«Nosso destino é ser Homem e permanecer unido à humanidade para se aperfeiçoar com ela»

Pierre Leroux

Em abril de 1869, a «Revista Espírita» fazia referência ao último trabalho deixado por Allan Kardec, desencarnado em março do mesmo ano.
Trata-se de uma compilação de obras identificadas pelo codificador, intitulada «Catálogo racional das obras para se fundar uma biblioteca espírita». Na realidade, não é uma obra sobejamente conhecida nos meios divulgadores da filosofia espírita, todavia reveladora de um interesse acrescido, avaliando pelo carácter eclético com que Kardec pretendeu dotar esta doutrina espiritualista.
O ecletismo espírita é bem visível na variedade de obras criteriosamente selecionadas, que demonstram a preocupação do seu autor em estabelecer ligações com outros campos do conhecimento, não apenas confinados à codificação espírita.
Neste contexto, o catálogo aparece agrupado em três secções para facilitar a compreensão do leitor. Uma primeira secção designada por obras fundamentais da doutrina espírita, onde são identificadas todas aquelas que nasceram da codificação espírita. A segunda com referência a obras complementares diversas sobre o espiritismo, incluindo poesia, música e desenho. E finalmente a terceira que engloba as obras feitas fora do espiritismo, alusivas à filosofia, história, religião, ciências, romance, teatro e obras contra o espiritismo.
Para elucidar sobre a abertura intelectual que Kardec quis despertar para o estudo alargado da doutrina espírita, referem-se a título de exemplo a obra do filósofo grego Filóstrato (c. 170-250) sobre a vida do filósofo neopitagórico de origem grega e contemporâneo de Jesus Cristo, Apolónio de Tiana, o «Tratado do discernimento dos espíritos» da autoria do cardeal cisterciense Giovanni Bona (1609-1674), as obras «Buda e a sua religião» e «Maomé e o Corão» do filósofo Barthélemy Saint-Hilaire (1805-1895), «O protestantismo liberal» do pastor Théophile Bost (1828-1910), «Os mistérios do povo Árabe» de Charles Richard (1860), «Viagens ao Tibete e à Tartária» e «Viagens à China» pelo padre missionário da congregação de S. Lázaro, P. Huc e «Da humanidade, de seu princípio e do seu futuro» do filósofo francês Pierre Leroux, nascido em Bercy-Paris em 1798. A análise a este catálogo denota claramente o carácter inclusivo da doutrina espírita, abordando a necessidade do estudo das mais diferentes correntes de pensamento filosófico, científico, religioso e cultural. Sem este discernimento como seria possível exercitar a fraternidade universal? Só se aceita a diferença quando se compreende na plenitude a diferença.

Allan Kardec. Domínio Público

Pierre Leroux foi contemporâneo de Allan Kardec e não está identificado com o movimento espírita. Foi para além de filósofo, um político ativo que se exilou em Londres por ocasião do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 levado a efeito por Luís Napoleão Bonaparte. Dezassete anos antes da publicação de «O Livro dos Espíritos» foi editada a sua obra «Da humanidade, de seu princípio e do seu futuro», uma referência na terceira secção do catálogo de Kardec. Trata-se de um trabalho em franca cumplicidade com a filosofia espírita, como se pode comprovar pela quantidade de citações de termos característicos desta corrente de pensamento (entre parêntesis, o número de vezes que o termo é citado nesta obra): Deus (1318), Jesus Cristo (617), Humanidade (519), Moisés (348), Platão (346), Morte (224), Conhecimento (205), Vida Futura (148), Espírito (134), Alma (125), Pitágoras (125), Amor (103), Ressurreição (103), Caridade (103), Sócrates (79), Progresso (67), Imortalidade (43), Apolónio de Tiana (35), Invisível (31), S. Agostinho (22). É precisamente sobre a tradição da vida futura que Pierre Leroux vai dedicar a centralidade nesta sua obra, um conceito fundamental da filosofia espírita, objeto de estudo em «O Livro dos Espíritos». 

Na dissecação «Da Humanidade» de Pierre Leroux são elencadas questões essenciais: O que é o Homem, qual é o seu destino e por consequência qual é o seu direito e o seu dever, qual é a sua lei? O Homem está ligado aos seus semelhantes fortuitamente ou por necessidade? O lugar que une os Homens é frágil e efémero como manifestação atual do seu ser que chamamos sua vida ou persistente e eterno? O que é a natureza humana que compreende todos os Homens? É qualquer coisa ou nada para além de uma abstração do nosso espírito? Existe um ser coletivo humanitário ou somente existem Homens individuais? Se este ser existe é como uma série, da verdade progressiva, e por consequência influencia as gerações que se sucederam até aqui na Terra e que podem continuar a suceder-se? Este é o cerne do pensamento de Pierre Leroux que irá consubstanciar as suposições diferentes assumidas pela filosofia, ao longo dos tempos, no que respeita à vida futura. São quatro as ideias identificadas pelo autor. A primeira é relativa ao retorno absoluto a Deus, a segunda evoca o renascimento terrestre fora da humanidade, ideia vulgarmente conhecida por metempsicose, a terceira admite a existência de vários paraísos ou infernos estranhos à humanidade vivente e mais ou menos estranhos ao universo tal como o conhecemos. E finalmente, o renascimento no seio da humanidade, o princípio da reencarnação evolutiva, incontestavelmente defendido por Pitágoras, Platão e Jesus Cristo.

Ilustração de reencarnação na arte hindu. Creative Commons

No fundo em todas as tradições religiosas da humanidade encontramos o sentimento da imortalidade da alma no seio da própria humanidade. As entidades «alma» e «espírito» emanaram de muitas civilizações. A alma aparece no latim como «mens», no grego como «nous» e no sânscrito como «atma». O espírito no latim como «animus» e no grego como «psyché». «Mens» e «animus» têm significados tão diversos mas tão concordantes: pensamento, inteligência, intento, sabedoria, juízo, discernimento, princípio pensante, coragem, audácia, energia, razão, bom senso, memória. 

Pierre Leroux traz na sua mensagem os pensamentos de Sócrates, do poeta romano clássico Virgílio e de Platão, com o foco na tradição da vida futura. De Sócrates sublinha a opinião muito antiga que as almas deixando este mundo vão aos infernos e de lá retornam, em vida após a morte. E continua dizendo que os vivos nascem dos mortos e, quando a alma e o corpo estão juntos, a natureza de um é a de obedecer e ser escravo e, a de outro é ter o império de comandar. De Virgílio (séc. I a.C. – séc. I d.C.) releva a descrição das almas que vêm beber as águas do rio Lete ou Lethe do latim, um rio do inferno cujas águas faziam esquecer o passado («Lethaeus» do latim, o que produz esquecimento; «lethum» do latim, que significa morte) depois de um certo tempo decorrido e, voltando à luz, continua a vida na humanidade. O poeta Virgílio enaltece a aderência da alma à matéria corporal, após a morte, guardando assim algumas qualidades do mundo visível. Pierre Leroux recorre extensamente a Platão, sobretudo porque este defende a ideia da alma encarnada na condição mortal, diversa, mutante, terminal, perecível, se bem que é imortal em si mesma. Ela sairá dos lugares da matéria e torna-se imortal, permanente, infinita, eterna, numa palavra fica em “Deus”. 

Le Fuseau de la Necessité (1857), por Chevignard. Ilustração moderna de Ananque encabeçando o Fuso da Necessidade, com os círculos das sortes regidos pelas Moiras. Representa o local da descrição do Mito de Er em que as almas são guiadas para a escolha das vidas e destino antes da encarnação, conforme A República de Platão. Domínio Público

Nesta linha da tradição da vida futura, Pierre Leroux evocou também o pensamento de Apolónio de Tiana. Este neopitagórico afirmava que nada morre e nasce, somente em aparência e, quando qualquer coisa passa do estado da essência para o estado natural, chamamos nascer, da mesma forma que chamamos morrer, voltar ao estado da natureza, ao estado da essência, porque jamais qualquer coisa é criada ou destruída.

“Fonte da Vida Eterna”, Cleveland, Ohio. Creative Commons

Em todas as religiões, em todos os tempos, em todos os povos, encontramos o sentimento de imortalidade no seio da humanidade. Pitágoras, Platão, Virgílio, Apolónio de Tiana foram unânimes sobre o renascimento do indivíduo na humanidade. Moisés sem pronunciar o nome de vida futura ou de imortalidade, ensinou onde é a vida futura e, Jesus veio dar um novo desenvolvimento ao pensamento mosaico. A vida atual do indivíduo não é explicada senão pela vida anterior. Estas ideias constituem o epílogo desta obra de Pierre Leroux, que sem dúvida mereceu, da parte de Allan Kardec, a sua inclusão no «Catálogo racional das obras para se fundar uma biblioteca espírita».

Carlos Paiva Neves

Imagem de destaque: Detalhe do Monumento a Pierre Leroux (1903), de Alphonse Jean Dumilâtre (1844-1928), Boussac (França). Domínio Público