente ricos a morrer de fome. Essa dinâmica continuaria e em pouco tempo todos estariam imersos na barbárie, na brutalidade e na fome. A solução não passa pelo despojo dos que têm, mas por ensinar os que carecem a auto manter-se. Como diz o provérbio, a verdadeira caridade não é dar o peixe, mas ensinar a pescar.

Enquanto as mais brilhantes inteligências do nosso desafortunado século XX continuam com as suas discussões de salão sobre qual a melhor forma de governo, falando continuamente sobre as suas teorias, de costas para a realidade, não podemos esperar um mundo melhor. Enquanto se gastam milhares de milhões de dólares em armamentos insanos e se carrega com mais impostos os que mais produzem e se força os que trabalham a politizar-se, não há saída.

Godwin, combatendo Malthus, chegou a dizer que passarão milhares de séculos e a Terra será suficiente para alimentar os seus habitantes. Estamos de acordo, mas… quantos habitantes?

Existe a possibilidade de que as narrações dos antigos livros, a respeito das civilizações e continentes destruídos, cujos escassos sobreviventes foram aqueles que hoje chamamos homens da Idade da Pedra, não seja só um conto. Talvez fosse assim. Quem sabe muitas vezes.

Sem chegar a tão terroríficas perspetivas, a alternância de momentos cimeiros e momentos abismais foi um facto e está constatada pela ciência histórica. São os passos rítmicos da natureza, mais além da vontade e do desejo dos homens, que continuam a nascer e a morrer como há milhões de anos. O que chamamos de cultura e de civilização são apenas vernizes passageiros de uma realidade em andamento.

Apesar de quão odioso nos seja reconhecê-la e dos evidentes erros de detalhe, a teoria de Malthus continua de pé.

Jorge Angel Livraga
Texto publicado nos Artigos Jornalísticos

Imagem de destaque: Thomas Robert Malthus (1776-1834) e o Ensaio Sobre o Princípio da População (Imagem composta). Domínio Público