A linguagem: algo assombroso
A Gramática vigente da língua espanhola menciona no seu prólogo uma citação de Rodolfo Lenz: A gramática necessária para falar é tão inconsciente, tão ignorada por quem a aplica, como a lógica de Aristóteles ou de Santo Tomás pode ser ignorada de qualquer mortal que fala e pensa logicamente [1] . Ato seguido, somos convidados à reflexão sobre o idioma e a linguagem como herança individual e coletiva.
Efetivamente, a linguagem é algo assombroso.
Recordo com um sorriso, uma anedota de infância, quando uma vizinha da minha vila acolheu em sua casa alguns parentes franceses distantes, um casal com uma menina de três anos. Quando a menina se dirigiu aos pais, a minha vizinha exclamou assombrada: como ela fala francês bem!
Sim, as crianças são capazes de perceber rapidamente a lógica da linguagem e, embora olhemos com indulgência para os balbucios dos nossos filhos, observá-lo desde um idioma diferente faz-nos apreciar o mérito que daí resulta.
Muito em breve, as crianças adotam relações sintáticas que não entendem, mas que aplicam com rigor. É por isso que dizem não me interesso, em vez de, não me encaixo. Com isso, os adultos desfrutam graças às suas regras gramaticais peculiares – perfeitamente compreensíveis – e ficamos inclusive, tentados a dar-lhes razão na hora de eleger qual a melhor fórmula. A principal característica do desenvolvimento da linguagem infantil não é a criação original, mas a assimilação criativa [2] .
E assim, num grande paradoxo, adquirimos uma competência linguística que consiste em falar e entendermo-nos, mesmo sem sabermos porque falamos como falamos. Inconscientemente, somos possuídos pelas leis do idioma, e sem esforço, expressamo-nos continuamente intercambiando mensagens com outros humanos que entendem o que dizemos e que entendemos quando falam, independentemente de conhecermos as concordâncias das palavras e das conjugações dos verbos.
Esta facilidade de inteligência do ser humano, capaz de deduzir umas regras que ninguém ainda lhe explicou, estende-se depois à sua competência para acumular no inconsciente os valores de cada termo [3]. Somos conduzidos e dominados imperceptivelmente pela linguagem e pela forma que adquiriu. Podemos expressar de forma original, o novo, simplesmente mediante o movimento e a ordem das frases. Em alguns casos será a estrutura da oração; em outros, a interpretação nova de palavras antigas; e em outros, o ritmo ou o tom.
O milagre de falar e entendermos
Emilio Lledó diz que a linguagem, em certo sentido, tem a ver com a nossa forma de visualizar o mundo, com a nossa forma íntima de iluminação [4], porque, da mesma maneira que sem os olhos não veríamos, sem luz das palavras não poderíamos entender. Não só nos descobrimos e nos interpretamos, naquele murmúrio interior onde a nossa vida nos fala, mas a linguagem que nos permite sair para o mundo exterior e nos relacionarmos com outros seres. Se não tivéssemos as palavras, não seria apenas um silêncio terrível; seria também uma obscuridade interior, um apagão do ser já deslizado para o nada, uma insipidez, uma inconsciência insuperável [5] .
Jaspers afirma que experimentamos e compreendemos o que atualizamos na linguagem: as coisas aparecem subitamente diante de nós quando as nomeamos.
A linguagem é de algum modo, o lugar onde se conserva o saber adquirido, o sentimento aclarado e o querer esclarecido. É como a câmara do tesouro do conhecimento adormecido que o falante pode reanimar a qualquer momento. A linguagem proporciona os pontos de apoio para o progresso do conhecimento, pois amarra o alcançado pelo pensamento. A recordação, a consumação, a síntese e o progresso do conhecimento são realizados graças à linguagem [6] .
Pensando-o bem, como conseguimos reconhecer as palavras? Não é tão singelo como parece, como comprovamos quando queremos aprender outro idioma. Onde as palavras começam e acabam? Se ouvirmos Van-a-romper-la-pared, não acedemos apenas às palavras da frase, mas a outras falsas, como vana e perla. Nesse sentido, a psicolinguística descreve-nos como antecipamos o significado e o reconhecimento de uma palavra, segundo o contexto e como, mais do que reconhecê-las, se ativam em nós.
As subtilezas da linguagem fazem com que um só fonema evoque em nós um mundo diferente de significados, como entre bata e lata ou entre púlpito e pulpito. Acabamos aprendendo palavras que utilizaremos muito pouco na vida e, ao ouvi-las, somos capazes de distingui-las de outras 60.000 que conhecemos.
Quando uma criança descobre o que significa um verbo, parece que tem claro, quem faz o quê a quem e distingue entre o papá sorri para a mamã e a mamã sorri para o papá. Os verbos requerem a apreciação de que os factos são estruturados, quer dizer, que existem coisas que causam outras coisas.
Entretanto, isso não é tudo. Depois de passarmos a vida aprendendo significados e gramática, muitas vezes podemos nos expressar ignorando ambos os aspetos. Esta distinção entre o significado que se transmite e os meios que se usam, é muito bem exemplificada pelo personagem de Jabberwocky, de Lewis Carrol, em Through the Looking Glass:
«Era a torreira e as longas touvas
girosqueavam os gramilvos;
As borogovas miseráveis e débeis eram,
E os mamirratos grilvavam» [7] .
Aspeto criativo da linguagem
A faceta criativa do uso da linguagem é a capacidade de expressar novos pensamentos e entender expressões inteiramente originais. A linguagem que usamos é, em si mesmo, inovadora. O número de orações que podemos entender sem dificuldade é astronómico. Fazemos infinitas combinações com meios finitos para nos expressarmos, e somos capazes de gerar novos pensamentos e manifestá-los corretamente de uma forma inédita, que supera a experiência prévia que tínhamos antes de enunciá-los.
Noam Chomsky menciona Juan Huarte de San Juan, um espanhol do século XVI que refletiu sobre a palavra ingénuo, que em castelhano da sua época descrevia a inteligência, e que está etimologicamente aparentado com os verbos engendrar ou gerar, o qual serve a Chomsky para relacionar a potência geradora do entendimento com a linguagem [8] .
No mito de Babel – onde todas as línguas se confundiram, por certo – a torre é levantada com numerosos pisos. O significado das palavras e o uso das frases também têm diferentes níveis, todos interdependentes e relevantes. A ironia e o sarcasmo são exemplos de que o significado literal das palavras nem sempre é o real. Podemos dizer, aqui chega o pontual, para nos referirmos a alguém que tem o hábito de chegar atrasado ou que sorte eu tenho, quando perdemos o metropolitano por dois minutos. A existência de dezenas de figuras retóricas evidencia a complexidade que podem alcançar estas capas de linguagem.
Dentro destes níveis, devemos assinalar um genuinamente humano, que é onde a linguagem se torna simbólica e adquire um caráter universal e inequívoco. Segundo Jaspers, este nível permite que os objetos possam ser conhecidos de maneira idêntica por qualquer inteligência e conservar o mesmo conteúdo em repetições sucessivas. Fátima Gordillo explica-nos que o símbolo não fala à nossa parte lógica e, por isso, os textos e relatos que alcançam a nossa consciência profunda usam sempre uma linguagem simbólica, com véus e metáforas que ocultam escondem a sua profundidade à primeira vista. É esta linguagem que acrescenta uma dimensão à realidade objetiva, a verticalidade, estabelecendo relações que vão além do racional entre os diferentes níveis de existência.
A linguagem simbólica (…) prescinde (…) da separação e a dissecação que caracterizam a mente racional, e introduz através do pensamento um cabo para escalar até essa outra região da mente onde todos podemos entendermo-nos, em que (…) todos partilhamos a experiência humana, a preocupação com as pessoas que amamos, a dor, o temor do mistério da morte e da vida, a inquietude com o destino, a doença, a velhice e a eterna questão e necessária se há uma razão para tudo isso [9] .
Não é em vão, as tradições antigas falam-nos que a aparição da linguagem marcou um marco na evolução humana ao coincidir com a aquisição de uma capacidade mental que supera a etapa animal [10] .
A linguagem aproxima o distante
O logos é a possibilidade de arrancar o homem do horizonte do imediatismo. Para ele precisa-se a criação de um universo ausente [11]. Reduzir a distância das coisas com a linguagem significa que podemos falar sobre o que opinamos, o que desejamos ou o que imaginamos, que podemos dirigirmo-nos conceitualmente um objeto distante, e que as palavras nos servem para nos referirmos a coisas que vemos e outras que não vemos, que talvez sucedam no futuro ou que já ocorreram no passado. Podemos nomear algo que ninguém jamais viu ou definir coisas abstratas que não têm forma material, como a justiça, Deus, a morte ou o valor.
Este espaço abstrato através do qual podemos transitar com a linguagem é um mundo construído que podemos compartilhar ou ser participantes daquilo que é construído por outros. Se ouvirmos que o centauro alado cavalgou por um céu ardente, podemos construir um modelo mental de como seria o mundo se existissem centauros alados ou se o céu ardera.
Mas o que está distante também tem outra forma de se fazer presente na linguagem: a escrita. A linguagem escrita, ao ser compreendida, converte-se uma mistura de presença e ausência, de memória e esquecimento, e a sua leitura leva-nos através das voltas e reviravoltas das suas conexões, da sua sintaxe, a um território que nunca teríamos sido capazes de alcançar sozinhos [12] . A escritura projeta até ao futuro o que contém, conecta tempos separados e recria realidades com as quais não convivemos fisicamente. Sócrates existe porque Platão o prendeu numa linguagem escrita que, todavia, fala connosco.
A linguagem escrita, além do mais, exerce memória coletiva e explica-nos o mundo que conhecemos através dos passos que deu para chegar a ser como é. O que somos e como atuamos individualmente sustem e entende no fundo, o que fomos anteriormente. E o mesmo sucede a nível de conjunto: a tradição que canaliza e entrega, na escrita, a voz da história chega também a convertê-la em eco repetido e distante [13], e deste modo crescemos e entendemo-nos como uma humanidade que é fruto resultante de um passado.
A linguagem não apenas transporta a história, mas é o veículo vivo que a cultura utiliza para se transmitir como um caldo de cultivo acumulado que permite emergir as personalidades individuais de cada civilização num escalão já conquistado. Se a língua se perde ou se perverte intencionalmente, tornando-a confusa, cria-se um buraco no meio da ponte que dificulta a passagem entre as duas margens ou, diretamente, o impede.
As palavras (…) trazem primeiro a semente de uma herança cultural que transcende o indivíduo [14] . Cada um de nós herda as palavras do seu idioma materno e também as ideias nelas contidas. Dessa forma, geração após geração, as palavras vão acumulando a riqueza de cada momento e encadeiam-se de forma resistente ao fio que vai trespassando o tempo. A história de todas as épocas vai acrescentando contextos às palavras, e os seus significados impregnam o nosso pensamento. A linguagem estrutura o pensamento, mas o idioma orienta-o [15]. O sentido das palavras vai indicando um horizonte de ideias e de sentimentos para onde elas nos levam. A memória do passado teve que encontrar os canais, os caminhos que conduziam a cada presente [16] e utilizou a linguagem como meio. Existem vínculos que nos atam às palavras com as quais temos aprendido a pensar e a sentir. É uma herança social em que amanhecemos instalados.
Germe de pensamento
As palavras são os embriões das ideias, o germe do pensamento, a estrutura das razões [17] . Grijelmo afirma que a linguagem não é um produto, mas um processo psíquico, pois provém de uma cadeia da razão. Todo o idioma é constituído por uma formidável fiação da qual apenas temos consciência e que, no entanto, nos prende no nosso pensamento (…); e a maneira como percebemos estes vocábulos, seus significados e suas relações, influencia a nossa forma de sentir. E à medida que o nosso campo de palavras se estende, assim estarão distantes ou próximos, entre si, os limites da nossa capacidade intelectual [18] . O facto de que os circuitos das palavras ativam, por sua vez, os circuitos dos sentimentos, constitui um ponto importante.
O pensamento deve estar amarrado de algum modo à linguagem, diz-nos Jaspers. As palavras permitem-nos aceder a conceitos e representações de que não dispomos diretamente: O valor das palavras não está no que encerram, mas no que libertam, afirma Jorge Ángel Livraga [19] .
O dom da linguagem faz com que o significado se torne claro para nós e, à medida que nos dirigimos para ele, origina-se e transforma-se a linguagem com o que captamos, permitindo experimentar com clarificação um novo impulso. É necessário seguir a sequência de passos mentais, articulados de forma que cada um se baseie nos demais, para conceber aquelas coisas que não fazem ato de presença diante de nenhum deles isoladamente. (…) Em cada passo da consciência brilha um raio de atenção que nos permite perceber algo. Passamos de uma representação a outra, de uma a outra ideia, voltamos ao ponto de partida, comparamos, estabelecemos relações. A sucessão de atos organiza o que se poderá pensar posteriormente num único ato apoiado na disposição do previamente pensado. Aquilo que o homem não possa compreender num ato, não existe para ele [20] .
Parece evidente que não podemos sair psicologicamente da linguagem, e que existe uma relação entre clareza, exatidão, consciência e a linguagem mediante a qual pensamos. Contudo, Jaspers destaca que não há identidade entre linguagem e pensamento, mas apenas sujeição recíproca.
Para Lledó, a linguagem que possuímos vai criando um canal onde o fluxo de pensamento se constitui e se substancia. Este discorrer origina a reflexão e, com ela, esse inesgotável tesouro inesgotável do pensamento abstrato que dá forma ao fundo pessoal e que oferece, ao mesmo tempo, abrigo e sentido a tudo o que, como no mito platônico da escrita, nos chega desde fora [21] . Adverte este autor que a proliferação de imagens que hoje nos inunda tem a capacidade de aniquilar o sistema de ressonâncias que a linguagem criou e necessita, mais do que nunca, do contrapeso da intimidade abstrata que a reflexão nos permite. Não basta ver as coisas, é preciso organizar a experiência num mundo intermediário entre a mente e os objetos, e desta forma, convertê-los em objetos mentais, que por sua vez organizam a nossa exterioridade.
Mas é hora de acrescentar que devemos ter muito em conta que os esquemas mentais não são uma mera espinha dorsal do pensamento; são estruturas mentais que orientam a vida intelectual, volitiva e sentimental do homem de uma forma muito precisa [22] . Quer dizer, inteligência, vontade e amor, três categorias que trespassam e definem o que um ser humano pode dar de si, estão relacionadas de maneira importante com a linguagem. Por isso é crucial identificar aqueles que utilizam com astúcia os recursos da linguagem para que as pessoas orientem de forma inadequada o seu modo de pensar, sentir e querer, mas não percebem que, ao fazê-lo, põem em jogo o sentido da sua vida 23] .
A bagagem de palavras
As palavras evocam. Além do seu significado próprio, adquirem outros dentro das frases, ditados e refrões, e com estes usos se vai empapando o idioma. A linguagem que recebemos não nos traz apenas palavras, mas estruturas. Ao longo dos séculos, graças a uma multitude de obras escritas, as fórmulas de linguagem (aposições, omissões, vínculos entre palavras, etc.) espalharam-se imperceptivelmente, e todos vamos herdando os seus recursos, os seus usos e os seus pensamentos implícitos, acrescentando aceções e matizes. Deste modo, as palavras vão acumulando poder.
Não se trata apenas do poder evidente da linguagem, mas daquele outro que passa despercebido: o sentido subliminar, subjacente, semioculto. É aí que reside a sua força, porque o ouvinte não a conhece. As palavras influenciam. O homem urbano já não semeia, provavelmente nunca viu semear; e ainda assim ele utiliza esse verbo com uma intenção sedutora porque carrega consigo todas as alegorias da colheita [24] .
As palavras são históricas e desenvolvem-se com o uso. Estão repletas de conotações e, quando se combinam, geram mensagens nas entrelinhas que percorrem o raciocínio e chegam diretamente ao recetor, que não opõe nenhuma resistência. Sua significativa riqueza latente está disposta para despertar a qualquer momento. Se usarmos sufixos depreciativos (catre, gajo, passarinho, aldeola) alcançaremos plenamente o inconsciente do outro sem arriscar nada, porque não são insultos nem resultam malsonantes, mas têm um efeito imediato na perceção do objeto mencionado, por parte do ouvinte. Dessa maneira, os vocábulos vão-se carregando de significados ocultos, enterrados, mas eficazes, e desse caráter encoberto derivará uma perceção verdadeira ou tergiversada da realidade, segundo sejam utilizados pelo emissor e analisados pelo recetor.
A palavra pronunciada é a ponta de um majestoso icebergue que se esconde sob a superfície da água [25]. Mesmo as partículas aparentemente secundárias da linguagem, como as conjunções ou as preposições, retratam o pensamento: Ele é estrangeiro, mas trabalhador. A conjunção mas delata os nossos julgamentos. As frases convertem-se em desfiles de metáforas, hipérboles e metonímias que funcionam como moedas de valor, mas o seu uso prolongado desgasta a sua cunhagem; daí a necessidade de voltar a elas de vez em quando para recuperar o seu brilho.
Modificar o idioma, para quê?
A sedução das palavras (…) não se dirige à zona racional de quem recebe o enunciado, mas às suas emoções. E situa numa posição de vantagem o emissor, porque este conhece o valor completo dos termos que utiliza, sabe do seu perfume e da sua história e, sobretudo, guarda na sua mente os vocábulos equivalentes que rejeitou [26]. A linguagem adulterada atua despoticamente sobre os outros sem passar pela inteligência, já que os conceitos precisos são substituídos por palavras de ordem carregadas de emotividade.
Quanto mais amplo é o campo semântico, mais se pode adaptar à interpretação de cada ouvinte. Se alguém nos disse que sucederá algo terrível, será terrível para cada um pois cada um escolherá o que é terrível para si em concreto, sem necessidade que o emissor o delimite.
As mensagens do tipo político ou económico usam frequentemente metáforas mentirosas. Não soa igual dizer que houve danos colaterais que manifestar que houve mortes de civis devido a uma má pontaria. Às vezes, são evidentes os desvios intencionais de sentido de algumas expressões, como chamar trabalhador permanente-descontínuo a alguém que não tem um trabalho fixo ou denominar pós-verdade o que se caracteriza por se afastar da verdade. E muitas frases grandiloquentes nada dizem: Dados os condicionamentos existentes, a realização das premissas do programa ajuda na preparação e execução das novas proposições. Existem outros truques que se baseiam nas nossas perceções: parece-nos maior uma área de mil metros quadrados, do que outra de quatro hectares, por exemplo. O engano está murado, no centro da linguagem, como um dique onde termina o seu curso e o seu fluxo [27], diz Emilio Lledó.
Poderíamos perguntar-nos por que nos últimos anos, em muitos países, se intenta modificar a linguagem a partir das altas esferas, estigmatizando a quem adverte para o esvaziamento histórico das palavras que isso supõe. A adição de conotações modernas a palavras que nunca tiveram essas matizes provoca que analisemos obras escritas, não muito distantes no tempo, atribuindo-lhes preconceituosamente valores que seus autores nunca pretenderam. Não se trata apenas da censura ilógica e da modificação de textos relativamente modernos, mas que lemos sobre outras épocas e catalogamos as suas sociedades, segundo o novo significado que temos inventado para algumas palavras. Para dar um exemplo singelo: aqueles que foram educados numa linguagem inclusiva terão dificuldade para entender que quando os filósofos de há um século, se referiam ao homem não pretendiam agravar as mulheres, porém falavam de seres humanos e, além disso, ninguém se ofendeu por isso (as discriminações não se buscavam na linguagem).
López Quintás alerta para o esvaziamento espiritual (entendido como o oposto do material) da sociedade moderna que, em sua opinião, se opera através da linguagem de forma premeditada, pois ao utilizar as palavras com um determinado sentido, pode-se modelar uma forma peculiar de ver a existência.
Daí o interesse em transmutar a linguagem para romper o seu nexo com o passado e despojá-lo da riquíssima herança que alberga e transporta. Alterou-se a linguagem, que é fonte de alimento espiritual para o homem (…) [começa] a segunda fase da manipulação: o recorte de uma nova linguagem, adequada à mentalidade que se tenta inocular. Uma linguagem simplificada, banalizada, empobrecida, carente de recursos, torna-se incapaz de comunicar aos homens a multitude de matizes que a realidade apresenta [28]. O sofista moderno põe ao seu serviço os recursos expressivos da linguagem, em vez de pô-los ao serviço da verdade.
A nossa linguagem como arma de defesa
A linguagem pode converter-se numa ferramenta de manipulação, mas, pelas mesmas razões, é também uma arma de defesa contra desvios involuntários do nosso pensamento. Conhecendo o veneno, podemos fazer o antídoto. Pensar bem, ou seja, utilizar o nosso discernimento, não é algo automático, devemo-nos educar. O critério vai associado à linguagem.
As palavras servem para persuadir e para dissuadir, e o grau em que o consignam dependerá da descodificação e interpretação do recetor. Vivemos numa sociedade em que os meios de comunicação, em sua maioria, apenas reproduzem de forma acrítica o que se deseja difundir em determinadas esferas. E, como assinala Lledó, muitos de nós, à força de escutar até à saciedade determinadas palavras, começamos a deixá-las escapar pela nossa mente sem nos preocuparmos com o que querem dizer e ao que nos comprometem [29]. O nosso objetivo, como diziam os antigos filósofos, é a vida boa, e isso requer pensar, falar e atuar em prol do bem. Não somos, realmente, como seres humanos, se temos perdido o olhar, se temos perdido, nas palavras, a luz e a reflexão que nos transforma em sujeitos conscientes [30].
Na linguagem podemos encontrar o primeiro contraste entre verdade e mentira. Por isso, a primeira lei do demagogo é não matizar os conceitos, uma vez que – como diz Jaspers – a polissemia origina enganosos deslocamentos de sentido. A inconsciência no uso próprio e alheio da linguagem impede-nos de perceber como nos conduzimos e como somos conduzidos. Quando não examinamos os conceitos e objetos que as palavras expressam – algo habitual no ritmo acelerado em que estamos imersos – podemos tropeçar na hora de entender o mundo e a nós mesmos. Só a reflexão nos permite chegar ao fundo dos sucessos.
O manipulador destrói os vocábulos, despoja-os de sentido, altera o seu significado tradicional para que as pessoas não tenham acesso a certas vertentes da realidade. Empobrecer a linguagem equivale a adormecer as consciências, esquecê-las, embotá-las [31]. Estar sobre aviso permite-nos descobrir a estratégia da linguagem e evitar o aturdimento que pode produzir.
Quando as pessoas se tornam mais conscientes, enriquecem-se mutuamente e podem montar os seus âmbitos de vida com um fim de melhoramento. Em vez disso, a reunião inconsciente apenas gera uma massa, um amontoado amorfo de indivíduos que agem chocando como objetos facilmente domináveis.
As pessoas, quando têm ideais valiosos, convicções éticas sólidas, vontade de desenvolver todas as possibilidades do seu ser, tendem a unir-se solidariamente e a estruturar-se em comunidades. Devido à sua coesão interna, uma estrutura comunitária é inexpugnável. Pode ser destruída desde fora com meios violentos, mas não dominada interiormente por via de assédio espiritual [32].
Desvendar as armadilhas da linguagem equivale a prevenir os seus males. Os mecanismos de defesa relacionam-se diretamente com a nossa capacidade de refletir sobre a linguagem que usamos e com o nosso próprio domínio do idioma.
Estamos perante o reinado do trivial, por não dizer do grosseiro, das coisas efémeras, destinadas a ser renovadas rapidamente, porque a novidade substitui o desejo de conhecimento. Estamos suportando, talvez, o exílio da palavra bem usada, porque é uma arma muito poderosa naqueles que sabem pensar, falar, escrever e expressar-se bem. Acaso se perdeu de todo, o valor da palavra, do saber falar e escutar, e do silêncio tranquilo e reflexivo da leitura? Não o cremos assim [33].
Esmeralda Merino
Publicado na Revista Esfinge em 1 de maio de 2024
[1] RAE, Nova gramática da língua espanhola, ASALE, 2009-2011.
[2] Jaspers, Carlos. O trágico/A linguagem, Arrogância, novecentos e noventa e cinco.
[3] Grijelmo, Alex, A sedução das palavras, Touro, 2000.
[4] Lledó, Emilio, Identidade e amizade, Touro, 2022.
[5] Ibidem.
[6] Karl Jaspers, op. cit.
[7] Citado por Gerry T.M. Altmann em A Ascensão de Babel, Ariel, 2002.
[8] Chomsky, Noam, Linguagem e compreensão, Seis Barral, 1971.
[9] Gordillo, Fátima, Ensaio sobre palavras, Edições Obelisco, 2022.
[10] Blavatsky, HP, A Doutrina secreta, volume III, Kier, 1994.
[11] Lledó, Emílio, O silêncio da escrita, Centro de Estudos Políticos e Constitucionais, 1992.
[12] Ibidem.
[13] Ibidem.
[14] Alex Grijelmo, op. cit.
[15] Fátima Gordillo, op. cit.
[16] O silêncio da escrita. Emílio Lledó, ob. cit.
[17] Alex Grijelmo, op. cit.
[18] Ibidem.
[19] Livraga, Jorge Ángel, Ankor, o último príncipe da Atlântida, Ed. NA, 2007.
[20] Jaspers, op. cit.
[21] O silêncio da escrita, op. cit.
[22] Quintás, Alfonso López, A Revolução oculta, Ed PPC, 1998.
[23] Ibidem.
[24] Alex Grijelmo, op. cit.
[25] Ibidem.
[26] Ibidem.
[27] Identidade e amizade, op. cit.
[28] A Revolução oculta, op. cit.
[29] Identidade e amizade, op. cit.
[30] Ibidem.
[31] A Revolução oculta, op. cit.
[32] Quintás, Alfonso López, A palavra manipulada, Rialp, 2015.
[33] Steinberg, Délia, Filosofia para viver, Délia Steinberg. Ed. NA, 2005.
Imagem de destaque: Arnold Lakhovsky, A conversação (1935). Domínio público.