Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.
Não podemos pensar, e portanto, filosofar, sem contrastes. Se A é igual a A e tudo é A, como pode a mente existir, ou trabalhar, se tudo é A? Se existe unidade no Universo, se este é Uno, realmente, como se estabelecem as suas funcionalidades, as suas graduações? E por outro lado, como não vai ser uno, como pode não haver uma unidade que seja o sentido, essência, fim e realidade de tudo o que percebemos? Parménides solucionou este dilema de um modo elegante e magistral. Disse que se falamos de unidade, só nos podemos referir a Ela e a nada mais, e menciona-a como ONTOS, palavra grega que traduzimos como Ser, e que o sábio de Eleia figurava como uma perfeita esfera. Se falamos do mundo, entramos no reino da opinião, da doxa, dos jogos multiformes de sombras, no labirinto de espelhos que forma a matéria primordial, também Ela essencialmente una. “A mente é a grande destruidora da realidade” pois deixa de viver na inocência áurea em que tudo está unido e nada se vê alheio. O contraste leva-nos, quase sem querer, ao paradoxo, e o paradoxo, dizia Unamuno que é o que nutre as almas grandes, pois são obrigadas a usar as rodas dentadas das suas potências internas para vencer estes paradoxos, para conquistá-los, dominá-los, harmonizá-los, aceitando-os primeiro.
O contraste chama a nossa atenção, desperta-nos, é uma voz que desperta a nossa vigilância, que exige a nossa presença de alma. E quando a alma se adentra na vida, estes contrastes, se não a quebram, forjam-na, como quando a espada que está a nascer passa do frio ao fogo para adquirir o fio e corte, dureza e flexibilidade ao mesmo tempo. Na vida tudo é unidade, pois a vida é una, perfeita, homogénea, elástica, plástica; é como a luz que tudo banha e impregna, pois tudo é, na sua quintessência, luz, vida e movimento. A alma-vida é também unidade, mas quando entra no mundo entra no reino dos paradoxos, e deve guardar esta unidade, sem as rejeitar, pois tal é drogar-se na inconsciência, mas harmonizando-os, entendendo-os, suportando-os, sofrendo-os até que se vinculem harmonizadas no seu “fio-unidade” (sutratma chamam a isto os filósofos hindus), como as contas de um colar.
A alma da vida é como a alma da fotografia: a luz, a cor, os contrastes. E, que contraste é o desta imagem! Num mundo de olhares pétreos, imóvel, vigilante; o branco e puro sonho, vivo movimento de uma mulher, vestida de noiva. Um recorda o seu passado, dignifica-o com a sua imóvel presença, mas está alheio ao que durante o dia corre e até aos novos amanheceres: estes só arrancam, como dizia o filósofo poeta do “Sonho de Ravana”, um gemido de silenciosa tristeza da sua dura pedra, o lamento do que já não está vivo e espera ser libertado da sua prisão. A outra, perseguindo os seus sonhos, é também insensível ao passado, e quase ao presente, pois no futuro, novas flores e frutos a chamam e ela corre, como todos nós, atrás deles. Parece a branca noiva um raio de lua, ou a luz fugidia de uma intuição, que nos tenta para arrancar-nos da nossa imobilidade. Os filósofos herméticos diziam que tudo aquilo que possamos encontrar fora, com os sentidos, vive como ideia dentro de nós, somos o microcosmos de um macrocosmos, o espelho do universo. Então nós mesmos somos a noiva que corre, esperançada, ou a intuição que nos chama até ao bom e melhor; e a pedra que resiste, não porque neste caso queira honrar o seu passado, numa guarda perene, mas porque não somos capazes de nos libertar dele. Esperamos que os dedos também de pedra, ou seja, abrasivos, do tempo, desfaçam a imagem em que estamos prisioneiros. Não pensamos que se não seguimos este raio de lua de intuição, o tempo, inimigo do que se contenta indevidamente, vai-nos desfazer, mas antes que vai-nos deformar, despojando-nos das arestas, dos perfis de glória e honra que nos sustêm, enquanto almas vigilantes e guerreiras.