Esta é uma questão que tem estado sempre presente no inconsciente coletivo da humanidade e no subconsciente individual de cada um de nós. Recordo que, quando criança, ao apagar-se a luz do meu quarto, esperava ansiosamente que passasse algum tempo para levantar-me bruscamente da cama e acender a luz a fim de surpreender os meus brinquedos em algum movimento que eu obscuramente pressentia.
Sem o saber na altura, estava a fazer o mesmo que milhões de crianças fazem desde o começo do nosso tempo histórico, o que foi e é um elemento da nossa magia primordial que não pôde cobrir totalmente o duvidoso presente de Prometeu: o fogo da mente, a razão.
O título deste trabalho reproduz o de uma antiga tabuinha babilónica referente ao mito de Gilgamesh, atualmente no British Museum. Nela descrevem-se os tempos anteriores ao dilúvio, do qual Gilgamesh ficaria como semente torturada dos homens que tinham perdido a imortalidade natural e deviam adquirir a consciência de uma imortalidade submersa no mar do tempo, sob a forma de uma alga encantada. E, entre muitas outras coisas misteriosas, diz-se nessa tabuinha que os homens pré-diluvianos foram surpreendidos por uma “rebelião dos objetos”, das suas próprias obras, que adquiriram vida e se rebelaram.

Figura de Gilgamesh do Palácio de Sargão II (Museu do Louvre). Domínio Público
No outro extremo do mundo, nas ruínas de Chan-Chan, que foi capital dos chimús, situada na costa norte do Peru, departamento de Trujillo, pude, há uns anos atrás, observar um friso onde também apareciam, feitos pela mão do homem, objetos dos quais surgiam braços e pernas, dançando e escapando dos seus lugares naturais.
PODEM OS ARTEFACTOS TER VIDA PRÓPRIA?
Embora a nossa mentalidade materialista, moldada pelos preconceitos dos séculos XVIII e XIX, se rebele contra isso, podemos afirmar que sim. Não só podem como a sua vitalização é inevitável, a partir do momento em que foram pensados, desejados e feitos pelo homem.
Recorramos ao velho exemplo do oleiro. O seu trabalho pode ser estratificado em três níveis:
- O oleiro pensa, imagina, vê no seu espelho intelectual o jarrão que construirá. Dá-lhe tamanho, cor e demais características.
- O oleiro mune-se de barro mole, de uma roda e de outros utensílios. O seu desejo fá-lo reunir esses elementos e começar a obra. Uma massa de barro girará entre as suas mãos tomando lentamente formas que, sem serem as definitivas, tendem para isso.
- A forma plasmou-se no barro, que reproduz o pensado, sonhado e desejado. Cores e vernizes, assim como o calor do forno terminarão esta verdadeira materialização mágica. O pensamento, ajudado pelo desejo e finalmente pela cerimónia do trabalho, fizeram o prodígio.
O jarrão não é, evidentemente, um simples objeto, uma coisa sem mais conteúdo do que a sua própria “coisidade”. É uma criatura extraída dos planos subtis do pensamento pela força da necessidade e plasmada numa matéria obediente, naturalmente amorfa, mas que agora recolhe e mantém uma forma mental e um magnetismo que lhe foi proporcionado pela sua própria plasmação, na interação dos elementos simples, como numa bateria húmida que se torna seca com o tempo. O oleiro, com as suas mãos ou com os intermediários das suas mãos – ferramentas e utensílios diversos – deu-lhe a chispa de vida, que se manterá até que a forma se deteriore e seja destruída.

“Vaso Fortuny” (século XIV), Museu Hermitage. Creative Commons
A interpretação filosófica e esotérica destes factos ultrapassa a divisão infantil feita nos últimos séculos entre os chamados seres vivos e os inanimados.
A física atual e a química contemporânea estão a escapar, felizmente, destes moldes positivistas, reconhecendo, a primeira, alguma forma de vida em todas as coisas do universo, sujeitas a ciclos de reprodução e morte; ajustando a segunda as suas definições a uma ciência que já não se divide em “inorgânica” e “orgânica”, mas que a orgânica é classificada como “química do carbono” por ser este o elemento que prevalece nos materiais utilizados na arquitetura biológica.
Assim, de uma ou de outra maneira, nada está morto, despojado de vida. Tudo tende a sobreviver. Fáceis experimentações demonstram-nos isso.
Se batermos com a mão na mesa, junto a um inseto, este foge, preservando a sua integridade vital. Podemos dizer que é algo vivo. Mas se submetermos a própria tábua da mesa a uma força de torção, veremos que esta resiste; esta é uma forma embora passiva, do instinto de sobrevivência. Daí que entre o inseto e a tábua da mesa não haja maior diferença do que a intensidade e forma que a vida assumiu, chispa que enlaça, ilumina e justifica a existência da matéria e da energia, sendo ambas expressões de uma mesma coisa, como bem definiram os antigos filósofos hindus ao referirem-se ao Jiva-Prâna.
Uma maior sensibilização no homem permitir-lhe-ia ouvir no rangido da madeira que se quebra, o mesmo grito de agonia de um animal que morre. Este mundo é, ao mesmo tempo, trágico, dramático e cómico… Os seus atores aparecem em cena inúmeras vezes, representando papéis diferentes, e inúmeras vezes desaparecem, abandonam-no, para se voltarem a maquilhar e aparecerem de novo. Tal é o processo de purificação de que todas as almas necessitam, estejam no plano de consciência em que estiverem. Nada é realmente “criado”; tudo se plasma e o que faz a diferença é a forma de plasmação, de nascimento e morte. Perceber este velho arcano despojar-nos-ia de uma boa carga de vaidade.

O recife de coral é habitado por uma grande variedade de seres vivos. Domínio Público
PODEM OS ARTEFACTOS ADQUIRIR CARGA VITAL EXTRAORDINÁRIA?
Sim. Além dessa vitalização inevitável a que nos referimos anteriormente, quando um artefacto está em contacto direto e quotidiano com os seres humanos e até com animais, adquire uma carga vital “extra”, personifica-se, e às vezes, inclusive, recebe nomes carinhosos e tratamentos que mais se parecem aos que um ser vivo merece – dentro do que a terminologia corrente aceita como seres vivos.
Também uma atenção centralizada outorga a um artefacto, uma estatueta ou outro objeto qualquer, uma capacidade de resposta a determinados estímulos que se manifestam, em determinadas ocasiões, como fenómenos parapsicológicos. É o caso das imagens antigas de qualquer religião. A devoção dos fiéis, os cânticos e preces “carregam” o objeto e tornam-no “milagroso”. Isto explica a razão pela qual muitos párocos se negam a trocar as suas vetustas imagens, carcomidas e desfiguradas, por outras novas, mais asséticas e estéticas.
As antigas religiões mistéricas conheciam e utilizavam esta corrente fenoménica. Quando se inaugurava um templo no antigo Egito, por exemplo, delimitava-se um troço de terreno em concordância com uma porção do céu, e tudo, desde as fundações até aos capitéis das colunas, era cuidadosamente talhado, colocado e consagrado em momentos astrológicos especiais e confecionado com pedras de determinados lugares, tudo isso através de um cerimonial de trabalho complexo e eficaz. As estátuas e painéis mais importantes, assim como os objetos móveis rituais, recebiam a inserção direta de um espírito da natureza – que os atuais ocultistas chamam “elementais” – programado para responder a cerimónias de evocação e invocação. Assim, à carga normal fornecida pelos fiéis, juntavam-se as correntes cósmicas e telúricas, as influências astrológicas e as naturezas magnéticas das pedras.

Deusa Sekhmet no Templo de Kom Ombo. Creative Commons
Estes artefactos teológicos eram de uma grande ajuda para o labor mistérico dos sacerdotes iniciados. E também realizavam “milagres”, tais como curas massivas, visualização das formas dos Deuses, etc.
Algumas destas antigas estátuas continuam carregadas, coisa que intuem os turistas que, ao visitarem os museus ou as ruínas dos templos, se sentem intimidados e mantêm um respeitoso silêncio. Inclusive, há quem chegue a sentir temor e, vítima dos seus medos e obsessões, atribui logo os efeitos negativos a supostas maldições que, em todo o caso, não são mais do que advertências, tais como as que se põem hoje nas caixas que guardam cabos elétricos.
Com o tempo, as estátuas desativam-se e conservam apenas os seus elementos naturais, com as suas propriedades normais.
EXISTE A POSSIBILIDADE DA REBELIÃO DOS ARTEFACTOS?
Para responder a esta pergunta, devemos alargar o nosso conceito de “artefactos” a todas as obras dos homens. E também às consequências do uso dessas obras.
Dentro destas consequências, há a citar os desastrosos exemplos da contaminação física e psicológica de que padecemos.
O mau uso dos artefactos, a adoração dos mesmos, a sua sobrevalorização e as deformações sociais que isso implica, assim como verdadeiras aberrações na esfera psicológica, é o que se cristaliza como uma rebelião dos mesmos, quando em vez de servirem o homem, se voltam contra ele e lhe desobedecem.
Esse é, na prática, o perigo que vemos nesta forma civilizatória que fez com que as crianças chegassem ao ponto de utilizar uma calculadora para somar dois mais dois; que substitui a aventura vital pela observação das ficções que oferece a omnímoda caixa de um televisor; que na escolha de um andar ou de uma vivenda dá prioridade ao lugar em que irá ser colocada a maquineta para abrir latas de conservas, em vez do lugar onde poderia estar um quadro ou uma estátua; que se estupidifica ao ouvir a “música ambiente” que está na moda por não fazer o mínimo esforço de escolher por si a música que quer ouvir.
O velho e terrífico tema da rebelião dos artefactos está em relação direta, não com uma forma de magia negra vinda de algum canto ignoto do céu, mas com a perda da liberdade interna humana, com os fanatismos, a ignorância, o terror atávico, a debilidade e os vícios.
O homem intoxicado pela droga que acaricie com as suas mãos húmidas um artefacto qualquer, está-lhe a dar não só uma vida antinatural, mas também a provocar, devido ao seu próprio vazio de vontade, a manifestação dos seus pesadelos errantes e o facto de que a máquina se vire contra ele.
Aquilo a que poderíamos chamar “má sorte” começa a planar sobre as relações do homem com o artefacto e, sobretudo, torna-o vítima dos resíduos produzidos por aquele. A sua vontade, anulada e escravizada por um falso desejo de conforto, converte-o em escravo da máquina quando o correto seria ao invés, e não se atreve a mudar os seus hábitos nem a romper com as modas e usos, que são por sua vez resíduos do tempo velho.
Para superar esta e outra qualquer rebelião dos artefactos, o homem deve, primeiro que tudo, dominar-se a si mesmo através de uma vontade desperta e de uma forma de vida sã, afastada dos vícios, das politiquices, dos racismos de qualquer cor, do culto ao feio e ao grosseiro e das violências barbáricas que hoje em dia assolam as nossas ruas.

Hesíodo e a Musa, Gustave Moreau, 1891, Museu de Orsay. Domínio Público
A soma dos seres humanos sem governo e sem destino gera nações também sem governo e sem destino. À medida que vá imperando a vontade de um novo paradigma individual e coletivo, o perigo da rebelião dos artefactos diminuirá até desaparecer.
Queiram os homens e os deuses do destino que esse dia não esteja longe!
Imagem de destaque: Brinquedo. Pixabay