Se já nos é bem difícil o acesso às elusivas informações históricas sobre a pessoa de Jesus Cristo, mais ainda o é no caso de sua mãe… e mais ainda desta enquanto criança. Tarefa tão árdua que a própria devoção à figura de Nossa Senhora Menina, mesmo mundialmente, não alcança o status que nos acostumamos a ver em centenas de outras manifestações. Sendo os escritos apócrifos descartados enquanto fontes historicamente confiáveis (o Proto-Evangelho de Tiago é um bom exemplo), o que nos resta é enquadrarmos sua realidade no que sabemos sobre o padrão de vida de uma menina palestina às portas do primeiro século. Muito provavelmente, a pequena “Míriam” não deverá fugir deste cenário. Porém, o fato é que a imagem da “menina” nas manifestações católicas assumiu seus próprios contornos, e encontramos ao norte da Itália sua expressão mais emblemática.

Muito popular dentre casais italianos com dificuldade em gerar filhos, a peculiar representação em cera de “Maria Bambina”, na Casa Madre das Irmãs da Caridade de Milão, foi feita em 1735 por Isabella Chiara Fornari, uma freira franciscana. Posteriormente conduzida em 1876 a seu atual destino, a mesma passou a ser venerada publicamente a partir da Festa da Natividade de Maria, a 8 de setembro – data determinada por uma revelação a São Maurílio em Angers, no ano 430. Atualmente, as religiosas tornaram-se as “irmãs de Maria Bambina” e todos os anos, no dia em sua homenagem, as mesmas tocam pequenos pedaços de algodão na imagem da santa para que sejam distribuídos aos devotos. Curioso notar que Milão também acolheu “Bambina” como sua padroeira, cujo culto parece ter se iniciado ainda no século X – por sua vez, “emprestado” da Igreja Grega Oriental. Ora, o próprio Duomo de Milão também é conhecido como “Basilica Cattedrale Metropolitana di Santa Maria Nascente” – esta se firma como a maior igreja italiana e a quarta maior da Europa. Em meio à Segunda Grande Guerra, e diante dos riscos das bombas, assim como Maria fez com seu bebê, Milão decide proteger sua “bambina” enviando-a a Lecco, mais especificamente ao bairro de Maggianico, em fevereiro de 1943. A estada provisória da imagem durará pouco mais de 2 anos quando, a 4 de setembro de 1945, a mesma retornará a Milão ainda aguardando a reconstrução de seu antigo lar, deixada aos escombros após um brutal bombardeio.

Ainda que presa a questões mais simbólicas e a subjetividades de muitas ordens, a representação da Maria menina foge muito com o que sua figura histórica deva ter aparentado na problemática e tórrida Nazaré de dois mil anos atrás. Isso não impediu, todavia, a vários artistas tardio-medievais, renascentistas e barrocos de haverem-na representada como expressão religiosa-mística: Giotto, Pietro Lorenzetti, Vittore Carpaccio, o Maestro dell’Osservanza, Giuseppe Prepositi, Francesco Mancini, Francisco de Zurbarán e Bartolomé S.Murillo, para citar alguns. Mas… vamos aos fatos:

“Maria Bambina” de Milão: um olhar mais romântico e catequético sobre a significância de um culto pouco conhecido. (Giovanni Dall’Orto, 2007).

Nazaré à época da infância da mãe do Messias era uma cidade de significância menor, muito reduzida em tamanho, confusa, caótica, e erigida por sobre uma colina na Baixa Galileia – o que aumentava mais ainda sua já precária situação urbana. A julgar pelos relatos bíblicos, os nazarenos eram vistos pelos judeus como gente inferior, mestiça, sem requinte algum e impura para o Judaísmo. Seus habitantes (25 famílias ou 480 pessoas, aproximadamente) eram gente muito simplória, levando um estilo de vida ainda herdado da Idade do Ferro. Debaixo de um sol impiedoso, estes aldeões se entregavam ao trabalho duro nos campos, lidando com a lavoura e criação de, sobretudo, cabras e galinhas. Não era comum que ficassem muito tempo no interior das minúsculas, mal ventiladas (mas frescas à noite) e pouco confortáveis casas. Estas congregavam sala, quarto e cozinha no mesmo cômodo onde a parte “central” (a “TV da sala”) era o forno. Também havia adjacências para os animais e instrumentos de trabalho. Tais moradias eram, muitas vezes, escavadas nos próprios costados das rochas na colina.

“Maria Menina fiandeira”, Escolas Colonial Hispânica (séc.XIX) e Peruana (princípio do séc.XX): original perdido de Zurbarán parece ter sido modelo para as diversas versões sobre o tema (IMAGENS: Invaluable.com / CataWiki).

Neste contexto, é muito provável que os primeiros anos de vida de Maria tivessem sido preenchidos com brincadeiras ao ar livre. Estas poderiam ocorrer, também, enquanto acompanhando os pais em suas atividades laborais no campo, ou – menos frequentemente – nas domésticas. Em seus momentos de diversão, certamente, participava de partidas e jogos em grupo, já que era comum que fossem feitos em coletividade. Dentre as de rua, havia uma em especial onde procuravam reproduzir trechos cerimoniais adultos – como relatado em Mateus 11:16-17 e Lucas 7:32 -, quando há uma referência às crianças tocarem instrumentos e se porem a dançar, imitando os mais velhos. Dentre as brincadeiras de menina mais tradicionais, citam-se o universal esconde-esconde – que podia incluir o toque na cabeça ou uso de músicas entoando rimas para a definição do próximo apanhador -, e a “hajla”. Esta última era realizada com riscos no chão definindo uma coluna dividida em quadrados. Então, uma das meninas deveria chutar uma pedra na direção destes. Em qual dos quadrados a pedra estacionasse, aí seria a pontuação de quem chutou – obviamente, quanto mais distante o quadrado, mais pontos. Caso a pedra saísse dos limites de qualquer dos quadrados, a participante seria eliminada.

Sobre a aparência física de uma Maria nos anos de infância, não é difícil supor que tenha tido um corpo compatível com a intensidade dos agitos de uma criança pré-TV, games e internet, e saudavelmente sustentada por uma alimentação equilibrada. As proteínas vinham do leite de cabra, queijo, coalhada, frango, ovos, cordeiro, adicionadas ao peixe seco do Lago Genesaré. Quanto aos horti-frutti, o cardápio incluía azeitonas e azeite, sementes e grãos, cebola, lentilhas, mel, melão, romã, tâmara e figo. Pense ainda nas constantes “escaladas” da menina pela variada e acidentada topografia nas vizinhanças de casa… Funcionariam como um treino constante à toda sua estrutura física. Diria-se, Maria deveria ter a constituição física de uma desportista mirim. Ter suportado, sem maiores problemas, a longa e desgastante fuga para o Egito em episódio posterior, pode ser um indicativo de seu preparo corpóreo. E sobre a fisionomia da jovem Maria, há um curioso relato que chegou a nós pelas mãos de um cronista, Hegésipo (I-II d.C.), que deve nos trazer uma valiosa referência: “Nesta cidade (Nazaré) as mulheres judias são tão graciosas, que não se encontram mais belas na região. E dizem que isto é um dom da Virgem Míriam, da qual se orgulham em ser parentes”.

Maria Menina, segundo a Inteligência Artificial

Seguindo estes passos, nesta desafiadora busca por uma provável imagem infante da mãe do Redentor, e após recriar o rosto de Maria na adolescência e fase adulta, resolvo apresentar o rosto de Maria aos 5 e 10 anos de idade. O experimento teve como base, sobretudo, o projeto com os rostos anteriores, o Santo Sudário e o trabalho do designer Ray Downing, somado a uma análise antropológica da realidade histórica onde estava inserida.

A criação destes novos rostos durou em torno de 4 meses: Pegando aqueles de Maria em versão adulta e adolescente, realizei várias experimentações com softwares de inteligência artificial e alta tecnologia de redes neurais convolucionais para regressão etária. A seguir, outros programas para ajustes faciais e de edição de imagens e, finalmente, alguns retoques artísticos manuais de minha parte – a fim de melhor definir uma fisionomia antropologicamente verossímil de uma menina palestina de 2000 anos atrás em dois momentos de sua infância. Vale notar que este projeto tem a chancela de Barrie Schwortz, o maior sindonologista do mundo, pesquisador e conferencista, fotógrafo oficial do histórico Projeto STURP.

Mas, como saber sobre a fisionomia da mãe, somente pelos traços do filho? Ora, o pensamento mais tradicional entende que, na verdade, Jesus foi concebido de maneira sobrenatural por Maria Virgem e por obra do Espírito Santo, sem união carnal com um homem, numa concepção completamente imaculada. Segundo as Escrituras, José, por ser pai adotivo de Jesus, não teve participação biológica na formação carnal do Messias. Então, restaria somente à Maria, sua mãe, esta atribuição no que tange a natureza humana de Cristo. Claro que sempre teremos discussões a este respeito, mas é bem razoável supor que o material biológico que definiria a aparência de Jesus, ao achar sua herança genética apenas em Maria (por ser humana e, não, imaterial), teria definido a aparência daquele – o ‘fruto do ventre’ – muito similar ao desta, sua única progenitora carnal.

Enfim, a quem crê que o Sudário tenha envolvido o corpo do Messias, segundo o frio entender da inteligência artificial, os rostos de Sua mãe foram estes em duas etapas da infância. Isto tudo, aliado ao embasamento teórico que obtive, sobretudo, de estudos sobre antropologia e o ponto de vista dos debates nos concílios, assim como o pensamento grego sobre estética, e a filosofia medieval sobre Beleza. Minha pesquisa não pretende mostrar apenas como Maria deve ter sido com base única no ‘padrão fisionômico da gente comum’ da Judeia ou Palestina há dois milênios. Minha pesquisa quer apontar para algo mais particular, exclusivista: a pessoa única de Maria de Nazaré, mãe do Filho de Deus. Apenas ela teria tido estes rostos, e mais ninguém.

Também é interessante perceber o aspecto de ‘travessura’ em seu rosto na fase dos 10 anos… Algo muito saudável e natural para qualquer criança. E, enquanto menina em torno dos cinco, a arrebatadora meiguice em seu olhar. Seja em uma ou outra, explorar estas novas possibilidades no que tangem seu aspecto físico é sempre altamente estimulante e regozijador. Enfim, dos tormentos do desfigurado rosto de Jesus no Sudário, nos vem a face angelical de Sua mãe; uma Maria a nos lembrar que da provação vem a renovação.

Átila Soares da Costa Filho

Átila Soares da Costa Filho é professor e autor de 4 livros. Com referências em mais de 50 países, é graduado em Desenho Industrial e especialista em História, História da Arte, Igreja Medieval, Filosofia, Sociologia, Antropologia, Arqueologia e Patrimônio. Também é colaborador na revista “Humanitas” (Ed.Escala, São Paulo) e no site “Italia Medievale” (Milão). Ainda integra o comitê científico na Mona Lisa Foundation (Zurique) e no projeto L’Invisibile nell’Arte (Roma).

Imagem de destaque: O que poderia ser o verdadeiro rosto de Maria quando criança, aos 5 e 10 anos de idade. Arte desenvolvida e produzida por Átila Soares a partir de experimento sobre o “Cristo no Sudário” de R.Downing (IMAGENS: Átila Soares).