Como a icônica cena final da saga de Mario Puzo se entrelaça ao melhor da Renascença.

Prof. Átila Soares da Costa Filho*

O clima de satisfação que se seguia à apresentação da ópera Cavalleria Rusticana pela escadaria do Teatro Massimo Vittorio Emanuele em Palermo, Sicília, era notório e o fato de um Corleone estrear na ópera trazia um brilho extra àquela noite ambientada em 1980. O que ocorre é que o pai do cantante Anthony Corleone, Michael (vivido por Al Pacino), era o capo de um importante e sanguinário clã mafioso erigido em Nova York desde 1920. E, como de praxe com esta categoria de delinquentes, ele também passa a ser uma pedra no sapato de algumas das outras famílias rivais, ávidas por expansão de seus negócios ilícitos e cujo modus operandi nunca havia sido dos mais sociáveis. Ali, sem saber, Michael também é o alvo de um assassino profissional contratado por outro capo, Don Altobello – padrinho de Connie Corleone, sua irmã, e aliado do inescrupuloso Joey Zasa. Contrariado por Michael não querer dividir com o Consórcio suas ações majoritárias da Immobiliare – uma gigante no ramo imobiliário controlada pela Igreja -, Altobello sente nele uma ameaça onipresente. A razão de Michael não querer incluir seus associados é que, agora, ele tem em vista um sólido projeto de moralização nos negócios – algo, obviamente, em rota de colisão contra alguns dos membros de seu círculo.

Mosca, o assassino contratado por Altobello para arrancar Michael de seu caminho, num primeiro disparo apenas consegue raspar-lhe o ombro. Na tentativa seguinte, entretanto, o capataz atinge mortalmente o peito de Mary Corleone (Sofia Coppola), sua filha, vindo esta a desfalecer sobre as escadas do teatro. Mosca é prontamente abatido por Vincent Mancini, filho bastardo de Sonny e sobrinho de Michael, mas uma tragédia já havia se consumado. Tudo ali é magistralmente construído pelo diretor Francis Ford Coppola que, em análise semiótica, esculpe sua própria versão da Pietà com Michael Corleone se colocando como o Deus-Pai (o God-Father) agarrado ao corpo da filha jazida, aquela que vai redimir todos os pecados da família. Ou seja, somente a morte precoce e violenta da protegida Mary faria com que seu currículo de assassinatos – incluindo um fratricídio –, diretos e indiretos (como a de seu amor proibido, Apollonia Vitelli), e outros tantos crimes conquistasse o tão desejado perdão à sua tão conturbada alma. Já no início do filme, o acordo com o Arcebispo Gilday sobre saldar a dívida do Banco do Vaticano, nos deixa claro qual o verdadeiro fio condutor da história: Michael busca, desesperadamente, remissão… e não é uma qualquer, mas uma absolvição papal.

Numa inevitável analogia desta poderosa imagem com a supracitada Pietà Vaticana de Michelangelo Buonarrotti, obra comissionada em 1498 por Rodrigo Borgia – o Papa Alexandre VI -, notamos que esta teve como inspiração a morte prematura do filho, Giovanni Borgia. Interessante que Rodrigo contratara Michelangelo justamente no intuito de transformar o rebento e uma de suas inesquecíveis amantes, Vanozza dei Cattanei (Giovanna de Candia), mãe de Giovanni, em Jesus e na Virgem Maria, respectivamente. A comovente e majestosa representação de uma mãe impotente segurando o corpo sem vida de seu filho seria também um discurso poético sobre a recente morte de Giovanni, decapitado e esfaqueado nove vezes – um crime nunca solucionado. Aqui, como com Mary, o rosto de Jesus/Giovanni em Michelangelo também é jovem e parece apenas adormecido. Concomitantemente, Mario Puzo, o autor da saga dos Corleone, também escreveria sobre os Borgia no romance A Família, de 2001; e há quem considere a polêmica casta como um dos gérmenes para o que hoje é a máfia italiana.

A Anunciação: Obra de 1475, arquitetada com a proporção áurea, traz a preocupação onipresente de Leonardo com o naturalismo e perfeccionismo. Ainda assim, também é atribuída a Ghirlandaio ou a Verrocchio em alguns círculos, Creative Commons.

Seguindo a película, o choro em desespero, mudo, transformado em grito silencioso de Michael, como constrói Francis e o editor Walter Murch, é o momento em que o universo para ele se torna calado, estagnado, fora do tempo-espaço. Michael Corleone, naquele instante, se acha nas profundezas do inferno, onde ninguém mais poderá ouvir seu urro. A dramática sequência, acompanhada em off pela sinfonia de Intermezzo – da própria Cavalleria Rusticana -, assim como na trama operística, também nos revela um final trágico em solo siciliano (diante da desgraça alguém ainda grita: Hanno ammazzato la figlia Maria! como ao fim de Cavalleria também ecoa um Hanno ammazzato Turiddu!). Ironicamente, nas filmagens do Chefão III – ou, talvez, exatamente por isto – Coppola ainda se recuperava da morte prematura do filho Gian-Carlo, aos 22 anos de idade num acidente de lancha em 1986 em Annapolis, Maryland. O piloto da lancha, Griffin O’Neal, era também um ator que trabalhava com Coppola à época. Ao tentar cruzar entre dois barcos que se deslocavam lentamente, e sem saber que ambos estavam conectados por uma linha de reboque, Gian-Carlo acabou golpeado e morto.

Conectado a uma estética renascentista – para além das intrigas palacianas e códigos de honra – Francis Ford Coppola acaba por se aproximar de Leonardo da Vinci ao inserir o recurso do grito mudo: Esta correspondência paira sobre A Anunciação, hoje nos Uffizi de Florença. Rigidamente construída com os esquemas da proporção áurea, a composição traz o instante do sim da Virgem Maria diante do anúncio de que seria a mãe do Redentor pelo anjo Gabriel. A compreensão sobre a grandeza de tão singelo gesto foi interpretada por Leonardo em linguagem idealizada da Matemática – leia-se geometria sagrada: Naquele ponto, quando o gênero humano garantia sua salvação do Pecado Original, o universo – como Michael – se calava em suspensão. A ambos, um resgate através do sangue. Estamos diante do infinito do instante com Maria e Miguel segundo Da Vinci… e com Mary e Michael segundo Coppola.

Ainda que O Poderoso Chefão – parte III (reeditado em 2020 como O Poderoso Chefão – Desfecho: A morte de Michael Corleone), desde seu lançamento em 1990, vinha sendo alvo de furiosas críticas, tal qual Michael, vem se redimindo e provando ser uma obra tão digna e grandiosa quanto suas predecessoras. Antes de mais nada, é uma trama a nos falar sobre o quão complexo e profundo é lidar contra nossos demônios internos. E, não importando o quão alto se tenha ascendido ao poder, no grande tabuleiro da vida, uma dívida de sangue – e de alma – jamais se poderá negociar com uma oferta.

Prof. Átila Soares da Costa Filho*

* Prof. Átila Soares da Costa Filho é bacharel em Desenho Industrial (PUC-RIO) e pós-graduado em Filosofia, Sociologia, História da Arte, Arqueologia, Patrimônio, História e Antropologia. Atualmente integra o Comitê Científico na «Fondazione Leonardo da Vinci» (Milão), na «Mona Lisa Foundation» (Zurique) e no projeto «L’Invisibile nell’Arte» /«Comitê Nacional de Valorização do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental» (Roma). Também é autor do «Método Luminari», de atribuição de obras de Arte através de Inteligência Artificial. Cf. www. https://professoratilasoares.weebly.com

Imagem de destaque: Michael Corleone (Al Pacino), atônito diante do corpo sem vida da filha Mary (Sofia Coppola), é o último ato numa das sagas mais intensas já contadas sobre sangue e reparação, Niles Film Files.