Oh, homem do Caminho, não leias o meu livro como lírica ou como fruto da altivez. Observa o meu texto sob o prisma do amor, para que de cem dores de amores confies num deles. Quem isto observar sob o prisma do amor, lançará para a sua presença a bola do triunfo.
Esquece o ascetismo e a simplicidade: é necessário amor, amor e renúncia.
Todo aquele que tem amor renúncia ao remédio, aquele que deseja remédio renúncia à alma.“A Linguagem dos Pássaros”, de Farid ud-Din Attar, versos 4495 a 44991
Há um caminho para os que, de coração, cheguem ao rei, mas para o coração extraviado não há caminho.Idem, verso 1137
Espalhei por aqui e por ali as rosas deste jardim, que fique boa memória de mim, amigos!
No meu livro, cada um e a seu modo se vê a si mesmo num instante e se deixa de ver.
Também eu, pois, como os que partiram, descobri o pássaro da alma perante os adormecidos.
Se, com este livro, o coração de um constante adormecido for despertado por um instante,
Terei então a certeza de ter cumprido o meu dever e a minha inquietação e tristeza terão fim.
Como uma tocha ardi longo tempo para iluminar, chamejante, um mundo.
Como da tocha, saiu fumo do meu cérebro. Chama da eternidade, até quando soltarei este fumo?Idem, versos 4519 a 4525
Estas belíssimas e verdadeiras palavras formam parte do livro Manteq ol-Tayr, traduzido como “Diálogo dos Pássaros” ou “Linguagem dos Pássaros”, obra do século XII escrita pelo místico Farid ud-Din Attar. Não é somente uma das jóias do sufismo persa mas também da literatura de todos os tempos. Expressa em linguagem alegórica as provas e passagens da Alma que quer reencontrar-se e fundir-se com o seu Rei-Deus interior (simbolizado pela ave Simurg). Os seus ensinamentos são, então, intemporais e ainda podem vivificar os desejos de muitos apaixonados pela sabedoria na viagem para o conhecimento de si mesmo.
Os diferentes tipos de caracteres ou naturezas de alma são expressados pelos diferentes pássaros, cada um deles com as limitações e dificuldades próprias na hora de levantar voo em busca da Grande Verdade. O que cada pássaro expressa, e as respostas da poupa que representa o Filósofo e é arauto de Simurg, são um diálogo da alma para, precisamente, levantar o voo saindo da jaula dourada ou de ferro em que nos encontramos. Cada um destes diálogos vai acompanhado de exemplos ilustrativos para compreender melhor o assunto e superar as cadeias que nos prendem, na nossa ignorância, ao mundo do efémero e material.
A representação da alma como uma ave numa prisão é sublime e muito antiga. Encontramo-la, por exemplo, em Platão no seu famoso mito do Fedro ou em As Leis, onde aconselha a representar nos templos aves voando como símbolo das almas divinas já livres. No Risala do Pássaro, belíssimo opúsculo de Ibn Sina, aparece a alegoria que fundamenta esta obra de Attar. Ibn Sina diz que a sua alma é uma ave que ficou prisioneira nas redes dos caçadores, até que se esqueceu de si mesma e da sua condição alada. Foi despertada da sua morte em vida pelo voo livre das outras aves que tinham conseguido desembaraçar-se das redes, e os seus gritos de desespero para elas fez com que finalmente tivesse forças para libertar-se, se não totalmente, pelo menos o suficiente para voar. E todas juntas vão até à mais alta montanha da Terra depois de atravessar outras seis com as suas tentações e perigos. Aí se encontram com o Grande Rei num palácio de uma beleza impossível de descrever com palavras, e ainda mais a do Rei, dizendo o nosso filósofo:
“Toda a beleza sem ponta de fealdade que o teu coração possa imaginar, toda a perfeição sem mácula de deficiência que possas sonhar, é no Rei o único que encontrei a sua posse plena pois nele se realizou de um modo absoluto toda a formosura, sem nada de imperfeição, nem sequer em sentido metafórico. Por sua beleza, é todo Rosto para que o contemples; todo Mão aberta, pela sua generosidade. Quem a Ele se acerca, alcança a suprema felicidade, quem Dele se afasta, perde este mundo e o futuro.”2
Vemos, então, que a obra de Attar está inspirada na de Ibn Sina. A diferença é que a de Attar é em poesia, quase 5000 versos (quase 500 páginas na versão da Alianza Editorial), ou seja, cem vezes mais do que a obra do autor do Cânone de Medicina. Mas a alegoria é a mesma, uma viagem das aves-almas até encontrar-se com o Rei, atravessando, na obra de Attar, Sete Vales até converterem-se eles mesmos neste Rei.
Também o grande filósofo Al Gazzali expressou esta alegoria, e assim com o correr dos séculos muitos outros místicos e poetas… e artistas como o próprio Walt Disney no seu filme Mary Poppins, na canção “Feed the Birds” (alimenta os pássaros), uma das mais belas canções do século XX. O professor J. A. Livraga (1930-1991) ensinou esta alegoria no seu artigo “Teoria da Alma Prisioneira”:
“A Alma, como uma águia, está presa no seu cárcere observando o mundo distorcido ou fragmentado. O inescrutável Destino aprisionou-a ali há muitos milhões de anos, as suas asas estão entumecidas… a sua voz perdeu sonoridade… e apenas em sonhos concebe as Alturas. Estes sonhos são os ideais da Alma, o seu potencial poder ascensional.”
Farid ud-Din Attar, o autor da obra “A Linguagem dos Pássaros”, viveu durante a segunda metade do século XII e parte do século XIII em Nishapur, Khorasan, e morreu no ano 1229 durante o saque mongol a esta cidade. O seu apelido, Attar, é um epíteto significando “vendedor de perfumes” e “farmacêutico” pois era desse modo que ganhava a vida. Em jovem viajou a Meca, Damasco, Egipto, Turquestão e à Índia e, embora nos seus textos não mencione quem foram os seus mestres, deveriam ser de elevadíssima categoria. Segundo Rumi, o seu verdadeiro Mestre foi o espírito de Al Hallaj, crucificado e esquartejado por heresia 300 anos antes. Um adepto de sabedoria condenado por afirmar que era a Verdade ou Deus encarnado, uma forma muito audaz de proclamar a sua experiência da Unidade naquela época frente ao Islão ortodoxo. Como muitos outros místicos e mesmo Mestres de Sabedoria – recordemos o mestre do filósofo Plotino, Amonio Saccas, o teodidaktos, ou seja, “instruído pelos próprios deuses” – havia sido ensinado, diz Rumi, em sonhos e visões.
Segundo Clara Janés3, Rumi, muito jovem, encontrou-se com este sábio Attar, já um ancião centenário na cidade de Nishapur, e este sábio entregou-lhe o manuscrito de “O Livro dos Segredos” (Asrar Nama), um tratado sobre a queda da alma na matéria e como libertá-la desta prisão. O próprio Rumi, consciente do nível espiritual deste sábio, diria “ele percorreu os sete céus do amor, enquanto eu continuo a dar voltas num beco sem saída”.
Outras obras de Attar são o Diwan, recompilação de 10.000 versos de imagens fabulosas sobre o caminho místico; o Livro da Eleição; o Memorial de Santos – obra em prosa onde descreve a vida e milagres de 72 Sábios, finalizando precisamente com o seu Mestre Al Hallaj – o Livro da Divindade; o Livro das Adversidades, uma “viagem da mente humana pelo cosmos e um mundo espiritual em busca do conhecimento”4.
A profundidade filosófica da obra “A Linguagem dos Pássaros” comove o leitor. A alma fica tentada como pelo abismo do céu infinito. As imagens que usa são singulares e, infelizmente, apenas podemos adivinhar o encantamento dos versos deixando-nos embalar pela sua música5 mas sem entender o que diz (no caso de quem escreve estas linhas). Exagero? Julgai o leitor, por exemplo, no texto chamado “uma gota de água”:
Um homem perguntou a um louco: “O que são estes dois mundos que arrastam tanta fantasia?”
Ele disse: “Estes dois mundos, de cima e de baixo, são uma gota de água: não têm nem carecem de existência”.
No início surgiu uma gota de água. Uma gota de água, com tantas imagens!
E toda a imagem que se encontra na água, ainda que seja de ferro, se desfaz.
Nada há mais duro que o ferro, igualmente formado na água: observa!
Trate-se do que se tratar, a sua origem é a água. Ainda que tudo seja fogo, é um sonho.
Nunca ninguém viu que a água permaneça. Como sobre a água se construíram alicerces?
No livro, evidentemente, os diferentes tipos de pássaros representam diferentes caracteres, ou diferentes naturezas ou inclusive estados de alma. Milhares de pássaros começaram a travessia mas apenas trinta chegaram, superando todas as provas. Aniquilado o egoísmo:
“Tudo o que anteriormente fizeram e não fizeram se purificou e desapareceu do seu peito. Então o sol da proximidade iluminou-se ante eles e o seu raio outorgou resplendor às suas almas. Então, por um reflexo no Simurg do mundo, de Simurg contemplaram o aspecto. Quando, de repente, os trinta pássaros olharam, eles eram aquele mesmo Simurg.”
Quando se vêm a si mesmos, são eles mesmos. Quando olham Simurg, dão-se conta que são o próprio Simurg. Como sucede com a árvore baniano, que pode constituir um bosque inteiro sem deixar de ser uma só árvore e que representa toda a Hierarquia de Santos Iniciados: o que o cristianismo chamou “comunidade dos santos”, o budismo a soma de todos os bodhisattvas e o Antigo Egipto “o exército celeste que marcha junto a Ra, pois o seu caminho é o caminho do Fogo”. Todos eles um e ao mesmo tempo um bosque sagrado de amor, sabedoria e bem-aventurança. Tão sublimemente o expressou H. P. Blavatsky (1831-1891) na sua Doutrina Secreta! Ela desvelou inclusive parte do mistério de Simurg, cuja vida dá vida eterna a toda a humanidade baptizada na consciência de si:
Existirão sempre Iniciados e profanos até ao final deste Manvatara menor, o presente Ciclo de vida. Os Arhats (Sábios-Santos já livres do Karma e da ignorância) da “Névoa de Fogo”, os do sétimo degrau encontram-se apenas a um passo da Raiz Fundamental da sua Hierarquia, a mais elevada que existe na terra e na nossa Cadeia Terrestre. Esta “Raiz Fundamental” tem um nome que pode ser traduzido apenas por meio de várias palavras: o “Baniano-Humano sempre presente” (…)
O “Ser” que acabamos de referir e que tem de permanecer inominado, é a Árvore da qual, em épocas subsequentes, se ramificaram todos os grandes Sábios e Hierofantes historicamente conhecidos, tais como o Rishi Kapila, Hermes, Enoch, Orfeu, etc. Como homem objectivo, ele é o misterioso – sempre invisível para o profano e, no entanto, sempre presente – Personagem acerca da qual abundam as lendas do Oriente, em especial entre os ocultistas e os estudantes da Ciência Sagrada. Ele é aquele que muda de forma e, porém, permanece sempre o mesmo. E ele é, além disso, quem possui a autoridade espiritual sobre todos os Adeptos iniciados que em todo o mundo existem. Ele é, como se disse, o “Sem Nome” que tantos nomes possui e cujo nome e natureza são, no entanto, desconhecidos. Ele é o “Iniciador”, chamado a “Grande Vítima”. Porque, sentado nos Umbrais da LUZ, comtempla-a desde o Círculo de Trevas que não quer cruzar; nem abandonará o seu posto até ao Dia posterior deste Ciclo de Vida. Porque permanece o Solitário vigilante no posto por ele escolhido? Porque permanece sentado junto à Fonte da Sabedoria Primordial na qual já não bebe, posto que nada tem de aprender que já não saiba, nem nesta terra nem nos seus Céus? Porque os solitários Peregrinos cujos pés sangram de volta ao seu Lar, jamais se acham seguros, até ao último momento, de não perder o seu caminho neste deserto sem limites da ilusão e da matéria, chamado a Vida Terrena. Porque quer com gosto mostrar o caminho para aquela região de liberdade e de luz, da qual é um voluntário desterrado, a todos os prisioneiros que conseguiram libertar-se dos laços da carne e da ilusão. Porque, numa palavra, ele sacrificou-se pela humanidade ainda que apenas uns poucos eleitos possam aproveitar-se do GRANDE SACRIFÍCIO. Sob a direcção silenciosa e directa deste MAHAGURU, todos os demais Mestres e Instrutores menos divinos da humanidade se converteram, desde o primeiro despertar da consciência humana, nos guias da humanidade primitiva. Graças a estes “Filhos de Deus”, aquela humanidade infantil obteve as suas primeiras noções de todas as artes e ciências, tal como do conhecimento espiritual; e Eles foram aqueles que colocaram as primeiras pedras dos alicerces daquelas civilizações que tão cruelmente confundem as nossas gerações modernas de escritores e eruditos.
Segundo Jamil Anwarali Kassam no seu excelente trabalho “O Simbolismo dos Pássaros na Conferência dos Pássaros de Attar”, Simurg era uma ave mágica que ajudava a humanidade e, literalmente, na língua persa significa trinta pássaros. Também o poeta sufi Rzbihan Baqli (1128-1209) escreve6: “Quando o Simurg da alma voa desde o mundo da humanidade ao reino da Divindade, a alma ascendente fala consigo mesma no rosal do barro de Adão; os que buscam o reflexo daquela sombra de Simurg convertem-se na sombra de Deus”. Uma imagem muito sugestiva, buscar a Sabedoria é buscar o reflexo da Verdade nas sendas da Existência e encontrá-la é fazer que a Verdade se reflicta já em si próprio, ou seja, “aproximar-te-ás à Chama mas nunca a tocarás visto que te converteste nela”.
Há no entanto muitos pássaros que sucumbem na travessia pois esta, ainda que natural e divina, maravilhosa, é o esforço mais exigente que alguém poderá realizar:
“Foram muito poucos, na verdade, os que chegaram. Apenas um de cada mil conseguiu.
Houve afogados no mar, outros desvaneceram-se e desapareceram.
Houve os que, doentes, feridos e sedentos, no alto da montanha perderam a vida.
Houve os que pelos raios do sol pereceram com as asas queimadas e coração abrasado.
Houve os que, sem mais nada, tornaram-se panteras e leões num instante.
Houve os que se extraviaram e sucumbiram nas garras das aves de rapina.
Houve os que morreram no deserto, com lábios secos, sedentos de calor e cansaço.
Houve os que, para conseguirem um grão, mataram-se entre si como loucos.
Houve os que, por esgotamento e debilidade, se atrasaram e não prosseguiram.
Houve os que, por distrações no caminho, permaneceram onde estavam parados.
Houve os que, atraídos pelas festas, esquecendo o desejo da meta, se renderam.”
No entanto, foram piores os que nem sequer tentaram, os que não se sentiram com forças para começar (simbolizados pelo tímido rouxinol), ou que se sentiam felizes e orgulhosos por estarem junto aos poderosos do mundo servindo-os (simbolizados pelo falcão) embora, como diz o texto, estes reis fossem insignificante sombra frente ao incomparável Simurg. Ou os que desejam restaurar a felicidade, o paraíso perdido (simbolizados pelo pavão) e não a busca da Alma-Rei. Ou os que suspiravam pelos olhos do amado(a) e não podiam viver sem beber o seu licor celestial, dia a dia, e como iam empreender essa busca que tão longe os levava (o rouxinol que suspira pela rosa), era melhor viver arrolado por delícias que fazem esquecer as dores do mundo e da alma e até de si mesmo. A perdiz, apaixonada pelas pedras preciosas na montanha, tanto que não se atreve a deixá-las, simboliza quem está preso a tudo que o satisfaz ou tudo que brilha no mundo: glória, honra, virtude, poder, esquecendo-se do brilho da própria alma que suspira pelo regresso.7 E assim encontramos o pato, que todos os dias necessita das suas abluções rituais para ser puro e não pode separar-se delas, ou o papagaio, vestido de perfeição, mas enjaulado esperando apenas o alimento do seu dono e que não percebe que a vida nada é se não se voa até Simurg. Ou inclusive, a ave mítica Homa, cuja sombra benéfica outorga a realeza ou o poder entre os homens. Esta ave diz:
“Porque iria ser meu companheiro Simurg, o rebelde? Para mim coroar reis já é suficiente.”
E ouve a resposta:
“Entendo que os reis do mundo ascendem agora pela tua sombra,
Mas amanhã, na sua nefasta espera, todos eles ficarão sem coroa.
Se, no momento nefasto, o rei não vê a tua sombra, como será libertado no dia do Juízo?”
Entre os pássaros, aquele que assume protagonismo, depois de Simurg que é a meta final, é a poupa simbolizando o Filósofo, com maiúsculas. Na mística persa está associada a Eros, é o chamamento e guia do Amor neste mundo de armadilhas para caçar almas. Já no Corão menciona-se este pássaro em relação com o amor e a sabedoria, cuja conjunção é a quinta-essência da Filosofia (Philos-Amor, Sophia-Sabedoria). É o guia de Salomão buscando a sua amada, a rainha de Sabá. Neste livro, “A Linguagem dos Pássaros”, a poupa é arauto de Simurg, é quem pode conduzir até Ele, à Unidade. Desperta os pássaros para a existência da Ave Rei, o mesmo é dizer para o verdadeiro sentido da vida. Raciocina com eles dissipando as suas dúvidas e temores. Anima-os a empreender o voo e vai com eles assinalando o caminho.
Inquieta e cheia de esperança, a poupa apresentou-se no meio daquela algazarra.
Levava, do caminho, a túnica e a coroa da verdade na cabeça.
Com ágil pensamento, chegada do caminho, com o discernimento do mau e do bom.
Disse: “Oh pássaros, sou, sem qualquer dúvida, mensageira de Deus e do segredo.
De tanto ir e vir com notícias de Deus, pela minha habilidade me confiou o segredo.
Aquele em cujo bico está “em nome de Deus”, não é difícil que conheça tantos mistérios.
(…)
Alvíssaras! A poupa convertida em mensageira, a Verdade faz-te correio para todos os povos!
Oh!, que te seja propícia a viagem aos confins de Sabá e brindemos com Salomão pela linguagem dos pássaros!
Tornaste-te confidente dos segredos de Salomão. E por isso vens com a coroa de orgulho.
Atai o diabo e mantém-no encarcerado para que possas ser confidente de Salomão.
Quando encerrares o diabo na cárcere, com Salomão voarás pelo vento.
Bem, bem, ó musidje8, que de Moisés tens o talante, levanta-te e une-te à música do saber.
Aquele que conheceu esta música abandonou tudo e agradeceu desta forma, da criação, a música.
Os sete Vales que devem percorrer os pássaros antes de encontrarem-se com a glória inefável de Simurg é equivalente aos Sete Castelos da Alma da mística espanhola Santa Teresa de Jesus. São as Sete Iniciações que conduzem à extinção definitiva da ilusão, ao Nirvana budista e que desvelam finalmente a “jóia escondida no lótus”. As quatro primeiras são, portanto, as equivalentes ao sentido real – e não o vulgarizado – dos quatro Yogas.
O Primeiro Vale é a Busca. A 1ª Iniciação9 ou o Karma Yoga, ou até a sua antecâmara. Em certo aspecto, o Opus Nigrum da Alquimia como evidenciam claramente estes versos. É a acção que beneficia os outros e o sacrifício incessante pois tudo o que é grosseiro deve ser queimado.
Quando desceres ao vale da busca, apresentar-se-ão a cada instante cem fadigas (…)
Necessitas de anos de esforço e firmeza, porque aqui os estados são instáveis.
Nesta etapa tens de abandonar as tuas posses e perder todos os teus bens.
A entrada no vale vai custar-te sangue e afastar-te de tudo que tenha sido teu.
Como o conhecimento não estará ao teu alcance, o teu coração deverá desfazer-se daquilo que alberga.
Quando o teu coração se limpar de todos os atributos arderá com a luz da Majestade divina.
O Segundo Vale é o Amor, equivalente à 2ª Iniciação e ao Bhakti Yoga, o Yoga da Devoção e Amor Incondicional. O Aspirante já é um Santo, sempre ébrio de amor a Deus e à Sua presença eterna na Natureza. E como a luz espiritual se encontra em tudo, o artifício das regras e códigos esfuma-se, o próprio bem e mal perdem o seu sentido pois tudo é, de certo modo, bom pois tudo serve o Plano Divino. A defesa desta ideia levou muitos místicos sufis ao suplício pois a ordem social dificilmente a podia incorporar sem dano público.
Depois aparece o vale do amor. Quem o alcança enche-se de fogo.
Ninguém, neste vale, é nada senão fogo. Naquele que não é fogo não se realiza o prazer.
O verdadeiro apaixonado é como o fogo, é ardente e rebelde e cálido.
Nem um só instante pensa no futuro; alegremente inflama no mundo cem fogueiras.
Nem um instante é infiel nem crente. Nem um instante conhece dúvida nem certeza.
Bom e mau são equivalentes no seu caminho. Nem isto nem aquilo existe quando o amor chega. (…)
Se te abrem, do mais além, aquela visão, cada partícula partilhará contigo o seu segredo. (…)
Há que ter mil vezes vivo o coração nesta rota para sacrificar cem vidas em cada alento.
O Terceiro Vale é o Conhecimento Místico, a 3ª Iniciação e o Gnani Yoga, o uso perfeito da mente cuja energia converte a psique num diamante perfeitamente talhado.
Depois daquele, aparecerá ante ti o vale do conhecimento, carente de fim e de princípio. (…)
De todo o ser ínfimo se aclarará o segredo; o jardim do mundo florescerá para ele.
Verá a amêndoa, não verá a casca. Nem uma partícula verá, somente o amigo. (…)
De espantosa perfeição é a alma do homem que pode mergulhar em tão profundo mar.
Se o deleite dos segredos te chamar com força, o teu entusiasmo se renovará a cada instante.
Aqui se revela a ânsia de perfeição, aqui seria justo cem mil vezes entregar a vida.
O Quarto Vale é o Desapego, ou seja, a Liberdade, a Vontade plena que começa a expandir-se heroicamente e a selar cada um dos actos no Caminho. A 4º Iniciação, o Raja Yoga.
Depois chega o vale do desapego. Não há que lutar nele pois não tem sentido.
Do desapego sopram ventos e de um sopro agitam todo o terreno. (…)
Se viste um mundo inteiro de dor, considera o que viste como um sonho.
O Quinto Vale é a Unicidade
Quando isto fica para trás, chega o vale da unicidade, a morada da aniquilação e do despojamento.
Todos os que atravessem este deserto têm idêntico ponto de partida.
Sejam numerosos ou poucos os que vejas, neste caminho todos estão em um.
Se são muitos são um, um em um unido. Cada um em um, plenamente um.
O Sexto Vale é a Perplexidade
Após este chegará o vale da perplexidade. Dor e nostalgia serão a tua contínua ocupação.
Nele cada instante será triste. Suporás cada alento como uma espinha. (…)
Neste vale, o homem é como um fogo triste ou um gelo consumido pelo sofrimento. (…)
Todo o vestígio da unicidade na sua alma se perderá, e também a “perda”. (…)
Às perguntas: “És mortal ou imortal, ou ambas as coisas? És um, outro ou nem um nem outro?”
Responderá: “Nada absolutamente sei, também não sei, portanto, não saber.”
O Sétimo Vale é a pobreza e a aniquilação
Depois chega o vale da pobreza e da aniquilação. Tem sentido dizer algo?
A identidade deste vale é o esquecimento: a mudez, a surdez e o desvanecimento.
Cem mil sombras eternas te cercam, cego por um só sol estás.
Quando o mar imenso se pôs em movimento, podiam permanecer os desenhos no mar?
Os dois mundos daquele mar são desenhos, nada mais. Quem diga o contrário está na ilusão.
Quem se perder neste mar imenso, ficará para sempre perdido e em repouso.
O coração cheio neste mar de calma não encontrará outro ser senão o aniquilamento.
Se regressar a si desde este aniquilamento, alcançará muito alta visão, ser-lhe-ão entregues fartos segredos.
Numa época em que corriam ventos de orgulhoso ascetismo, um ascetismo inútil, estéril, que petrificava as consciências e as tornava insensíveis às infinitas vozes da alma e da vida, surge a voz deste sábio para quem a chave de tudo, a quinta-essência do caminho espiritual, é o Amor:
A quem chegar uma visão afortunada, num instante a sua alma descobrirá cem segredos.
Até que não te toque um olhar assim, como saberás da tua existência?
Se com frequência te sentares sozinho, não podes achar o caminho sem outros.
É necessário um mestre do caminho, não vás só. Não te lances a esse mar às cegas.
Um mestre é o que necessitas na via, em todos os teus esforços protege-te.
Se não distingues o caminho do poço, como avançarás pelo caminho sem guia?
Não tens olhos, nem o caminho é curto; no caminho, o mestre é o teu guia.
Anotações
1 Editado por Alianza Editorial, tradução ao espanhol de Clara Janés e Said Garby, pág. 480.
2 “Risala do Pássaro”, em “Três Tratados Esotéricos” de Avicena, Editorial Tecnos, Madrid, 1998. Traduzido pelo professor Miguel Cruz Hernández.
3 No estudo preliminar desta obra, na versão já referida da Alianza Editorial.
4 No Apêndice desta mesma obra, por Clara Janés, pág. 507
5 Podemos ouvir esta obra recitada em
6 Seguimos aqui o trabalho mencionado umas linhas antes.
7 “Não deseja cores aquele que tem perfume, pois o homem de essência não deseja as pedras”, é dito a esta ave no texto.
8 Pássaro parecido ao cuco que vivia no monte Tabor, mencionado nos relatos sobre Moisés. O próprio Moisés na sua ascensão se transformou num pássaro pequeno. (Nota do livro “El Lenguaje de los Pájaros” de Alianza Editorial.)
9 Referimo-nos ao que as tradições esotéricas chamam 7 Iniciações Humanas, não às 4 Planetárias, que seriam equivalentes.