Na obra Crítica da Razão Pura, Immanuel Kant trata de encontrar o alcance e as possibilidades do conhecimento racional. Neste processo, depara-se com a necessidade de estabelecer quais são os limites da razão pura, afirmando que esta apenas pode gerar conhecimento em contacto com a experiência.
Isto não significa, no entanto, que todos os conhecimentos racionais venham da experiência. Existem certas intuições puras da sensibilidade (o espaço e o tempo) e categorias do entendimento (de qualidade, quantidade, relação e modo) que são dados à priori no contacto com toda a experiência. Para além destes conceitos puros, todos os outros conceitos que nos são possíveis pensar e, portanto, todo o conhecimento, advém de uma análise da experiência possível.
Vamos dar um exemplo:
Quando olhamos o Sol, o que vemos? Uma luz, um brilho, uma esfera radiante.
Sabemos, entretanto, que a luz que vemos foi emanada do Sol oito minutos antes de chegar aos nossos olhos. O que vemos, então, não é o Sol, mas apenas a sua luz que chegou aos nossos olhos. O Sol, em si mesmo, é invisível, está oculto aos nossos sentidos. Aquilo que chamamos Sol é à causa daquilo que produziu o efeito na nossa sensibilidade.
E, no entanto, o que é ver?
Certamente, os olhos têm um papel no ato de ver, mas ver é muito mais que ter os olhos abertos. O que veem os olhos de um homem cego? O que verão os olhos de um homem morto?
Para lá do órgão físico, existe um órgão mental, um entendimento, que faz surgir a imagem vista na nossa subjetividade, na imaginação. O entendimento, além de receber as afeições enviadas pelos sentidos, pensa sobre esses estímulos, interpreta-os, dá-lhes significado. É assim que as manchas de verde na paisagem se transformam em floresta, em ciprestes e carvalhos; é assim que as curvaturas do horizonte se transformam em montanhas, em prédios e pontes; é assim que manchas negras num papel branco se tornam em letras, em palavras, em frases, e todas as outras categorias com que o entendimento analisa as impressões dos sentidos.
É assim, portanto, que todas as impressões dos sentidos se tornam em objetos, cada um com o seu próprio conceito e o seu próprio nome. Essa é a diferença entre um estímulo de um sentido e uma percepção: na percepção há um nome, uma identificação, uma associação, cujas propriedades podem assim ser colocadas em categorias do entendimento.
Façamos, por uns momentos, o exercício, e olhemos para a imagem do Sol que temos na imaginação, e façamo-lo de olhos fechados.
O que é, então, o Sol, para lá da luz que dele vemos? O que é, em si mesmo, para lá de todos os estímulos que produz nos nossos sentidos? Sabemos, ou pensamos saber, segundo os desenvolvimentos da ciência, que o Sol é feito de um conjunto de gases, cujas reações produzem todo o conjunto de fenómenos observáveis à sua superfície. No entanto, como observamos e estudamos esses gases? Exatamente do mesmo modo, analisando a luz que emitem, as relações e reações que têm com outras substâncias, etc. Sabemos também que os gases, por sua vez, são feitos de átomos, com os seus eletrões, protões, quarks, etc. Mas em todos os níveis da experiência, aquilo que conhecemos é um conjunto de conceitos gerados no entendimento com base no fenómeno, ou seja, com base naquilo que observamos e pensamos com a razão, e não o objeto em si. Podemos dizer, portanto, que a ideia de Sol é a ilusão produzida nos sentidos pelas reações de um conjunto de gases. Gás é a ilusão produzida por um conjunto de átomos num determinado estado. Átomos é o conceito ilusório de um conjunto de partículas subatómicas. E assim poderíamos continuar sem nunca sairmos do nosso próprio entendimento, com os seus conceitos e ideias produzidos pela experiência, e sem nunca irmos além da experiência.
Voltando à nossa estrela, sem tudo isso, com o entendimento esvaziado de todos os conceitos associados aos sentidos, o Sol reduz-se a um conceito vazio, informe, a uma intuição que associamos com a causa de tudo o que vemos e sentimos. O Sol real é, não o calor, mas a causa do calor; não a luz nem a gravidade que produz à sua volta, mas a causa da luz e da gravidade que ele próprio emana. Essa causa, que podemos chamar o Ser do Sol, a sua essência, não é observada por nenhum sentido físico, não é uma ideia que resulta dos sentidos nem da experiência, pois é precisamente uma ideia à qual chegamos quando limpamos o entendimento e ultrapassamos toda a experiência.
A ideia de Sol em si é um conceito produzido pela mente. A experiência dá-nos o entendimento, a percepção, a categorização de todos os estímulos. Mas é a razão aquela que nos leva à ideia de causa, de essência e de ser de cada coisa.

Coroa solar em erupção, na direção do Espaço, NASA. Creative Commons
Esta “essência de cada coisa”, assim entendida, é para Kant uma ilusão da razão pura, que na ausência de uma base de experiência onde apoiar o fluir da sua busca, extravasa os seus próprios limites imaginando conceitos aos quais não consegue atribuir quaisquer atributos, propriedades ou características. Estes conceitos transcendentais são, portanto, conceitos vazios, correspondentes, não a realidades, mas a conceitos puramente mentais.
Deve o entendimento humano, portanto, vigiar-se e exercitar-se continuamente para manter-se dentro dos seus limites, produzindo conceitos que tenham o seu alicerce na experiência, até ao limite da experiência possível, e não dar um “salto maior que a perna” até às regiões da fantasia, produzindo apenas fantasmas na mente sem qualquer suporte de realidade.
Neste ponto Kant pergunta-se, e nós perguntamos com ele: mas então é possível a existência de uma Metafísica? Ou seja, é possível a razão levar-nos a um conhecimento verdadeiro que esteja para além dos limites da experiência? A resposta, ainda que seja difícil de acompanhar, é positiva. Sim, é possível a Metafísica, mas entendida de um modo muito restrito e particular. Passaremos então a delinear as condições para a existência de uma Metafísica verdadeira.
Começaremos por explicar a diferença, de acordo com Kant, entre Sensibilidade, Entendimento e Razão.
A sensibilidade é uma faculdade passiva que é afetada pelos fenómenos sensíveis. Tem em si as formas ou intuições puras do espaço e do tempo, que organizam e estruturam todas as experiências dos sentidos. É interessante notar como espaço e tempo são chamados de intuições, pois trazem sempre consigo uma sensação de que existem fora do nosso mundo sensível, em algum lugar fora de nós, mas disso não podemos ficar racional e absolutamente seguros.

Universo, NASA e ESA. Domínio Público
O entendimento é a faculdade ativa que interpreta os fenómenos sensíveis, fornecidos pela sensibilidade, aplicando-lhes, através de juízos, conceitos e enquadrando-os em categorias. Esse é o processo que dá pelo nome de produção do conhecimento.
A razão transcende a experiência dos sentidos e vai além dos juízos do entendimento (que se aplicam somente à experiência), de modo a alcançar ideias puras e princípios universais. As ideias de unidade, totalidade, absoluto, incluindo as ideias de Deus, liberdade, eternidade, etc., são ideias puramente racionais, que não têm fundamento na experiência possível, e daí serem chamadas de ideias transcendentais.
Demos três exemplos das ideias puras:
Alma é a ideia pura de um sujeito permanente que está subjacente a todos os pensamentos. Não é um objeto observado nem pensado, mas é uma condição para que haja observação e pensamento.
Universo é a ideia pura da totalidade absoluta da experiência possível. Dado que a experiência é sempre limitada e confinada no espaço e no tempo, torna impossível que a ideia de Universo venha a ter a sua correspondente na experiência e, portanto, é uma ideia transcendente.
Por último, Deus é a ideia pura de uma causa primeira que não foi causada, absolutamente livre e incondicionada, que também não pode ser experienciada, apesar de poder ser pensada como conceito da razão pura.
Acontece que o facto de uma ideia poder ser pensada racionalmente não é garantia segura de que haja uma realidade existente por si mesma que corresponda a essa ideia. Daí que seja necessário encontrar um caminho para decidir-se da realidade da Alma, do Universo e de Deus.
Henrique Cachetas
Imagem de destaque: Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant (Imagem composta). Domínio Público