Antes de tentar entender o significado dos deuses do Egito Antigo, deve ser esclarecido o significado do hieróglifo que os representa. A palavra que geralmente é traduzida por “deus/deuses” é “neter/neteru”. O seu significado ainda não está esclarecido e o símbolo que o representa tem sido interpretado de muitas maneiras.
Pensou-se que poderia tratar-se de um machado, mas também foi proposto, e parece ser a ideia mais aceite ultimamente, que o desenho representa uma flâmula. A razão da mudança de opinião é que, uma vez que o símbolo implica a presença de algo, acredita-se que represente uma flâmula sobre uma estaca, assinalando o lugar onde aparece a tal presença divina. Se também levarmos em conta que o significado como “machado” não faz sentido para os egiptólogos, entenderemos por que foi adotada essa opinião pela maioria, embora não por todos.
No entanto, teriam que explicar por que no Museu Egípcio do Cairo, ao lado da sala Tutankhamon, aparecem nas vitrinas vários machados cerimoniais, ricamente ornamentados, e logo ao lado pequenas machadinhas de prata e ouro, espécie de condecoração ou amuletos. Na tumba de Ptahotep em Sakkara, podem ser vistas as mesmas machadinhas penduradas no pescoço de vários dos dignitários e ofertantes. Também há que assinalar os machados que aparecem nas mãos do faraó e dos guerreiros em várias representações de batalhas, nas quais podemos ver que a maneira de os desenhar é exatamente a mesma que no hieróglifo. Em Karnak, perto da entrada que leva ao templo de Mut, podemos ver nas arquitraves perto das colunas, representações do mesmo objeto, mas maiores e mais detalhadas. Lá pode-se apreciar a presença de um encastre para a folha de metal e o gume em duas vertentes da mesma. Por outro lado, não podemos ver em nenhum lugar representações de flâmulas tal como é proposto. Sem dúvida, o hieróglifo representa um machado. Outra coisa é tentar penetrar no seu significado.
Encontramos símbolos semelhantes noutras culturas? Sim, certamente, pois é um dos símbolos mais universais, talvez pela sua contundência, ou porque foi uma das primeiras armas usadas pelos humanos, talvez até mesmo pela sua associação como ferramenta de trabalho com o raio que corta fulminando os galhos das árvores. É curioso que durante muito tempo, na Idade Média, se considerassem os restos encontrados de pontas de flechas e machados da Idade da Pedra, como pedras caídas por raios.
Na China encontraram-se os machados sagrados, assim como na Índia e entre os gregos e romanos, na cultura cretense é talvez um dos principais símbolos, também nos países nórdicos onde adota outras variantes, como o martelo de Thor, ou entre maias e astecas, e entre os índios norte-americanos onde está associado, como noutras culturas, à guerra sagrada: a guerra interior. A sua associação com o divino não é, portanto, estranha.
Quanto à palavra “neter”, a sua tradução por “deus” não é apenas incorreta, mas leva à confusão. Assim, encontramos nos textos que os “neteru” (plural de neter) podem morrer, podem ser homens vivos que, às vezes, carregam esse título, formam irmandades e há até divisões ou categorias. Como já foi mencionado anteriormente, podemos ver dignitários carregando esse símbolo sobre o peito mas, também, alguns que associaram essa palavra aos seus títulos ou nomes.
Por neter e o seu símbolo, o machado, temos que entender algo semelhante ao númen romano, uma entidade com poder “divino”, que não é necessariamente um deus, que se oculta atrás do fenómeno, do lugar de aparição, da estátua ou que pode até ser um deus, mas sem descartar a existência também de homens neteru.
Nas traduções modernas do Livro dos Mortos, a palavra deus ou deuses muitas vezes aparece como tradução de neter/neteru, mas nem sempre significa o que entendemos por isso, por vezes tratam-se simplesmente de seres humanos, poderes espirituais, ou mesmo Iniciados, e outras vezes designa especificamente um deus, Thoth, Ra ou Ísis, mas mesmo neste caso “um deus” para os egípcios não é nada mais do que uma expressão da Divindade Una.
Os diferentes deuses aparecem nos distintos textos com maior ou menor frequência e como entidades com maior ou menor peso. Essas diferenças são geralmente atribuídas às influências das castas sacerdotais, a períodos em que o poder estava mais relacionado a um ou outro dos mais importantes centros de adoração. Sem negar totalmente o anterior, não se deve esquecer que os deuses egípcios são entidades que representam “adjetivações da divindade”, como os 99 nomes de Deus no Islão.
Trata-se de uma linguagem teológica e, como qualquer língua, possui nomes, adjetivos, verbos, etc. E isso permite a construção de frases variáveis, alegorias, paralelismos, etc. Então eu posso dizer “a manhã fresca chegou” ou “chegou a manhã com a sua frescura” ou “o fresco amanhecer”, ou “a frescura da juventude é como a do amanhecer”. Da mesma maneira poderei dizer Atum, ou Ra, ou Atum-Ra, ou Amon, ou Amon-Ra, ou Ptah-Osíris-Sokar. E isso não significa que o número de deuses fosse infinito, mas que a multiplicidade de aspetos da divindade e dos princípios naturais poderiam ser combinados e focados a partir de vários ângulos. Por conseguinte, encontrar-nos-íamos diante do mesmo fenómeno que ocorre nos países cristãos no que diz respeito aos templos dedicados às diferentes aduções da Virgem Maria.
Portanto, dizer que a importância de um deus num momento determinado foi exclusivamente o resultado das influências sacerdotais de Heliópolis, ou de Memphis, ou de Tebas, numa espécie de luta de poderes entre estes cultos, é apenas a consequência de uma visão distorcida do nosso século, onde as religiões se auto-denominam como as únicas verdadeiras e todas as outras religiões são, em qualquer caso, um mal menor que é permitido, um erro que é consentido a fim de satisfazer um falso sentido de tolerância: “Observa que tolerantes somos, mesmo possuindo a verdade, permitimos que o próximo cometa um erro, porque sabemos que no final virá ao nosso redil.” Ou algo assim.
Juan Martín Carpio
Publicado na revista Alma Egípcia em Abril de 2016
Muito interessante vossos trabalhos. gostei