Consideramos que todo o homem e toda a mulher são naturalmente filósofos. A capacidade ingénita que temos desde a infância de perguntarmos sobre o mundo e procurar respostas atesouramo-la dentro do nosso coração. Então, a vida, com as suas distintas facetas, vai adormecendo essa aptidão, vai recobrindo-a com uma série de elementos que nos fazem olvidar esse filósofo interior.
Cada um de nós, de alguma maneira, foi esmagado pelo circundante e pelos nossos próprios preconceitos, e temo-nos conformado com o que somos hoje, aqui e agora; temos sido privados da capacidade de desenvolver a nossa imaginação o suficiente para sermos capazes de vermo-nos a nós próprio projetados no tempo e no espaço, poder verticalizarmo-nos e ter uma atitude de marcha para ao alto e para a frente.
Hoje as condições fazem que, como uma mancha de óleo na água, tendemos sempre a lateralizarmo-nos, e a ver coisas à nossa esquerda ou à nossa direita, imediatamente à frente ou imediatamente atrás, o que nos obriga a mover-nos num jogo semelhante ao xadrez, em duas dimensões. O Homem vai-se desenvolvendo nessas dimensões laterais e vai esquecendo a dimensão interior, a dimensão vertical, que lhe permita enfrentar os problemas permanentes.
Há questões permanentes em nós, escondidas sob as nossas perguntas ingénitas, talvez porque, no fundo, ainda somos crianças. Queremos saber por que aparecemos neste plano da existência, o que nos vai acontecer e o que podemos fazer por este mundo e por nós mesmos. Seria vaidoso da nossa parte sentirmo-nos donos absolutos desta situação. Não o somos.
O mistério, o enigma da vida, colocou-nos numa forma de cenário. É fundamental voltar a reencontrar o sentido daquelas figuras que nos davam os dramaturgos gregos; estes pensavam que haviam três possibilidades de encarar a vida: a da tragédia, a do drama e a da comédia.
Na tragédia, o Homem estava completamente sujeito às forças da Natureza, aos Deuses, aos seus desígnios, e aos elementos inexoráveis; assim, penetrava no mundo e reagia ao que lhe acontecia, mas era inexoravelmente levado para um misterioso destino final.
Na possibilidade dramática, o Homem podia intervir ativamente nos processos do mundo e já não era esmagado pelas forças da Natureza ou do Espírito. Através da sua vontade, podia exercer uma participação real e não só viver a História, mas sim fazer História. Podia escrever e não apenas ler no Grande Livro.
Finalmente, na comédia, os antigos concebiam que o Homem só vinha ao mundo como a um jogo de ida e volta, e não sabia porquê, de onde veio ou para onde ia.
Infelizmente, no momento atual, é esta última atitude que prevalece. Todos sentimos que somos arrastados por um conjunto de forças, e em vez de as analisarmos, tentando compreendê-las, participando nesta vida ativamente, preferimos tomar a vida um pouco em piada, esquecer, escapar quando pudermos do nosso trabalho e das nossas responsabilidades, vestirmo-nos de maneira diferente e, em geral, mudar. Foi-nos incutido o terror a estar no mesmo lugar, a suster uma mesma ideia, a acreditar numa mesma realidade. Hoje vê-se como um velho decrépito aquele que na sua juventude, na sua maturidade e na velhice mantém as mesmas ideias, aquele que, para além das mudanças do entorno, pode sustentar uma atitude moral, uma atitude ética interior que lhe permite levar ao longo da sua vida a mesma linha de conduta.
Hoje estamos submergidos naquilo a que chamamos a «síndrome da revolução permanente», da mudança permanente, porque pensamos que as coisas têm de mudar continuamente.
Essa atitude priva-nos de um certo sentido do caminho, de um certo sentido de marcha. Temos que mover-nos e atuar, mas perdemos a capacidade de perguntarmo-nos para quê. Não nos é dado tempo para perguntarmos por que nos movemos, por que mudamos, de onde viemos, para onde vamos.
Tudo corre rápido, tem que se fazer rapidamente tudo e todas as coisas têm que se mover. Às vezes, mesmo que paremos para contemplar uma paisagem ou para conversar com um amigo, parece-nos que estamos a morrer de alguma forma. Esta revolução está a forçar-nos a cair sobre os nossos próprios pés. Perdemos a força moral para podermos parar em determinados momentos, para sermos capazes de nos posicionarmos confortavelmente e manter com firmeza as nossas crenças.
Hoje dizem-nos que tudo tem de mudar e mudar, e que esta mudança é o propósito do homem. Mas algo que muda tão rapidamente, não retém nada para si mesmo.
O problema que aflige a sociedade atual é que tentamos participar, mas fazemo-lo de forma pontual, sem podermos parar para meditar. Tornámo-nos uma multidão, uma espécie de grande grupo que se move em conjunto para um e outro lado, mas que não alcança uma individualidade consciente, nem tão pouco uma relação harmónica com outros homens e mulheres. Tudo o que hoje não muda, é considerado obsoleto, «retro», algo envelhecido e incapacitado para o futuro.
Mas observando um pouco, vemos que a natureza age de uma forma muito diferente. É evidente que as rosas de hoje e as da época dos hititas, por exemplo, são diferentes, mas o perfume das rosas é sempre o mesmo. Temos de decidir se queremos manter o recipiente, com a parte externa, aquela que nasce, vive e morre ou se nos queremos projetar através do perfume das rosas.
Todos sabemos que uma rosa o é, não só pelas suas características meramente físicas, uma vez que estas variam em função da temperatura, humidade e outras circunstâncias externas, mas também pela sua essência, pelo seu perfume, pelo seu ser. A busca do Homem, pela Filosofia, é uma procura do ser, é tentar interpretar a existência de tal forma que implique fixar o nosso ser e projetá-lo; ser cada um de nós o que realmente somos, para além das pressões, das opiniões, daquilo que se diga sobre nós. Não é a opinião da gente, nem a massa da informação, que nos dará o ser. A opinião coletiva nunca poderá mudar a natureza de uma única pessoa. Caímos na grande armadilha de pensar que são as correntes de opinião, os pareceres da multidão ou do grupo, os que podem formar o indivíduo, quando é completamente o contrário.
Uma rosa é uma rosa, mesmo que todos os homens do mundo digam que é uma violeta. As coisas, então, são por si mesmas, e não pela opinião que podemos fazer, falsa ou verdadeira, delas.
Isso significa que devemos preservar honestamente a nossa natureza e a verdade do que realmente somos cada um de nós. É necessário valorizar na sua justa medida a opinião da gente, porque essa opinião baseia-se muitas vezes em pressões, propaganda, imagens, que a levarão para um lado ou para o outro, mas que não podem afetar profundamente o ser. Assim, no momento atual existe esta síndrome da revolução permanente.
A palavra revolução implica uma mudança profunda nas coisas, um salto na evolução lógica que leva aparentemente de uma natureza para outra. Os critérios mais antigos que encontramos sobre o que pode ser uma revolução podemos encontrar nos pensadores chineses. Nos tempos pré-Han, já o tinham definido como uma mudança violenta. Há, por exemplo, no pensamento de Kung-Fu, parábolas e afirmações sobre o que podem ser estas revoluções. Assim, era um conceito de transformação do espaço; concebia-se uma revolução, uma mudança profunda, como uma transformação do espaço, um espaço que pode ser arquitetónico, político ou social.
À medida que o mundo muda, este conceito também vai mudar pouco a pouco. E veremos que muitas vezes chamámos revoluções a processos que não são realmente, que não envolvem mudanças num sentido profundo. Fala-se, por exemplo, da revolução de Spartacus; este, ao contrário do que acredita a opinião pública, não era um escravo, mas um príncipe frígio prisioneiro de guerra dos romanos. O que ele tentou fazer através da sua mudança violenta foi simplesmente a libertação de um grupo de pessoas de um sistema que os estava a oprimir. A sua busca foi a transformação do espaço. Talvez, se tivesse tido êxito – o que não o teve – teria levado o seu grupo e a sua própria pessoa para outro espaço político-social, onde teriam sido dadas outras características. Então essa transformação teria tocado apenas aquele entorno.
Mais tarde, a revolução é concebida como uma mudança que não só afeta o espaço, mas também o tempo. E vamos chegar, finalmente, aos conceitos mais modernos da revolução, à chamada «revolução intemporal» – da qual Mao Tse-Tung delineou alguns elementos, e Ho Chi-Minh os expressou melhor – em que não basta alcançar um lugar, mas é preciso um tempo permanente e uma projeção para todos os lugares.
Mas estas revoluções, que são, evidentemente, político-sociais-militares, foram infelizmente transferidas para toda a convicção, e hoje sentimo-nos obrigados, de alguma forma, a ser revolucionários. Tanto é assim, que existe atualmente um partido político ibero-americano que se auto-intitula Partido da Revolução Institucional, isto é, uma revolução contínua e em constante mudança.
Isto cai quase no cómico, porque à força da constante mudança e quando se esgota a imaginação, poderíamos voltar a uma das propostas anteriores já abandonadas.
Este sentido da revolução permanente, de constante mudança, se não houver um olhar, um verdadeiro objetivo, leva-nos obviamente – e vemo-lo hoje – à violência, ao confronto entre as pessoas.
A que conduzem estes derramamentos de sangue, estes enormes gastos com armas supersofisticadas, este confronto entre homens e nações, se nenhum dos lados da luta propõe um verdadeiro propósito, mas apenas para imaginar alternativas que no fundo são exatamente iguais?
Recordemos quando Lenine propôs uma série de mudanças na estrutura social e política do seu entorno. Estes não eram mudanças reais, mas apenas outras alternativas. Mudar uma tirania por outra é absolutamente antifilosófico. A luta de classes não é concebida numa verdadeira revolução filosófica interior. Mas sim, concebe-se numa revolução permanente, que quando não há classes inventa-as, uma vez que é óbvio que as classes sociais que poderiam ser estabelecidas numa Alta Idade Média ou num Renascimento ou em séculos anteriores, hoje em dia já não existem. Noutros tempos, o filho do banqueiro era banqueiro e o filho do camponês era camponês.
Na atualidade estamos arrastando esses ecos do passado para uma sociedade que já não se rege de acordo com esses postulados. Hoje o filho de um pedreiro pode ser advogado, e o filho de um advogado pode ser pedreiro. O mundo mudou completamente, mas também mudou artificialmente. Encontramo-nos ante a alienação por uma mudança permanente.
Preocupo-me por seguir a trajetória de algumas das pessoas que participaram na Revolução de 68 em Paris. Foi uma revolta muito curiosa, que manteve algumas afirmações bastante sábias, outras bastante tolas, e outras que não tinham uma finalidade em si mesmas, mas, pelo contrário, um grito desesperado («proibido proibir») de algumas pessoas que se sentiam marginalizadas, não só de outras, mas de si mesmas e de toda a realidade. Hoje, pessoas tão famosas como foram «Erik, o Vermelho» e muitas outras, dedicaram-se a uma vida burguesa e tranquila. E em Espanha, há alguns anos, podia ser visto na televisão o filósofo Henri-Levy, que falava de uns princípios de tipo tradicionais, quando no seu tempo era um dos grandes antitradicionalistas, naquele famoso movimento de 68.
O problema da alienação, da falsa revolução permanente, leva o homem de uma posição para outra, mas como leva um impulso mecânico, uma espécie de peso específico, psicológico, quando passa de A a B não pode ser parado, pois este impulso obriga-o a saltar para uma nova posição C, e assim sucessivamente. O espaço é curvo, como sabíamos de Pitágoras e demonstrou Einstein, e se formos de uma posição a outra e para outra, vamos praticamente chegar à situação inicial. Portanto, não há nada mais imobilista ou mais anti-revolucionário do que a revolução permanente. É verdadeiramente uma síndrome, uma irrealidade.
Esta irrealidade começa basicamente de um movimento filosófico-político chamado «racionalismo», que apareceu na Europa Central no início da Era Moderna. Este movimento colocou a razão acima de todas as coisas e, curiosamente, procurou analisar com a razão, não só entes físicos, mas entes racionais e espirituais. Mas o estritamente físico nem sempre é razoável, mas são necessários instrumentos para a sua medição e definição. Se queremos pesar um objeto, temos de usar um instrumento de medição, não basta raciocinar. Precisaremos de elementos que estejam na mesma dimensão do objeto físico para poder pesá-lo. A razão, neste sentido, está falseando a realidade material ou objetiva.
Quanto à realidade espiritual, é conveniente recordar aquela frase que diz que «a religião é o ópio dos povos». E por acaso podemos medir a religião de um ponto de vista puramente racional? Podemos referir-nos à religião em termos gerais, esquecendo que, etimologicamente, segundo Cícero, a religião é o que nos leva a re-ligar-nos com nós mesmos e com o mistério que nos gerou e que nos fez caminhar? Podemos, com a simples razão, deduzir tudo isso?
Ninguém pode dizer se Deus é grande ou pequeno. Para saber se algo é grande ou pequeno é necessário compará-lo com as coisas circundantes, porque o grande e o pequeno não são características próprias, mas nascem do jogo das comparações.
Este movimento racionalista não conseguiu definir exatamente as realidades físicas; daí os grandes fracassos da economia com base neste movimento; nem tão pouco pode definir as realidades espirituais, que estão acima do que podemos conceber com a razão.
Estes fracassos podemos ver e sentir aqui e agora. Cada sistema político que ascende ao poder em qualquer parte do mundo oferece umas promessas que depois não cumpre. Isto não é devido a que se empreguem gente má, mas estão simplesmente a viver uma utopia. Por um sistema de razão, tentam pôr ordem noutro sistema que não é puramente racional, mas sim material e fáctico.
Se se consome mais do que se produz, vamos para a miséria. É inútil que falemos, e são inúteis as palavras que digamos e todas as páginas que se possam escrever a esse respeito. É algo completamente utópico, afastado de uma realidade fáctica.
Hoje, em alguns países onde a religião é praticamente proibida, os mineiros esculpem cruzes ou outros símbolos sagrados secretamente, dentro das suas minas, à luz de uma lâmpada; pois serão mineiros oprimidos, com circunstâncias que os convertem em escravos, mas mantêm uma chama religiosa a arder no seu coração; continua a viver neles uma necessidade de comunicação com o que está para além deste mundo e que, ulterrimamente, o justifica. Só um tolo pode pensar que este mundo está justificado pelo bem que comamos ou vistamos. Nem roupas nem comida são suficientes. Talvez quem não o tenha possa pensar que isto é suficiente; mas é uma forma de ilusão. Com isto estamos a fazer com que a felicidade dependa de coisas que são impermanentes, que estão em mudança continua.
Este é a «síndrome», a ilusão. É pensar que tudo o que aconteceu é mau, que tudo o que virá há-de ser melhor. Essa é uma esperança natural que todos temos, mas não é verdade que tudo o que aconteceu foi mau.
A História é escrita por aqueles que ganham, e se César não tivesse tomado a Gália, talvez tivessem sido os gauleses que teriam escrito sobre esta guerra, e tê-lo-iam feito de forma muito diferente do interesse romano. Depende de quem ganha, quem tem a força fática, para que a História seja escrita de uma ou de outra forma.
Infelizmente, os nossos jovens, alimentados por uma falsa História, estão a ter a ideia de que todo o passado foi mau e que temos de mudar e mudar. É o que Sartre chamou de «a fuga para a frente», uma forma de escapar. Mesmo naquele movimento de 68, em Paris, dizia-se: «Corre, apressa-te, o passado persegue-te». Mas o passado nem sempre é tão terrível. Teve elementos maus e sangrentos, mas hoje também existem estes elementos, juntamente com grandes injustiças, exploração e farsa com todas as aparências de um mundo humanista e respeitoso.
O problema deste desejo de mudança constante é que a gente pensa que a verdade não está na sua posição, no lugar onde deveria estar, nem no seu tempo, nem na sua forma.
O mito da mudança faz com que as pessoas rejeitem o que está ao seu lado e vão embora. E assim transformaram-nos em gado, numa massa de ovelhas que anda e anda, que lhe é dada a liberdade de falar, como as ovelhas vão balindo quando caminham, para chegar a lado nenhum, ou seja, a outro lugar igual ao ponto de partida. Como podemos escapar desta rede, desta mentira, desta falsa necessidade de fuga e de mudança? Talvez encontrando-nos outra vez com nós mesmos, meditando um pouco sobre o que queremos ser, no que somos realmente.
É uma boa pergunta para fazermos. Que sou eu como um todo? Por que uma parte de mim há-de excluir a outra? Por que devemos agarrar-nos a uma só face da realidade? Por que não viver de uma forma mais plena, mais harmónica, mais em conjunção com a Natureza?
Ao longo da vida mudamos muitas vezes. As nossas ideias mudam se houver sorte, no circunstancial e não no fundamental. Se fôssemos esse pensamento que mudou (e tudo o que muda, nasce, desenvolve-se e morre), não seríamos seres, mas entidades mortais, e temos de observar que somos algo muito mais profundo, que estamos por trás de todas as coisas, e que temos de ver a nossa própria vida e a dos outros como meras circunstâncias.
Quando um homem sobe uma montanha, se continua a andar depois de chegar ao topo, não pode continuar a subir, mas tem de descer. Isto da mudança, da revolução permanente, é uma grande mentira, porque seria igual a ascensão permanente. Um homem que sobe uma montanha, se não souber parar a tempo, se não parar para beber nas fontes de água e de vida, começará a descer, e tudo o que conseguiu começará a desintegrar-se.
É por isso que hoje, num mundo que tem tantas possibilidades técnicas e científicas, há dois mil milhões de pessoas mergulhadas na fome, na miséria, no desespero. Hoje, num mundo em que aparentemente temos todas as medidas de segurança à nossa disposição, morrem constantemente gente assassinada. Então, onde estão esses serviços de segurança e para que nos servem? A todas as horas há violência. O que é que se passa? Estamos todos loucos? Porquê esta necessidade de luta geral?
Não acreditamos que o mundo possa ser resolvido pela violência; se assim fosse, já estaria resolvido com todas as guerras que houve. Também não acreditamos que a felicidade seja ter mais sapatos ou mais dinheiro, uma vez que nos países ricos há homens muito infelizes, e outros homens pobres são felizes. A chave, então, deve estar em algo além de todo este entorno.
Temos de tentar reagir, mas não como um conjunto ou manada, mas individualmente. Voltemos a ser crianças. Façamos de novo as perguntas fundamentais: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Elas vão limpar-nos daqueles elementos que nos estão a intoxicar. Porque o problema ecológico não está só em apodreçam os rios, as terras ou o ar. O problema é que a Humanidade também está podre, o próprio Homem está contaminado. Não só chovem pássaros mortos, não só flutuam peixes mortos; há também Homens mortos que caminham na vida. É cada vez maior ao nível mundial o suicídio das crianças. É cada vez maior o problema da droga e da violência. É evidente que estamos no caminho errado, numa rota errada.
Temos que nos voltar a encontrar a nós mesmos. Temos de tentar fazer coisas que possamos terminar nós mesmos, coisas simples. Vimos como as grandes fábricas, com aquelas enormes chaminés que foram a maravilha do século XIX, envenenaram o mundo, destruíram-no e sujaram-no completamente. Bendito seja o artesão! Bendito seja o homem que põe as mãos na terra, e moldando-a, faz os copos com que possamos beber a água! Benditos aqueles que trabalham a madeira ou o metal! Benditos aqueles que fazem versos ou escrevem música! Benditos aqueles que pintam ou esculpem! Benditos aqueles que podem encontra-se face a face sem medo de armas ou agressões! Benditos aqueles que sonham com um mundo melhor! Benditos também aqueles que, acima de tudo, têm a força para querer construir um mundo melhor!
Precisamos construir um Homem Novo para dar à luz um mundo melhor. Dizia Dom Quixote a Sancho que devemos converter os gigantes do horizonte em novos moinhos de vento, em novos moinhos que moam o novo trigo para fazer o novo pão que alimente o Novo Homem. Temos de nos renovar a nós mesmos, temos de marchar para o horizonte com os olhos abertos; porque aqui e agora ninguém é tão jovem, tão velho, ou tão débil que não o possa fazer.
Há um vento histórico, um sentido de marcha para o futuro. Devemos viver de face voltada para o futuro e não para o passado. Lá nos esperam as novas gerações, as novas realizações; lá vivem os nossos sonhos.
Os poetas sabem que não se pode construir um verso. O verso vem sozinho. Às vezes sentamo-nos em frente a um amanhecer, de pena na mão, os olhos perdidos na imensidão, e não vêm até nós o verso nem a mensagem. Muitas vezes, no entanto, no lugar mais impensável, o poema vem. Isto significa que não construímos os poemas, mas que eles vêm de algum lugar, que há algum «banco de poesia» com o qual misteriosamente nos ligamos. Deve haver um «banco» de onde nos vêm as formas puras; deve haver um «banco» também de onde nos vêm a bondade, a compreensão e o trabalho. Por que razão, em vez de esperarmos por essa mudança à maneira de gado, não procuramos as fontes de inspiração da poesia, da bondade, do trabalho?
Essa é a atitude filosófica: procurar as fontes de inspiração da poesia, da bondade, do trabalho, da concórdia; e concórdia não é igualdade, porque os iguais rejeitam-se. Faz falta que os homens sejam diferentes, que sejam complementares. Não devemos rejeitar-nos uns aos outros pelas nossas diferenças; devemos aproveitá-las para conjugá-las num todo ativo que possa marchar para o futuro. Duas rodas lisas, quando entram em contacto, deslizam. É necessário que tenham dentes, engrenagens, para que se encaixem uns nos outros, e assim possam marchar. Assim, o homem e a mulher têm filhos, o dia e a noite dão entardeceres, a terra e a água dão árvores e a quietude dos ninhos dá pássaros. Saibamos compreender e aceitar as nossas desigualdades.
Temos de marchar para onde sai o Sol.
Jorge Ángel Livraga
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis em 5 de agosto de 2021
Imagem de destaque: A Revolta, Honoré Daumier. Artvee