Dividindo as notícias sobre a pandemia mais mortal enfrentada pela espécie humana, eis que, do interior de um cofre de banco em Lecco, município italiano da Lombardia, um pedaço de papel de 24 x 16,8 cm e 0,02 cm de espessura se transforma, do dia pra noite, numa sensação em todo o planeta. Em três quartos, a imagem do rosto de um homem com cabelos e barba longos surge em um desenho relativamente simples, feito pela técnica da sanguínea – usando uma variedade de óxido férrico chamado hematita, que imita os tons de sangue, daí o nome. A semelhança com a figura clássica de um Cristo é inevitável, mas o curioso é que também nos leva à grandeza e dignidade da mítica “Mona Lisa”. E, consequentemente, tanto o ângulo quanto a firmeza da personalidade transmitidos no olhar daquela figura ao contemplador, nos farão lembrar o famoso autorretrato de Turim de Leonardo da Vinci, um nome capaz de combinar gênio, conhecimento, mistérios e surpresas.
Pertencente a uma coleção particular, a obra decide sair do anonimato ao ser submetida à análise da pesquisadora italiana Annalisa Di Maria, especialista em arte do Renascimento florentino, já tendo prestado serviços à UNESCO de Florença. Para Di Maria, o “Cristo de Lecco” seria um estudo preliminar para uma pintura cujo tema poderia ser um “Salvator Mundi”, a partir da fisionomia do próprio Leonardo – ou seja, também poderia ser definido como o autorretrato de um jovem Da Vinci.
Em janeiro de 2021, chegam os primeiros resultados positivos dos estudos preliminares realizados sobre a obra, cruzando as pesquisas relativas ao tipo de papel utilizado com outras da mesma época – investigação necessária para estabelecer numa primeira fase a probabilidade da fascinante hipótese da paternidade leonardiana do desenho. A A.R.T. & Co. (Technological and Conservative Restoration Applications), ligada à Universidade de Camerino, realizou uma série de exames tecnológicos que incluíam análises de imagens multiespectrais (infravermelho, fluorescência ultravioleta, ultravioleta refletido, luz pastosa, luz transmitida, macrofotografia), fluorescência de raios-x, espectrografia infravermelha, microscopia óptica e medidor de pH. Conduzido pelo Dr.Giuseppe di Girolami, o trabalho aponta para um resultado altamente consoante a uma obra de autoria de Leonardo em 1492.
Para além do que os exames científicos puderam atestar, as características técnico-artísticas do desenho, em geral, sugerem fortemente um trabalho das mãos de Da Vinci, a saber: o uso do sfumatto, libertando o traço do plano 2-D, e o elevando a um nível de notória transcendência 3-D. A segurança e firmeza dos mesmos traços, assim como a elegância do estilo, associadas à peculiar dignidade psicológica transmitida pelo olhar do retratado se autoimpõem como marcas autorais do próprio Leonardo. Como dito, estas peculiaridades são bastante similares ao que vemos em sua obra mais célebre, a “Mona Lisa”.
Implicações Filosóficas
O grande interesse de Leonardo pela busca de um ideal da beleza maior (ordem) residia sobre o princípio dual ou “dos opostos” nas coisas. Essa questão do dualismo nos remete a Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.) e seus pensamentos sobre o cosmo e o uno, o devir e a harmonia. Também os estudos sobre Fibonacci e a razão áurea, a força do equilíbrio simétrico, viriam a ser de uma importância singular nas composições do gênio. Em especial, na iconografia de Da Vinci que aborda o tema juventude-maturidade, vemos alguns exemplos de como tais implicações filosóficas o seduziam. Como exemplificado em meu livro “A Jovem Mona Lisa”, temos, então, aquele desenho conservado na Universidade de Oxford, Christ Church, do conjunto “Alegoria à política de Milão”, executado entre 1483 e 1487. Ali, podemos achar um desenho denominado “Alegoria da Dor e do Prazer”, de 1480, onde se vê duas figuras masculinas – um rapaz e um senhor – que se projetam do mesmo corpo. A ideia aí é ilustrar a necessidade do prazer para a existência da dor, e da dor para a existência do prazer: ou seja, a questão dos unos e dos opostos.
Assim, o “Cristo de Lecco”, o contraponto mais jovem à versão clássica da Biblioteca Real de Turim, junta-se à iconografia dos opostos criada nas obras de Leonardo. Suas intenções com relação a esta versão são óbvias: a imagem nos revela um rejuvenescimento sobre si mesmo, confrontando seu autorretrato como ancião. Além disto, deve-se ter em mente que o desenho de Turim, na verdade, é uma projeção imaginada pelo artista para uma idade mais avançada que a que realmente atingiu: ele o executou por volta dos 60 anos (tendo morrido aos 67), enquanto que a obra lembra alguém pelo menos 15 anos mais velho. Esses dados indicam um conteúdo mais narrativo e conceitual para este autorretrato, do que figurativo ou naturalista: isto é, junto com a versão de Lecco, poderíamos falar num discurso sobre a harmonia dos opostos. A versão em Turim, finalmente, para Leonardo, só poderia ter existido se também houvesse outro ponto de equilíbrio por meio de uma versão anterior, sobre o qual ele pudesse exercer melhor um nível de pensamento além, onde os opostos orquestram o movimento da História e de toda a criação. E este contraponto é o que nos revela a descoberta de Lecco.
Átila Soares da Costa Filho
BIBLIOGRAFIA:
A.R.T. & Co. (Technological and Conservative Restoration Applications): “Indagine Diagnostiche Disegno su Carta ‘GM14’ – Relazione Conclusiva” – Università di Camerino, 2021
Átila Soares da Costa Filho: “A Jovem Mona Lisa e outras questões curiosas na História da Arte” – Ed.Multifoco, 2013
Umberto Eco: “Arte e beleza na estética medieval” – Globo, 1989
Mario Pomilio, Angela Ottino della Chiesa: “L’opera completa di Leonardo pittore” – Classici dell’arte, vol.12 – Rizzoli, 1978
Giorgio De Santillana: “Leonardo da Vinci: an Artabras Book” – Reynal & Co. e William Morrow & Co., 1965
Giorgio Vasari: “Vidas de pintores, escultores y arquitectos ilustres” – El Ateneo, 1945
Imagem de destaque: Autorretrato como Cristo (c.1492) de Leonardo da Vinci. Coleção privada, Lecco (FOTO: propriedade particular; reprodução autorizada).