Desejar a felicidade soa-nos tão natural nos nossos dias, que questionar esse desejo parece-nos uma coisa estranha, para não dizer absurda. No entanto, é precisamente quando nos deixamos de questionar que abrimos espaço à possibilidade de algum tipo de tirania sobre nós e a nossa vida. Não se trata, pois, de nos opormos à felicidade, mas sim de procurarmos entender como se desenvolveu uma visão redutora, simplista e egoísta da felicidade, que nos foi tirando a liberdade de viver.

A felicidade, hoje em dia, não é algo que se vivencia, mas antes um determinado estilo de vida, um tipo de pessoa que deveremos ser – individualista, resiliente, automotivado, optimista….  -, tornando-se essa a única meta que faz com que a vida valha a pena. Ela é a pauta por que se medem as nossas vidas, os nossos êxitos e fracassos, o nosso desenvolvimento psicológico e emocional, é a escala de avaliação dos nossos esforços e decisões.

Facilmente ouvimos a expressão “eu só quero ser feliz”. No entanto, o problema, na maioria das vezes, não é não termos felicidade, mas antes a incapacidade de a sentirmos quando ela acontece, pois a felicidade não é um lugar a que se chega ou algo que se conquista, a felicidade surge quando vivemos em plena consciência os momentos que tocam a alma. Não é um objetivo a alcançar, mas o resultado de como vivemos e aprendemos das diversas experiências da vida.

A ideia de felicidade é-nos incutida como um mérito resultante de um determinado estilo de vida e, como tal, sendo da exclusiva responsabilidade de cada um, afirmando-se ainda que se a queremos conquistar há que “concentrar-se em si mesmo e na sua vida”. Este estímulo ao individualismo e egoísmo levou-nos a acreditar que não necessitamos uns dos outros, que ninguém tem nada a aprender com ninguém e que qualquer opinião é tão válida quanto qualquer sabedoria. Esta, no entanto, é uma contradição demagógica porque, por outro lado, os mesmos que fazem essas afirmações são os gurus da felicidade, que dizem como as pessoas devem ser e o que fazer para serem felizes.

Desse modo, a venda da felicidade aparece associada ao controlo da vida e das diferentes variáveis, um pressuposto totalmente falso, pois ninguém controla todos os aspectos da vida, o que, consequentemente, acaba por gerar ainda mais ansiedade nas pessoas. Diz-se que uma mentira muitas vezes repetida se torna uma “verdade” e, de facto, assim se passa com a tirania da felicidade: à custa de nos repetirem tantas vezes como é uma pessoa feliz, acabamos por acreditar. A venda da felicidade utiliza naturalmente a linguagem do marketing, fazendo tudo parecer mais fácil do que é, mais perfeito, é como um filme com os cortes das cenas falhadas e repletos de filtros para embelezar.

Uma das estratégias para a venda da “felicidade” foi criar uma confusão entre o que é a felicidade, o prazer e a satisfação, pois a felicidade não se pode vender nem comprar, enquanto o prazer sim, pode-se mercantilizar. A felicidade é distinta da alegria do prazer, pois o prazer não é duradouro, pelo que quando termina exige mais prazeres, já que a sua extinção causa dor. A felicidade é duradoura, pois mesmo quando a sensação prazerosa a que pode estar associada se extingue, a felicidade permanece na alma como uma conquista interior que não pode ser removida, encontrando-se assim ligada à consciência de si mesmo.

A alegria, tal como a tristeza, são emoções desencadeadas pelos acontecimentos, já a felicidade é um estado de alma interno que pode estar presente na aprendizagem, mesmo durante um momento triste. A própria ciência, através dos estudos bioquímicos e imagiologia cerebral apenas consegue percepcionar o prazer, que é estímulo simples, mas não a felicidade, que é um conjunto de processos muito complexo. Buscar o agradável e fugir do desagradável não será certamente a melhor estratégia para quem quiser levar uma vida feliz. Basta pensarmos: quantas coisas agradáveis nos levam à infelicidade e quantas outras desagradáveis nos levam à felicidade?

A Filosofia antiga desconfiava dos desejos, pois eram desestabilizadores da autonomia humana, já que a obsessão que geram levam à perda de discernimento. Como dizia Epicuro, a vida feliz seria a vida não escrava dos desejos. Assim, o próprio desejo de felicidade seria o caminho para tornar o homem infeliz.

Epicuro considerava que havia três tipos de desejos: os desejos naturais e necessários (comer, beber, vestir, ter um tecto) ; os desejos naturais e não necessários (cozinha refinada, roupas requintadas, habitação luxuosa); os desejos que não são naturais nem necessários (poder, honras, grande luxo). Dizia que para a felicidade é suficiente satisfazer os primeiros, enquanto que aos segundos pode-se procurá-los, apesar de ser melhor desistir deles, mas os terceiros são de evitar.

Para muitas teorias actuais, a busca da felicidade é o impulso mais natural do ser humano, a mais elevada realização humana, mas será que realmente as obras mais grandiosas e duradouras que realizamos na vida, quer individualmente quer colectivamente, são aquelas que realizamos para obter felicidade? Ou será que, quando essa é precisamente a nossa motivação, não é aí que fazemos desmoronar os nossos esforços e os nossos empreendimentos? Quando é que fracassam as relações humanas? Quando as criamos desejando que produzam felicidade, já que naturalmente irão surgir dificuldades e momentos difíceis, mas como o que queríamos era momentos agradáveis, fracassamos. Todas as coisas importantes da vida são momentos felizes? Claro que não e, talvez por isso, fazemos tão pouca coisa realmente importante e duradoura, pois algo dessa dimensão requer esforço e sacrifício.

A felicidade que se vende é a “felicidade” psíquico-emocional, é a “felicidade” das sensações, reais ou imaginárias. A felicidade, ou antes, o prazer, tornou-se a finalidade suprema da vida, pouco importando os meios para a atingir, assim como pouco importam as consequências negativas que tais satisfações possam causar nos outros.

Será a felicidade a meta mais importante para a qual devemos dirigir todo o esforço da nossa vida? Não se trata, naturalmente, de negarmos a felicidade, mas sim de não termos uma visão tão redutora da nossa vida. Que espaço deixamos para os valores, para a justiça, a solidariedade, a amizade, o amor, etc.?

Uma ideia muito apregoada pelos gurus da felicidade é que esta depende de uma perspetiva positiva sobre nós próprios e o mundo à nossa volta. Contudo, não deixando de ser verdade que a nossa relação emocional com as situações depende muito da nossa perspetiva mental sobre elas, também devemos ter cuidado em não levar essa ideia a uma forma de “hipnose” que nos faz criar uma falsa realidade: por um lado, vendo-nos a nós mesmos como uns “budas” perfeitos e, por outro, vendo o mundo à nossa volta como um paraíso. Que não se perca o bom-senso e o sentido critico, pois a tolice muitas vezes se assemelha à felicidade. Dizia Flaubert (romancista do século XIX) que “ser tolo, egoísta e ter boa saúde são as três condições exigidas para ser feliz. Mas se a primeira falta, tudo está perdido”.

Propaganda, Creative Commons

É preciso termos cuidado com as muitas promessas de felicidade, já que nem tudo o que reluz na “felicidade” é ouro, embora, à custa de tanto passarmos lustro nelas, vão brilhando e cativando. As técnicas vendidas para gerar felicidade e sucesso fáceis produzem resultados muito efémeros e que são essencialmente sensações, o que gera de seguida a necessidade de se consumir outra técnica, outro livro, outro terapeuta ou orientador… e assim se vai alimentando o comércio da felicidade. Numa série sobre uma agência de publicidade com o título Mad Men, o personagem Draper diz algo muito interessante: “A publicidade baseia-se numa coisa só e em mais nada, a felicidade (…) Mas o que é a felicidade? A felicidade é um momento que acontece imediatamente antes de precisarmos de mais felicidade”.

A partir de meados do século XX surgiu uma ideologia neoliberal, que na verdade se iniciara já nos anos de 1920, a ideologia do ego, promotora da felicidade individual em substituição da busca do bem colectivo, associando assim a felicidade ao individualismo. Com esta nova ideologia economicista do bem individual mudou-se a alma e o coração do ser humano.

Viciar e satisfazer o egoísmo é útil para não se pensar no colectivo, tornando assim os problemas sociais como fracassos dos indivíduos, incapazes pois de vencerem e serem felizes, e não um problema colectivo de valores. Esta ideologia acabaria assim por criar uma promiscuidade entre a economia, a psicologia e a política.

A visão individualista da felicidade é, sem dúvida, uma das grandes diferenças na abordagem da felicidade entre os antigos filósofos e as actuais ideologias. Os antigos filósofos nunca dissociaram a felicidade individual da colectiva.

Para percebermos o quanto esta forma de tirania confundiu a mente e os valores humanos citamos um inquérito em que se perguntava quais eram as coisas mais importantes para se ser feliz? E a maioria das respostas considerou a família, a saúde, o trabalho, a amizade e a espiritualidade como pilares da felicidade. Mas, quando se perguntou que coisa mais gostaria de se ter para ser mais feliz, a grande maioria respondeu “dinheiro”, item que ficou mesmo à frente da saúde. Então sabemos o que nos pode fazer felizes, mas procuramos os meios que nos fazem crer levar à felicidade.

A busca da felicidade gerou os “felicicondriacos”, os ansiosamente concentrados no seu eu. Afirmando muitos pensadores modernos que o homem é visceralmente egoísta, é certo que não podemos negar que o egoísmo existe no ser humano, mas também existe uma outra força no seu coração e igualmente universal, a generosidade, que permite que ao se trabalhar para a felicidade dos outros, se faça também crescer a nossa. Ao interessarmo-nos pelo outro reduzimos o nosso egoísmo, que é a causa principal de infelicidade, pois como se pode ser feliz num mundo infeliz? A verdadeira felicidade não pode estar dissociada do altruísmo, de uma disponibilidade, de uma serenidade (que o egoísmo não dá) e da força enorme de se viver o Bem e a Bondade. Aristóteles afirmava precisamente que “a felicidade é a atividade da alma conforme à virtude”.

Depressão, Creative Commons

O Narcisismo, com o culto de um superego, tem gerado mais solidão e mais neuroses, desenvolvendo com frequência depressões, desespero e ansiedade, além de formas de dissociação com a realidade do mundo em redor. Num recente estudo, 40% da população europeia afirma sentir solidão.

Criou-se o falso mito de que as sociedades mais individualistas geram indivíduos com maior nível de satisfação e de felicidade, pois nessas sociedades têm mais liberdade para realizar as suas escolhas. Partindo desse pressuposto, concluiríamos então que vivemos hoje mais felizes do que em qualquer outro momento da história. No entanto, cada vez mais milhões de pessoas no mundo procuram terapias, produtos e serviços para a felicidade, além de toneladas de antidepressivos e ansiolíticos serem consumidos, enquanto aumenta também o número de suicídios. Um estudo na Grã-Bretanha, país cuja riqueza nacional triplicou em meio século, refere que, em 1957, 52% da população dizia-se muito feliz, enquanto em 2005 esse número era de 36%.

O filósofo estoico Séneca mostra-nos um outro caminho, o de que a felicidade está em relação com a ideia do Bem e só a alma virtuosa é capaz de fazer nascer dentro de si esse estado de felicidade. Pelo contrário, o vicio, o egoísmo, a vaidade e a soberba são a desarmonia da alma, que impede de distinguir o Bem e consequentemente de sermos felizes. Séneca afirma claramente que uma pessoa egoísta não pode ser feliz. No mesmo sentido, o Epicuro diz que a felicidade só se alcança através da “ataraxia”, que significa a “quietude absoluta da alma”, sendo o desejo, fonte de inquietação, precisamente o impedimento para a poder alcançar.

Etimologicamente, a palavra “feliz” vem do latim “felix”, que também significa “fértil”. A felicidade é por isso um sentimento generoso de gerar mais bem à nossa volta. Felicidade, não é uma conquista de fora para dentro, mas algo que nasce de dentro e irradia para fora. Para se ser feliz é necessário aprendermos a fazer boas escolhas, aprender a não responder a todas as solicitações, a sabermos definir as prioridades. Deveríamos perguntar-nos: fazemos as nossas escolhas ou as que nos fazem escolher? Procuramos satisfazer as nossas reais necessidades ou aquelas que nos criam? O nosso modo de vida actual favorece a dispersão mental através das múltiplas estimulações externas, não deixando espaço nem tempo na nossa vida para construir a interioridade. Não há espaço para o silêncio, para escutar música, para a leitura, para a contemplação da natureza ou realizar uma actividade artística, bens preciosos para fazer crescer e fortificar a nossa vida interior. A felicidade não pode existir quando negamos e nos afastamos do nosso ser profundo.

Holi Festival na Europa, Creative Commons

Muitas das correntes e gurus da felicidade pegaram em folhas “arrancadas” de metodologias de trabalho e desenvolvimento integral de escolas de filosofia do ocidente e oriente, escolhendo o que lhes pareceu mais agradável, mutilando-as e misturando-as a seu gosto, do que resultaram fantasias que alimentam o egoísmo, contrário a todo o saber de onde foram arrancadas e que, em muitos casos, se transformam em passos de ilusionismo vazios de uma verdadeira magia transformadora da alma. São técnicas e receitas para consumo rápido e não caminhos de transformação profunda ou estrutural da psique e da mente, que requerem tempo e esforço. São direccionadas apenas para aspectos práticos, aplicáveis para atingir fins, oferecendo retornos rápidos com o mínimo de esforço. Procura-se que o individuo seja o manipulador da sua própria psique através de técnicas para a enganar, não trabalhar sobre si e poder melhorar-se. Criam a ideia de que as pessoas devem evitar qualquer emoção ou memória negativa e, antes, concentrarem-se nas realizações, sentimentos e memórias positivas, fazendo da felicidade um hábito, um comportamento automatizado. Nesta linha, as pessoas não procuram conhecer-se e gerirem quem de facto são, mas sim moldar o seu eu de acordo com certos pressupostos e exigências quanto ao que devem pensar, como devem agir e o que devem sentir. A vida interior que muitas Filosofias da antiguidade e correntes espirituais procuravam fazer crescer no ser humano, para que a partir dessa dimensão se sentisse naturalmente mais unido ao outro, foi manipulada para se converter em egocentrismo e alheamento do mundo.

Devemos ter cuidado com a falsa “vida interior” tantas vezes apregoada, pois sendo verdade que dentro de nós está o sentimento de paz ou de guerra na forma de vermos as coisas, devemos, no entanto, ter cuidado com a subjectivação do mundo que nos faz ver tudo subjectivamente, deixando-se de ter sentido critico, sentido de contestação, vontade de mudança, com a falsa “vida interior” a tornar-se numa fuga para um castelo sem portas nem janelas. Um outro perigo encontra-se no enraizamento de sentimentos de incerteza, insegurança, impotência e ansiedade sobre o futuro, que se tornam um terreno fértil para nos virarmos para dentro como “salvação”, não sendo uma verdadeira busca interior, mas antes uma “sobrevivência psicológica”. Tal postura faz lembra-nos a do mundo medieval, em que a promessa de um paraíso fazia suportar a miséria moral e física.

Face à pressão de um trabalho desumanizado que suga toda a energia da pessoa, toda a sua vontade e ânimo, se no final do dia meditar 10 minutos, fizer umas respirações profundas, umas posições para relaxar as tensões musculares, etc, então essa sensação, por contraste com a pressão do seu dia, é de facto tão intensa que lhe parece um estado de felicidade. No entanto, o dia seguinte será igual ao anterior. Apesar de nos sentimos mais tranquilos, algo que em si não é mau, não podemos, no entanto, confundir o bem-estar com a felicidade, duas palavras que praticamente se tornaram sinónimos, sendo que bem-estar é bastante diferente de estar bem. Não há provavelmente nada mais contrário à felicidade do que desejar-se o bem-estar, pois se queremos crescer, se queremos superar obstáculos, se queremos realizar os nossos sonhos, teremos que sair do bem-estar, teremos que fazer esforços, teremos que sentir as dores de crescimento.

O “ser feliz” tornou-se uma droga, já não se consegue viver naturalmente e usufruir dos diferentes momentos e oportunidades com que a vida nos brinda, mas todos os dias temos que fazer algo para gerar sensações de felicidade: ginásio, meditação, couching, massagem, etc. Se nalgum dia não se consome esses “produtores de felicidade” é como se ressacássemos, como se não se vivesse.

Entre a expressões de moda para a felicidade encontra-se a “resiliência”, como um aceitar das coisas como são, saber adaptar-se e viver com elas. A resiliência tornou-se assim um conceito útil à aceitação passiva das circunstâncias. Por seu lado, os Estoicos expressavam uma dimensão mais activa da relação a estabelecer com as circunstâncias, afirmando que há coisas que dependem de nós e outras não, sendo que há muitas mais coisas do que imaginamos a depender de nós. Então, em relação às que não dependem de nós, havia que as aceitar, procurando com elas chegarmos onde queremos chegar; já em relação às que dependem de nós, a essas deveríamos dedicar o nosso cuidado, vontade e acção.

Redes Sociais, Pixabay

A Internet, as redes sociais e telemóveis tornaram-se armas poderosas para a tirania da felicidade, ao recolherem dados para quantificar os estados psíquico-anímicos como forma de antecipar as tendências de mercado, previsões eleitorais, personalização da comercialização de determinados produtos e encorajamento ao consumo. Esses dados podem ser utilizados para influenciar o modo como entendemos a felicidade, as relações interpessoais e a relação com o mundo sem que tenhamos consciência do processo. Desse modo é moldada a informação que nos chega, levando a cada um o que mais contribui para a sua “felicidade”, para os seus gostos e para as suas opiniões, condicionando a visão da realidade e o modo de pensar, pois assim não temos contacto com outras ideias, perspectivas e campos de interesse. É bom que fiquemos mansinhos, sem inquietações nem sofrimento. Entre o que sabemos e não sabemos destes métodos está uma experiência realizada pelo Facebook em 2014 sem qualquer conhecimento dos utilizadores, em que manipulou as páginas de 689 mil pessoas para que se sentissem mais positivas ou negativas através das publicações que lhes apareciam, enquanto iam monitorizando as reacções.

A indústria da felicidade foi criando métodos de quantificação da felicidade, já que essa medição era fundamental para se poder comercializar. Como se fosse possível comparar níveis de felicidade entre as pessoas, como se fossemos todos iguais e com as mesmas necessidades e perspectivas para a vida. Assim, um estudo em Inglaterra, levou especialistas da felicidade a determinar que 7 milhões de libras era o valor que os britânicos precisavam para ser felizes.

Como numa sociedade consumista não se espera, nem é desejável, que se adquira um produto e se fique satisfeito, mas que pelo contrário se deseje em seguida um outro melhor, a mesma estratégia é aplicada à indústria da felicidade, criando assim uma insatisfação constante e uma necessidade de conquista de mais e melhor. É a ansiedade do “mais”: estar mais em forma, sermos mais saudáveis, mais ricos, mais inteligentes, mais calmos, mais produtivos… tudo já e agora! O “autoaperfeiçoamento” tornou-se uma obsessão mercantilista. Há sempre uma nova fórmula mágica que faz as pessoas saltarem de uma para outra coisa, criando uma sensação de se estar sempre na vanguarda, é a expansão horizontal da nossa sociedade que nos afasta do crescimento vertical de aprofundamento e elevação. Isto gera em muita gente formas obsessivas de egocentrismo, manifestando-se nuns como uma fantasia sobre si mesmos, por vezes chegando a roçar arrogância e soberba, e noutros, pelo contrário, como um sofrimento e sensação de impotência, incapacidade e autodepreciação.

Expressar que não somos felizes ou que não se está feliz com a nossa vida é hoje encarado como uma fonte de vergonha e culpa, pois as pessoas preferem, mesmo que sendo uma mentira bem construída, ver-se e apresentar-se a si mesmas como felizes. A felicidade aparece assim como resultado da autoestima, de uma admiração narcísica de nós próprios, uma imagem que, tal como é apregoada, não existe, pois nunca somos “tão” como queríamos ser. Logo, quando nos deixamos de ver como seres em construção, deixamos de nos desenvolver.

Nesta construção de uma imagem feliz de si mesmo, as redes sociais funcionam como um perfeito marketing onde se mercantilizam histórias de felicidade, reproduzindo as suas próprias novelas nas redes sociais. Tornou-se uma espécie de “pornografia emocional”, moldando a forma como as pessoas se devem sentir consigo mesmas e na relação com o mundo à sua volta. As redes sociais tornam-se assim excelentes meios para criar inveja nos outros, o que é algo que deixa muita gente feliz: imagens em paz ou cheios de alegria num lugar verde… meditando… Enfim, gerando a ideia de que se o outro tem, eu também tenho que ter, senão sou um ser incapaz e infeliz. Como diziam os antigos filósofos, tais como os estoicos e os budistas, a inveja é o caminho para a agitação e logo para a infelicidade.

As redes sociais têm um forte impacto de mensagens de felicidade, muito especialmente nas gerações mais jovens, em que têm que parecer felizes a qualquer custo para terem likes e sentirem-se admirados, e em que os sinais de tristeza ou vulnerabilidade são recebidos com silêncio, rejeição ou, pior ainda, com formas de bullying. É a sujeição à pressão de uma imagem de sucesso e felicidade para não se ser estigmatizado. A pressão da sociedade individualista onde cada um tem que ser bem-sucedido e feliz (senão é incapaz e fracassado) é assim, em grande parte, responsável pelo aumento do stress, ansiedade, depressão, sensação de vazio, desespero e uma série de outros transtornos psíquicos e físicos.

A “felicidade” tornou-se também um instrumento útil para criar novas noções e modos de trabalho e modelos de trabalhador, tão presentes em técnicas “motivacionais” de empresas. Uma das teorias que sustentou e legitimou esta nova relação com o trabalho e gestão empresarial foi a da “Pirâmide das Necessidades” de Maslow, em que as pessoas têm que se comprometer com a empresa se querem atingir a sua necessidade mais importante, a autorrealização. Generalizou assim a crença de que a necessidade de segurança assumia uma importância crucial, já que para “crescer como pessoa” necessitava de uma base económica segura. Desse modo, a psicologia da felicidade foi ao encontro da legitimação da ideologia do liberalismo económico, relacionando o êxito no local de trabalho com satisfação pessoal e a ideia de que um trabalhador é feliz porque é bem-sucedido. Foi igualmente importante a conclusão de que a felicidade do trabalhador influencia o desempenho do trabalho, pelo que muitas empresas possuem departamentos especializados nos recursos humanos para proporcionarem momentos de “felicidade” aos seus trabalhadores. Desse modo vão transferindo a busca de realização humana da sua esfera privada para a empresa que lhes proporciona bem-estar, sentido de superação e de sucesso. A nossa profissão passou a ser sinónimo daquilo que somos e simultaneamente perdemos a nossa individualidade e degradámos as relações humanas

O facto de se ter tornado a felicidade o bem supremo para o ser humano levou a postular a máxima de que quanto mais felizes somos, melhores seres humanos somos, o que gerou uma perversão da própria moral: uma pessoa feliz é uma pessoa boa e uma pessoa que se sinta mal é uma pessoa má. Esta mistura entre sensações/sentimentos e valores morais tem implicações inimagináveis: o que me é agradável é bom e o que é desagradável é mau.

A tirania da felicidade coloca-nos na encruzilhada de termos de escolher entre sofrimento e bem-estar, defendendo que para se ser feliz há que erradicar o sofrimento da nossa vida. Assim, o conflito felicidade-infelicidade gerou uma série de correlações simplistas e de automatismo psicológico: a felicidade como estado normal, saudável, bom e positivo, por oposição à infelicidade como um estado anormal, doentio, mau e negativo.

Tal leva a considerar que qualquer emoção agradável é boa e qualquer emoção desagradável é problemática e má. Reduzir a nossa vida às emoções agradáveis debilita-nos e torna-nos escravos, além de inaptos para as relações humanas, já que não seremos capazes de gerir a diversidade de aspectos que compõem as emoções e tornando impossível a durabilidade das nossas relações humanas. A própria educação já vai formatando os jovens nessa direcção, só lhes proporcionando o que é agradável (o ensino tem que ser lúdico) e querendo apenas o sucesso e a conquista. O resultado é estarmos a gerar adultos cheios de problemas, com hipersensibilidade, dependentes da aprovação dos outros, necessidade de protecção dos pais, incapazes de lidar com os conflitos internos e externos, assim como com os sentimentos negativos e frustrações, algo que sempre surgirá na vida.

Várias emoções, Piqsels

Emoções positivas ou negativas são uma classificação simplista e uma forma infantil de lidar com as diferentes situações da vida e, mesmo, de definir a felicidade e infelicidade. O importante é o nosso fundo de valor e os nossos princípios morais, que irão trabalhar essas experiências e emotividade. Transformar as emoções é diferente de as anular ou substituir. Por exemplo, a revolta pode ser destruidora, mas também necessária no momento de enfrentar injustiças; a nostalgia pode gerar tristeza e um aprisionamento ao passado, mas também pode gerar a segurança de um sentido de pertença, de um enraizamento e confiança. A tirania do positivo em relação com a felicidade leva-nos a ver a tristeza, o sofrimento e a mágoa como uma anormalidade da vida, como resultado de não sermos capazes de sermos felizes. Não há vida intensamente vivida, uma vida de crescimento, sem que haja dores, perdas e sacrifícios. Gerou-se assim uma positividade tóxica, uma pressão social para que estejamos sempre num estado mental de emoções positivas. O excesso de foco na felicidade tornou os momentos difíceis ainda mais dolorosos, por isso cada vez existem mais depressões. A obsessão pela felicidade não nos deixa serenos, que é uma qualidade essencial para se poder discernir o que nos faz bem e o que nos faz mal.

Para a tirania da felicidade, o homem não pode sentir angústia, quando, na verdade, a angústia faz parte da alma humana e da sua percepção de ser incompleta. Então, para não nos assolar essa inquietação há que criar fugas, diversão constante, achar-se uma pessoa muito boa, quando não perfeita, ou então seguir e cumprir simplesmente as modas de pensar ou mesmo “doutrinas” sem reflectir e sem questionar.

Para a sociedade atual, é perigoso o ser humano ter emoções negativas, pois isso gera-lhe inquietação e inconformismo, sendo melhor ficar na tranquilidade das emoções positivas, que se sinta “feliz”. Já Platão, na República, retratou este método utilizado pelos amos da caverna para manter os prisioneiros tranquilos.

A felicidade tornou-se um objectivo em si mesmo, como algo que se pode adquirir de alguma forma, e não o sentimento resultante de uma vida vivida em prol do nosso melhor e de uma sociedade melhor. Ao tornar-se uma obsessão, tornámo-nos seus escravos e daqueles que ditam os preceitos da felicidade. Somos seduzidos por uma panaceia de felicidade que nos proporcionará uma saída para todos os problemas. Dizia Séneca: “Não serás jamais feliz enquanto fores torturado por desejares ser mais feliz”

O culto da felicidade torna-se assim uma distração que vai fazendo crescer a nossa vulnerabilidade, impotência e ansiedade. É certo que o ser humano necessita de esperança, mas uma esperança baseada no querer conhecer e entender, em ter sentido critico, em desenvolver a fortaleza para enfrentar a dificuldade e não enterrar a cabeça na terra, em querer conhecer-se em toda a sua dimensão para se poder trabalhar e transmutar, em não ser “resiliente” na aceitação da injustiça, mas sim de ser capaz de a contestar, não acreditando apenas na sua salvação mas na possibilidade de em conjunto e em cooperação sermos capazes de construir um presente e futuro melhores.

Temos que saber trabalhar dentro e fora de nós e não nos entrincheirarmos num pseudo paraíso de paz e felicidade interiores. A felicidade reside essencialmente dentro do Ser, no nosso contentamento interior através das nossas realizações, daquilo que sentimos e compreendemos, da nossa capacidade de integrar as diversas experiências em nós e de nos tornarmos seres humanos mais conscientes e de maior valor moral.

Podemos deixar de fazer da felicidade o centro da nossa busca e colocar os valores éticos acima dela, pois a verdade, a bondade, a justiça e a beleza serão sempre os motores morais revolucionários da nossa vida e da história da humanidade.

Assim, certamente, não procuraremos a felicidade, mas antes viveremos mais felizes.

José Ramos

Bibliografia:

A Ditadura da Felicidade, de Edgar Cabanas e Eva Illouz

Du Bonheur – un voyage philosophique, de Frédéric Lenoir

Imagem de destaque: Felicidade. Pixnio