Que cinéfilo não terá visto algum filme de Woody Allen? O genial actor e realizador nova-iorquino dirigiu mais de quarenta filmes ao longo de toda a sua carreira artística, muitos deles como protagonista. Nascido como Allen Stewart Konigsberg em 1935, alterou o seu nome artístico para o actual e, ainda adolescente, começou a sua carreira como humorista. Com o tempo conseguiu fama mundial e múltiplos prémios.

Um filme e uma realidade

A rosa púrpura do Cairo é um filme seu do ano de 1985. Vencedor do prémio BAFTA e do César da Academia Francesa de Cinema é protagonizado por Mia Farrow (Cecília) e Jeff Daniels (Tom Baxter).
No ambiente dos anos da Grande Depressão estadunidense, conta a história de Cecília, uma empregada de mesa explorada pelo seu chefe e maltratada pelo seu marido. Para escapar da dura realidade refugia-se no cinema a ver A Rosa Púrpura do Cairo e enamora-se de um dos actores que aparecem no filme (Tom Baxter). Cecília vê o filme várias vezes e repara que Tom a olha-a várias vezes de soslaio. Finalmente, numa reviravolta genial do guião (escrito por Woody Allen), Tom estabelece um diálogo desde a tela com Cecília, salta para o mundo real (o de Cecília) e vai com ela, desejoso de ter uma vida real e cansado de interpretar o mesmo papel na tela milhares de vezes.

Cecília deseja ter uma vida de filme, enquanto Tom deseja escapar da sua rotina de personagem repetindo as mesmas cenas uma e outra vez. Em suma, anseia uma vida real com sensações e emoções reais. Ambos se apaixonam, mas no final do filme Cecília deve escolher entre o actor real que interpreta Tom Baxter e o personagem Tom Baxter.

Não quereria estragar a história, por isso espero que o leitor a veja e julgue por si próprio.

Entre as várias cenas apresentadas por Woody Allen, merecem citar-se duas, no interior de uma igreja, Tom Baxter pergunta a Cecília quem é ele (aparece uma imagem de Cristo). Cecília responde-lhe que é Deus. Tom pergunta quem é Deus. Cecília responde que é o Criador de Tudo. Então Tom compara-o com os argumentistas do seu filme, A rosa púrpura do Cairo. Cecília responde-lhe que não é assim, que é muito maior, que sem ele a vida não faria sentido. Tom insiste na sua ideia do guionista.

Ambas as personagens buscam fugir da sua rotina e acabarão por oferecer um ao outro uma perspectiva diferente. Nadine Shaabana. Unsplash


A escapadela do personagem

A outra cena acontece quando Tom sai da tela e deixa as personagens do filme sem a sua interpretação nem guião para prosseguir. Começam a improvisar dialogando entre eles e com o público. O público está cansado de ver a discussão e as recriminações que as personagens dirigem a Tom. Uma das personagens insulta o público, e então pedem que se desligue o projector. Então uma outra personagem pede por favor que não o façam, pois isso significaria o seu imediato desaparecimento.

Como vemos, há um desafio constante entre a vida do filme e a vida real. Cecília censura várias vezes Tom que a sua relação não pode prosseguir porque não é real, e este responde que ele pode aprender a ser real.

Surpreende a ingenuidade de Tom ao viver no mundo real. Não conhece o valor do dinheiro, a sua candura é surpreendente. Por outro lado, os avatares da vida, não lhe causam dano. Apenas é afectado pelos motivos por que sofre Cecília, a sua imagem não se altera, tão pouco sofre feridas. Em suma, é uma personagem de filme, mas que anseia profundamente “tornar-se humano”. Cecília, empurrada pelas suas duras circunstâncias vitais, deseja ter uma vida diferente e fugir com Tom.

Vale a pena destacar o papel das personagens secundários dentro do filme projectado e como se sentem perdidos uma vez saído Tom e se anula o guião. A crítica destacou a influência de três obras de Luigi Pirandello: Seis personagens à procura de autor; Cada qual à sua maneira; e Esta noite improvisa-se. Muito possivelmente Woody Allen, que é um grande leitor, conhecera as obras do escritor italiano e sobre elas improvisasse esta situação.

A obra do romancista italiano Luigi Pirandello parece ter tido grande influência sobre Woody Allen na escrita deste guião. Domínio Público


Então, que diferença há entre os dois protagonistas? Ambos desejam ter uma vida diferente, têm sonhos e ilusões para sair da sua dura realidade. Gostaria de relembrar a memória do leitor o mito de Golem: conta a tradição judia que o Golem foi criado pelo rabino e cabalista Loew de Praga. É um autómato de barro que defendia o gueto de Praga dos pogroms e prestava o cuidado e manutenção da sinagoga. Sobre esta personagem escreveu um a novela de grande êxito, Gustav Meyrinck. Na novela, o Golem escapa-se e produz catástrofes. O Golem é mudo e carece de alma. Para comunicar com ele é preciso escrever num papel e introduzir-lhe na boca, ou então, gravar na sua testa (é uma criatura formada originalmente de barro) as quatro letras sagradas do tetragrammaton.

Agora imagine o leitor que um guionista inventa uma personagem, escreve-lhe diálogos e planifica todas as suas acções. Este personagem é representado por um actor, grava-se a sua actuação e é montada a película. No rolo da película a personagem imaginada pelo guionista representa o seu papel milhares de vezes, cada vez que o filme é projectado num cinema, emitida pela televisão ou reproduzida em casa. Se todas as emoções que desperta a personagem nos espectadores se pudessem encarnar e dar vida ao personagem, este adquiriria sentimentos e ideias próprias, quereria ter a sua própria vida e não a escrita pelo guionista. Neste caso a personagem do filme sairia da tela para ter uma vida real, como Tom Baxter no filme de Woody Allen.

O Golem e Tom Baxter procuram passar do plano dos sonhos dos seus criadores ao plano da realidade, ter a sua própria alma.

O personagem Tom Baxter, tal como o Golem da mitologia judaica, procura ter a sua própria alma. Reprodução do Golem de Praga


Como combinar ilusão e realidade

Os sentimentos de Cecília despertam em Tom esse desejo de viver e permitir-lhe deixar de ser um autómato na tela e ter corpo no mundo de Cecília. Esta projecta os seus anseios e sonhos em Tom e consegue dar-lhe vida. Até ao final do filme, Tom leva Cecília “dentro” da tela e mostra-lhe o mundo glamoroso no qual vive e actua. Mas a dura realidade chama-a. Há um diálogo entre Tom e o actor que o representa. O actor recorda-lhe que foi criado por ele e que deve voltar à tela para continuar a representação. Tom contrapõe-lhe que os seus verdadeiros criadores são os guionistas e que ele é um simples intermediário. Ambos declaram a Cecília o seu verdadeiro amor e pedem-lhe que escolha. Cecília opta por fim… e encontra-se com a vida real, que pouco tem que ver com o que ela sonhava.

Então, Tom e Cecília, ambos estão iludidos. Um é a obra de um actor sobre no argumento do guionista, a outra foge de si mesma e da sua circunstância para um mundo ilusório onde tudo é maravilhoso. Rejeita trabalhar sobre o mundo e a circunstância que a rodeia.

Podemos terminar com as palavras de um maravilhoso livro escrito por Della Steinberg Guzmán, Os jogos de Maya, e com elas fechar estas breves linhas convidando o leitor a ver o filme de Woody Allen com outra perspectiva que a simplesmente humorística.

“Maya é uma antiga divindade oriental cujo significado é ilusão. Trata-se do véu com que a Natureza cobre todas as coisas para que os humanos não possam descobrir facilmente as suas leis ocultas e assim, a beleza de Maya e os seus múltiplos jogos enganam, seduzem e ajudam a passar os anos de vida que nos correspondem sobre a Terra.

A ilusão joga com os nossos sentidos. E nós participamos, mais ou menos conscientemente, no jogo. Ilusão não é exactamente algo que não exista, ainda que nós não a percebamos. Os jogos da ilusão baseiam-se em coisas certas, mas não duradouras, são verdades que podem viver numa bolha… como uma ilusão. No entanto na nossa ignorância, supomos que essas verdades momentâneas são tudo.

Aplicando os nossos esforços e as nossas máximas esperanças nos jogos de Maya, é como chegamos a conhecer a dor. Tudo aquilo que queremos como se nos escapa por entre os dedos e tornamo-nos cegos à possibilidade de ver aquelas outras coisas que são mais duradouras, menos falíveis, mais próximas da imortalidade.

Imagem Randy Jacob. Unsplash


Porque jogamos? Porque aceitamos a ilusão de Maya, sem adverti-la? Responder a esta pergunta equivaleria a saber com precisão porque joga uma criança. A criança joga, ainda que saiba que é mentira o jogo que realiza, mas necessita experimentar, necessita provar as suas forças e preparar-se para o outro jogo maior que é a sua vida. Os humanos somos sempre um pouco crianças. Inseguros perante o destino final que nos aguarda, jogamos durante a vida, tratando de provar a nós próprios que somos capazes de realizar actos acertados.

Todos nós participamos nos “jogos de Maya” (Los juegos de Maya, Della Steinberg Guzmán, Ed. NA 2002)

 

Javier R G

Publicado na Revista Esfinge em 01-10-2016

Filme: A Rosa Púrpura do Cairo

Argumento e Realização: Woody Allen

Actores principais: Mia Farrow, Jeff Daniels, Danny Aiello

Música: Dick Hyman. Fotografia: Gordon Willis. Montagem: Susan E.Morse   

Produção: Michael Peyser (chefe), Charles H.Joffe, Robert Greenhut, Jack Rollins

Imagem de destaque: Woody Allen, profícuo realizador, já dirigiu mais de 40 filmes ao logo da sua carreira. Creative Commons.