A Terra é um ser vivo, embora os jogos de Maya façam que, para os homens, esta não seja mais do que o receptáculo ou habitação onde decorre a nossa existência. Deste modo, a Terra não assume mais importância do que a que pode ter um conjunto de tijolos bem unidos, e até não faltam homens que, cegos a tudo pela ilusão, não imaginam como é que os humanos não foram os construtores de algo tão “simples” como a Terra.
No entanto, a Terra vive e, entre os seus muitos mistérios, encerra o de nos dar abrigo na sua superfície, suportando – pois não há outra expressão – o uso e abuso que dela fazemos e das suas propriedades. Tal como o nosso corpo humano leva consigo milhares de infinitesimais vidas, das quais nem sequer temos consciência, também a Terra nos leva sobre si, e o facto dos que são transportados estarem vivos, não impede que o portador também esteja.
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Como todos os seres vivos, a Terra tem uma alma e um corpo. Da sua alma pouco podemos dizer, já que apenas conhecemos a nossa, e dificilmente podemos saber algo de outras. A julgar pelo que Platão ensinava, algo podemos deduzir da alma da Terra, desde o momento em que ela se manifesta num corpo quase esférico. Dizia Platão que a esfera era o mais perfeito dos corpos geométricos, e que as formas vivas tendiam para a esfera à medida que se iam aperfeiçoando.
Por outro lado, podemos falar do corpo da Terra, pois entre os véus de Maya, são muitas as coisas que se deixam entrever.
O seu grande corpo – comparando com o nosso – desfruta na sua própria dimensão das mesmas características que os humanos: nasce, cresce e morre. Entretanto, enquanto vive, pode padecer de enfermidades, mudar de posição, sentir-se bem de saúde, dormir ou estar desperto. Assim se compreendem melhor muitos fenómenos que, explicados apenas sob a lente científica, resultariam frios e ininteligíveis.
Assim, cabe a possibilidade de dar uma saída lógica às muitas tradições que imperam sobre grandes dilúvios, pavorosas glaciações, fenomenais degelos… Suponhamos que a Terra adoece e, para remediar as suas febres, se cobre de gelo para refrescar-se; dorme e descansa sob a fria camada que ela mesma pode produzir pelo poder da sua vontade, até que o mal esteja curado. Então, começam os degelos, tornando-se dilúvios… Os seres humanos, alheios ao processo do planeta, apenas vivem os dramas destes grandes cataclismos, e registam-nos através de mitos perduráveis que encerram profundos significados.
Suponhamos que, como todo o ser vivo, a Terra tenha, por vezes, necessidade de mudar de posição. Apesar do movimento destes grandes corpos estar mais disciplinado que nos homens, por muito pequeno que seja esse movimento, seria amplamente manifesto para os seres vivos que se apoiam sobre eles. E assim se explicam aquelas outras tradições que nos recordam a mudança que sofreu o eixo da Terra, não em uma, mas em várias oportunidades, ao passar de uma posição vertical para outra mais inclinada, como a que vemos na época atual.
Suponhamos que a Terra tem idade; que, quando jovem, a sua temperatura era suave e cálida; mas à medida que envelhece está lentamente a arrefecer, como se a vida se estivesse a retirar dela. E isto nos faria entender algo das mudanças de temperatura que os cientistas começam a registar, ou as pequenas micro glaciações que se sucedem, como se a Terra se deitasse a dormir uma sesta de vez em quando, diminuindo assim o seu calor vital.
Na Terra há vida porque a vida germina nela. A Terra é boa para os homens, para os animais, para as plantas. Gera nos seus seios profundos as mais variadas e prodigiosas pedras preciosas, e produz no seu interior oculto mudanças geológicas desconcertantes, que se traduzem em carvões ou em diamantes, em restos mortais de velhos seres ou em petróleo. Quem foi capaz de explicar o prodígio dos componentes da Terra, perfeitamente adequados e transformados até constituir o corpo físico dos animais e dos homens? Se cremos que o nosso corpo está vivo, não podemos deixar de aceitar a vida da Terra, uma vez que não há nada nos nossos corpos que não venha dela. Poderá algo inerte formar algo vivo?
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Às vezes o véu de Maya torna a visão difícil, e não é fácil ver as semelhanças entre a vida da Terra e a vida dos homens. No entanto, “assim é acima, como é abaixo”, como diz o velho aforismo hermético.
Também a Terra tem um sistema de irrigação e de respiração. Para nós, continuam a ser um mistério os seus mares, o sentido dos seus rios, as correntes de ar que circulam pelo interior do planeta configurando gases que, na sua oportunidade, emergem da boca dos vulcões… Para nós, continua a ser um mistério a psique incansável do planeta, que nunca conheceu o desânimo e continua a cumprir, inexoravelmente, com as suas funções. Ah, se pudéssemos nós alcançar essa continuidade, esse sentido profundo do dever, sem nos cansarmos nunca, sem o fardo de um entusiasmo que se esgota… Para nós, continua a ser um mistério a inteligência da Terra que, em mais do que uma oportunidade, tem contrariado as leis dos cientistas, modificando ritmos, acelerando ou atrasando processos, e até mudar a volta da sua órbita para não chocar contra um cometa…
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De todos os seus mistérios, a Terra apenas nos oferece o conhecimento da sua superfície. Pouco ou nada sabemos do que existe no seu interior; podemos sonhar, podemos “viajar ao centro da Terra”, mas na verdade, Maya faz com que conheçamos apenas o solo em que assentamos.
Sempre se considerou o planeta, não pelo seu conjunto, mas pela parte do conjunto que nós utilizamos. A maior parte do planeta é constituído por água; a terra firme é uma parte menor, mas é a que nos interessa, porque é nela que nos apoiamos; pelos mares circulamos, mas é na terra firme onde vivemos.
Apoio, assentamento, base segura: este é o símbolo da Terra pelo que ela tem de terra. Esse é o símbolo da matéria que nos suporta. Quando os antigos alquimistas comparavam a terra com a matéria, não o faziam no sentido pejorativo do que é rude e sensível. A matéria é o tecido que nos sustém, o que pode aguentar e ainda portar outros princípios mais subtis. Portanto a terra sustém-nos e nós sabemos que nela nos podemos sentir firmes. É matéria, é a nossa matéria, a que nos forma, nos conforma e nos suporta. É pele e esqueleto. É base de assento e base de mistérios; nela podemos afundar as mãos – as nossas mãos de terra – e nela afundam as raízes as árvores. Dela surgem estranhos metais e pedras brilhantes, e nas recônditas cavernas escondem-se as águas e os ventos de antigos trabalhos que pequenos génios laboraram na sua altura.
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A Terra é bela. Há nela um princípio de harmonia que caracteriza por igual todos os seres vivos, tenham o tamanho que tiverem. Há nela um equilíbrio que nos fala da mão de Deus, ou dos “dígitos de Deus”, como diziam os gregos clássicos. As suas cores misturam-se prodigiosamente, dando lugar a uma sinfonia de matizes, como desafio à imaginação do mais fervoroso dos artistas. Há nela um delírio de formas que supera toda a capacidade humana de criação. As rochas adquirem contornos estranhos… As gemas organizam-se segundo esquemas geométricos… E, às vezes, alguma gruta abre-se ante a curiosidade do homem, demonstrando que mesmo no interior do seu corpo, os dedos de Deus puseram beleza na Terra.
E Maya vestiu com fios de ilusão esta esfera que gira ritmicamente no espaço, prendendo-nos juntos – à Terra e a nós – neste grande jogo da Vida.
Delia Steinberg Guzmán
Extraído do livro Os Jogos de Maya. Editorial Nova Acrópole
Imagem de destaque: Gaia (canto inferior direito) ergue-se do chão, detalhe do friso da Gigantomaquia, Altar de Pérgamo, museu de Pérgamo, Berlim. Creative Commons