Artigo publicado na Revista Nueva Acrópolis de Espanha, nº 139, junho de 1986
– Professor, tenho visto o Diabo!
Assim me grita, com o terror marcado em seu rosto, um cholo amigo meu da costa central do Peru.
Não é uma criança, mas um homem com os seus 40 anos cumpridos, complexão excecionalmente forte e um olhar no qual brilha a inteligência. O seu contato com os turistas deu-lhe um nível relativo de cultura, e pode até entender e contestar expressões simples em três ou quatro idiomas. Ele não é covarde nem supersticioso… simplesmente tem visto algo.
E esse algo o aterrorizou o suficiente para fazer renascer as crenças ancestrais. Enquanto me fala, aperta nervosamente o seu colar de pallares (sementes que têm as cores vermelho e negro e que se tinham por sagradas, na época dos mochicas, há 1.500 anos) e beijando uma cruz que leva na sua parte superior, uma pedra íman, invoca todos os santos e as suas boas ações.
Acredita que o diabo cruzou o caminho da Cordilheira da Costa; descreve-o como uma figura antropomórfica, flutuando no meio de fogos multicoloridos, enquanto exala um forte cheiro de enxofre. Afirma que também escutou um som, mas não é como os que tem ouvido até agora, e não o sabe descrever. Insiste que não tem medo (na verdade, ele tem, mas não quer reconhecê-lo, pois instintivamente sabe que isso o debilitaria) e que o diabo não poderia com ele. O encontro teria ocorrido a altas horas da noite, e o meu amigo assegura que não estava bêbado… E se estivesse, com essa visão teria passado.
Esta não é a única pessoa que conheço que afirma ter visto o diabo.
Outros dizem que foram possuídos pelo demónio que penetrou nos seus corpos.
É evidente que, à parte dos exageros lógicos em todo o estado de choque, esse impacto psicológico ocorreu realmente, pelo menos em 80% dos casos que conheci de maneira direta.
A primeira pergunta é: existe o diabo, demónio, ou como se chama?
Os estudos da Fenomenologia Teológica, efetuados ecleticamente, quer dizer, não a partir de uma fé religiosa, mas de uma reconhecida ignorância sobre o tema, apresentam uma contradição inicial. Se aquilo que chamamos de Deus é absoluto, está dotado de todos os poderes, é omnipresente e está em todas as coisas e lugares conhecidos ou não pelo homem, a lógica nos impede de conceber um inimigo de Deus irrecuperável e tão absoluto como ele. Em nenhum sistema lógico podem coincidir dois ou mais absolutos.
A segunda objeção seria de carácter ético, pois sendo Deus amor e redenção, não pode haver alguém, ou algo que escape das suas características e poder. Não pode existir um mal absoluto que limitaria forçosamente a graça divina e estaria eternamente condenado; pois para sofrer um castigo absoluto e total, teria que haver pecado de maneira absoluta e total.
Certos teólogos cristãos afirmam que sim, que pode existir, pois se ele pecou contra Deus, sendo este absoluto, a sua pena será da mesma natureza. Isto rebate-se com o mais simples dos exemplos: se um arpão fere uma baleia, o ferimento não será do tamanho do cetáceo, mas do arpão. Assim, não poderia existir o pecado absoluto, pois não dependeria do ferido, mas do feridor.
A história das religiões mostra-nos que o conceito de um mal em oposição a um bem, dá-se apenas nas crenças que personalizam Deus, uma atitude claramente antifilosófica e não metafísica, fruto da imaginação humana. As dualidades registadas em Yin-Yang, Ormuz-Ahriman, Brahma-Shiva, Osíris-Seth, são apenas aspetos enquadrados numa manifestação temporal e, portanto, não afetam o Deus supremo. São antes, mecanismos e sistemas binários da Natureza, cuja completude se realiza com ambos os aspetos, como o dia e a noite, o masculino e o feminino, a juventude e a velhice.

Faramarz mata Ahriman, do Shah Nameh, épico persa dos reis do século X. Creative Commons.
O absoluto estaria mais além do bem e do mal, por outra parte relativos ao que o homem entende por ele. O que é bom para alguns, pode ser mau para outros. Dai um copo de água ao sedento e vê-lo-á como uma bênção, e em troca, se verteis o líquido na boca de alguém que se está afogando, apreciá-lo-á como uma maldição, um ato de pura maldade.
É também inegável que as religiões pessoais, ou seja, aquelas em que Deus foi personalizado, a imagem de um inimigo é necessária para a sua própria justificação teológica, porque se o diabo não existisse… um tentador … de que nos redimiria um redentor? E que sentido teria a sua própria existência como tal?
É certo que em todas as religiões que conhecemos, antigas e modernas, se dá sempre uma personalização do que poderíamos chamar de presença divina, e que isso é uma ajuda e um sentimento de amor profundo, de amor e força que arranca as almas do barro caótico da matéria, sobre a base da sua potência espiritual. Mas naquelas que guardaram um sentido mais esotérico e filosófico, o salvador não é Deus, mas um intermediário que encarna a sua virtude. O mal seria apenas o bem menor, o passageiro e enganoso, mas não por vontade própria, mas por natureza, da mesma maneira que uma superfície de água reflete a luz ou uma pedra desprendida rola encosta abaixo, na montanha. E essa natureza não estaria, nem seria, alheia aos chamados desígnios de Deus.
O esoterismo tradicional nega a existência do diabo, afirmando a de Deus como um absoluto e a dos deuses, dos heróis e dos santos como seres mais evoluídos que o homem, que o ajudariam em sua marcha rumo à perfeição coletiva e individual.
Tratar de simplificar essas coisas, dizendo que elas são um mistério que se revelará amanhã, faz-nos recordar esse simpático cartaz pendurado em alguns comércios, que diz: Hoje não se fia, amanhã sim. Como piada, mas se levamos o assunto a sério e sem descartar os infinitos enigmas e o muito que ignoramos, por isso mesmo, não podemos dar credibilidade a um Deus e a um anti-Deus. Essas afirmações peregrinas, daqueles que acreditam que para perceber a Divindade há que deixar de lado todo o razoável, são as que têm produzido os milhões de ateus que hoje em dia há no mundo… com as suas consequências negativas de materialismo, violência e desesperança. Se Deus existe, há de estar incluso na razão, pois nada pode limitá-lo.
Tradições milenares hindus relacionadas com o Yoga, dizem que existem caminhos para perceber Deus. Uma é a ação, outra é a devoção, outra a mente e outra a vontade. Estes caminhos seriam convergentes, e quem percorre um deles, de alguma maneira, tem de ir recorrendo também aos outros, ao chegar a certa altura espiritual. Este símbolo também se dá assim mesmo, nos triângulos convergentes das pirâmides do Egito e da América e, em geral, em toda a arquitetura sagrada, de todos os tempos.
O diabo seria assim, apenas uma imagem da dificuldade da ascensão e não o inimigo de Deus, como um ser real em si e em existência, e não poderia dar-se a possessão diabólica.
Sem abundar, para não cansar o leitor, podemos deduzir que o chamado diabo do nosso amigo, aquele que mencionamos no início do artigo, poderia ser um elemental ou um espírito da natureza, ou como queira chamar àquelas criaturas que normalmente não se veem, mas sentem-se como presenças intangíveis ao nosso redor, sobretudo quando é de noite, e nos encontramos em paragens remotas. Presume-se que a condição psicológica do bom cholo estava alterada nessa noite pela solidão, o aspecto do caminho escolhido, algum conto de aparições ouvido, e talvez, por alguma bebida que ingeriu na casa de amigos. Tudo isso facilitou a perceção de um elemental ou do que a iniciada H.P. Blavatsky chamava de conchas astrais dos recentemente defuntos (o duplo dos antigos egípcios). A surpresa e o terror fizeram o resto e moveram os seus pés de tal sorte, que o seu registo do fenómeno foi muito breve e incompleto.
As suas crenças religiosas, um tanto infantis e a própria vaidade, fizeram-no logo identificar a experiência parapsicológica com o diabo em pessoa, querendo atacá-lo, sem lográ-lo em virtude da proteção de Deus, da sua própria natureza forte e da segurança de que não havia feito mal a ninguém … Embora não saiba, exatamente, que entenderá esse senhor por fazer mal, pois tudo é segundo as aceitações dos indivíduos e dos costumes dos povos.
O diabo não existe… embora o homem, com as suas maldades, às vezes o pareça.
Jorge Ángel Livraga
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis em 05-01-2025
Imagem de destaque: O Triunfo do Génio da Destruição (1878), de Mihály Zichy. Domínio Público
A Questão do diabo levanta questões que a Igreja não quer resolver – se Deus é Omnipotente, Omnisciente e Omnipresente, ele está em tudo, consciente de tudo e poder para fazer tudo logo isso desarma esse inimigo. Na Biblia no salmo 109 podemos ler – Deus ponha Satanás entre eles… e no livro de Job Satanás trabalha para Deus…. pode ser um inimigo da humanidade mas nunca de Deus… A igreja tambem gosta de fomentar Deus amor est mas depois o inferno e os pecados ganham a esse amor….. para mim o mal existe mas nunca pode ser inimigo do Deus absoluto