Recentemente tive a oportunidade para investigar o meu conto de fadas preferido de sempre, Cinderela, a uma nova luz. Percebi que podemos de facto extrair princípios muito práticos para aplicá-los à nossa vida diária. Mas para isso, necessitamos olhar para a história com que estamos familiarizados, com novos olhos, deixando, por momentos, as noções pré-concebidas. Comecei a descascar lentamente as camadas, a tentar ler nas entrelinhas, e a compreender o simbolismo profundamente embutido nas personagens e no enredo. 
A mensagem popular e moral deste conto ilustra o valor intemporal da Vitória do Bem sobre o Mal, com o objetivo de inspirar a conduta correta nas crianças. Em última análise, a bondosa e trabalhadora Cinderela sai vitoriosa apesar de todos os obstáculos da sua madrasta e irmãs, geralmente consideradas como os símbolos do mal. No entanto, é evidente que a história contém também outras mensagens místicas, retratando a viagem de um filósofo em busca de Sabedoria; é talvez a viagem de todo ser humano, cada um aspirando pelo seu Príncipe/ Princesa, o nosso verdadeiro potencial humano para tornarmo-nos a melhor versão de nós mesmos.
Para embarcar na viagem, o conto parece enfatizar a importância da correta preparação. No começo da história, Cinderela é retratada como trabalhando e limpando constantemente. Para mim, trabalho simboliza disciplina e ordem, que são básicas, mas no entanto ferramentas essenciais; há uma necessidade de organizar os nossos pensamentos e emoções que usualmente estão manchados com elementos egoístas. Limpar simboliza um passo muito significativo no processo interno de purificação; limpar vícios e desejos para criar espaço para algo novo e melhor, um passo mais aproximado do nosso potencial. Com limpeza e ordem, estamos habilitados a ver um pouco mais claramente, mais objetivamente. E podemos ouvir uma voz interior subtil ansiosa por cumprir um propósito duradouro e significativo, para além dos ganhos subjetivos e transitórios.

Cinderela. Creative Commons

As duas irmãs de Cinderela talvez representem a ilusão da dualidade que nos pode cegar. Nós muitas vezes vemos as coisas como se fossem brancas ou pretas, separadas, de um extremo para o outro. Bom ou Mau. Vida ou Morte. Luz ou Escuridão. No entanto, a Vida não pode ser reduzida a estes simplistas ou-ou. E quando as nossas mentes lógicas criam listas elaboradas de prós e contras para extrair uma linha de ação, encontramo-nos muitas vezes presos, vencidos pela dúvida, porque outra voz interior se nos dirige de forma diferente.
Como as nossas mentes lógicas, as irmãs de Cinderela eram invejosas e calculistas; fizeram tudo o que puderam para a sabotar. Cada um de nós experiencia o ciúme, a inveja e as vozes do ego. Quando permitimos que estes vícios nos conduzam, agimos de uma forma que, no fundo, sabemos ser incorreta. Por vezes, estes impulsos são tão fortes, que tomamos más decisões, magoando outros e a nós mesmos no processo. No entanto, temos de lembrar-nos que podemos sempre escolher trazer luz e crescimento para ver as coisas de uma maneira mais elevada e altruísta, e agir por valores de justiça e bondade, para lá das relativas e limitadas noções de certo e errado.
Apesar das suas irmãs maldosas, Cinderela optou por se erguer acima das circunstâncias desafiantes para permanecer bondosa, amável e verdadeira – para ser virtuosa. Como vítimas das circunstâncias, e escravos do ego, nem sempre queremos reconhecer que somos sempre livres de escolher como agir – responder com compaixão, generosidade e amor – mesmo quando nos sentimos irritados, magoados e impacientes… mesmo quando estamos em baixo. Com cada escolha, purificamo-nos cada vez mais, e damos um pequeno passo para nos tornarmos melhores.
Cinderela também tinha de lidar com a sua madrasta que a pressionava constantemente, dando-lhe uma lista aparentemente interminável de tarefas duras, cada uma mais difícil do que a anterior. Talvez a madrasta simbolize a própria vida, que nos coloca obstáculos e desafios de várias formas e magnitudes que precisamos ultrapassar para sairmos vitoriosos, mais fortes, e felizes. Nesse sentido, misticamente falando, a madrasta poderia ser considerada como uma grande e compassiva Mestre, porque sem as suas dificuldades, Cinderela poderia nunca ter tido a oportunidade de cumprir o seu destino. Cabe-nos a nós decidir se enfrentamos esses desafios como vítimas, sentindo pena de nós mesmos, ou se perseveramos através deles, com espírito de Vitória, como a Cinderela.
A partir do momento que a Cinderella é informada da oportunidade de conhecer o Príncipe, ou seja, o seu destino, ela prosseguiu, independentemente do que lhe viesse a acontecer. Com a ajuda de uma fada-madrinha que aparece do nada, que talvez represente a nossa própria Vontade, em poucos minutos Cinderela está vestida com um belo vestido e sapatos de vidro, e os artigos quotidianos são transformados, como a abóbora que se transforma numa carruagem, para facilitar o seu encontro. Talvez cada ser humano esteja em última análise em busca de um Príncipe; alguns chamam-lhe felicidade, outros podem chamar-lhe procura do sentido ou propósito, outros podem chamá-lo de realização do potencial. Quando fazemos o esforço de nos elevarmos e purificarmos com o objetivo de realizar esta busca, a clareza e a estabilidade da nossa Vontade é talvez a nossa força mais importante.

Cinderela e o príncipe. Pixabay

O sapato de vidro cintilante, que a Cinderela deixa para trás, para mim simboliza um vislumbre místico momentâneo desse destino. A sua memória é a prova interior desse destino, que se torna o motor do esforço diário para a sua plena realização. Não temos senão que perseverar, e o próprio Príncipe acabará por vir à nossa procura. Como no caso da Cinderela, a dura e compassiva Mestre que chamamos Vida nunca vai parar de nos testar, dando-nos oportunidades para purificar, e ultrapassar a nossa condição atual… para darmos passos rumo a novas possibilidades.
Compreendi também que a Cinderella e o Príncipe são Um. O Príncipe simboliza o potencial da Cinderela; para unir-se ao seu destino existe uma bela viagem interior.
Tal como a Cinderela, será que também nós podemos lutar pelos nossos verdadeiros potenciais, para sermos os melhores seres humanos que realmente podemos ser, apesar de todos os desafios e circunstâncias que a vida nos oferece? Podemos esforçar-nos por agir a partir da bondade inerente que está dentro de todos nós, independentemente das circunstâncias, para nos tornarmos senhores da nossa própria felicidade? Podem as nossas virtudes derrotar os vícios do nosso eu mais material? Podemos decidir caminhar pela vida com espírito de vitória, em vez do de vítimas?

Akanksha Sanghi
Publicado em New Acropolis Library em 25 de Agosto de 2021

Imagem de destaque: Cinderela, Disneyland Park, Paris. Creative Commons