Na sinusoide da existência, há momentos que sobressaem da linha média, aos quais chamamos momentos de vida; e há outros que ficam abaixo do horizonte: são os que chamamos morte. Na realidade, tudo é existência, seja de um ou do outro lado da linha divisória. O fundamental é a passagem dessa linha, seja para nascer ou para morrer.
Tanto ao nascer como ao morrer, estamos sós. Não importa quantos seres haja ao nosso redor nesses instantes: na verdade estamos sós. E o mais provável é que estejamos sós ao longo da vida. Não porque não possamos compartilhar as nossas horas com alguém, mas sim porque, no fundo, ninguém pode introduzir-se na nossa alma, e ela é, por natureza, solitária.
É difícil desvendar o mistério da vida e da morte. Se a morte é algo que nos sobressalta, face à nossa ignorância, a vida e o porquê de virmos à vida não deixam de ser problemas quase irresolúveis para a mentalidade humana.
Provavelmente, em algum momento, a nossa alma desprendeu-se de um Algo muito maior que a continha. Ela desprendeu-se na procura de novas experiências, guiada pela ingénua falta de conhecimento que têm as almas inocentes. Assim chegou à terra, só, terrivelmente só e arrancada do seu seio celestial. E desde então vagueia pela terra, recoberta por vezes de matéria, e outras vezes não, na procura da chave que lhe permita regressar à sua origem primeira, ali onde não estava só, porque também não estava dividida. Essa chave é o conhecimento. Saber é poder. Alguma vez, assim como partimos, também poderemos voltar.
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A solidão é uma grande aliada de Maya. Quanto mais sós nos sentimos, mais nos acolhemos nos jogos da ilusão, para apagar essa sensação de angústia interior.
Começa o novo drama: o da convivência. Almas sós que querem viver junto a outras almas sós, sem, contudo, chegarem a entender-se jamais por completo, já que a solidão é o sinal que marca todas.
A convivência cria formas variadas, desde o amor simples que une dois seres, até aos mais complexos sentimentos que caracterizam uma sociedade e a Humanidade. Surgem famílias, grupos, cidades, empórios, igrejas, partidos políticos… Todos são redes de Maya nas quais o homem cai enredado acreditando que, por fim, venceu a solidão. Mas quanto mais se adentra, mais só volta a estar.
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Dizia o sábio Platão que o homem é formado “do mesmo e do outro”. Nada mais certo. O mesmo é o indiviso que subjaz no interior: é a alma só; o outro é a máscara que sai para o mundo e se relaciona de múltiplas maneiras fugindo da solidão.
Com a máscara posta, pode-se jogar de muitas maneiras a estar acompanhado. Nasce então a amizade, o amor, o sentimento filial e o paternal, o carinho por todos os seres humanos e até pelos animais e plantas. Em graus mais subtis, o amor volta-se para o infinito das estrelas, e então o homem é capaz de conceber Deus e amá-lo pela perfeição com que o Seu mundo se manifesta.
Mas, quantas são as desilusões! Há amizades que falham, amores que morrem com o tempo, filhos que atraiçoam os pais, pais que abandonam os seus filhos, seres aos quais nada importam os demais… Há uma ciência que arrefece o brilho romântico das estrelas, e muitas religiões que se guerreiam pelo mesmo Deus. Que fazer?
É aqui onde o homem retira com repulsa a sua máscara exterior e se encerra desesperado no seu interior, pensando que jamais poderá evitar a solidão. E é aqui que surge a grande surpresa.
É no próprio eu, no ser interior, onde se encontra o verdadeiro amigo, o que sempre acompanha, o que está presente e imutável tanto quando sofremos como quando desfrutamos, o que nos vê viver sem repreender, e nos puxa para cima, sempre para cima, sem pretender por isso nenhuma recompensa.
O milagre prossegue. Quando se descobre este verdadeiro amigo, pai e irmão, tudo volta a fazer sentido. Ler, ouvir música, desfrutar o encanto da Natureza já não são atitudes de um solitário reconcentrado, mas de homem acompanhado pelo seu verdadeiro eu.
Agora sim é possível relacionar-se com os outros humanos, porque em cada um deles há outro eu companheiro com as mesmas inquietações que o amigo que acabamos de descobrir. Agora sim é possível a compreensão e o sentimento. Quem não partiu da auscultação do seu próprio interior, dificilmente pode tentar o mínimo conhecimento do que é o exterior. Primeiro para dentro, e depois para fora.
Não é que com isto vá desaparecer a solidão: essa é a condição própria da alma. Mas sim, podem-se unir as solidões e brincar com os véus de Maya enquanto a vida dura. O partilhar de uma desgraça é uma forma de união. E então, é provável que as almas procurem unir-se face à desgraça compartilhada de ter perdido a origem primeira, e desejem ardentemente o retorno a esse ponto onde não existe a divisão.
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A solidão é um produto da divisão. Quando tudo é Uno, onde cabe a solidão? A solidão é, portanto, separação, desunião, divisão.
Quanto mais dividimos, mais solidão existe, pois criamos novas partículas que, por sua vez, estão sós e separadas das demais.
Este é um dos jogos de Maya: dividir até ao infinito, multiplicar as formas e incentivar-nos a fazer o mesmo, fazendo-nos acreditar que na quantidade está um paliativo para a solidão.
Não é a quantidade o que retira a solidão: o muito atulha e perde qualidade, posto que, de uma mesma essência, se multiplicaram as presenças. Há que procurar o pouco e bom, profundo e elevado ao mesmo tempo.
É possível que assim, conhecendo o jogo de Maya, consigamos ultrapassar a ilusão e reconhecer as partes que faltam à nossa alma, as que perdeu na sua descida à terra, e as que tem de recuperar para voltar a ser uma e não mais se sentir só.
– Estás só?
– Sim…
– Queres estar comigo?
– Bom…
E lá vão dois, de mão dada, unidas as suas máscaras de carne, enquanto as almas assomam curiosas aos seus olhos para ver se nesse ser está o seu eu gémeo que perdeu na primeira divisão.
Delia Steinberg Guzmán
Extraído do livro Os Jogos de Maya
Imagem de destaque: O Caminho Solitário, Alexander Mann. Domínio Público