1ª parte – De Deus.
2ª parte – Da natureza e da origem da alma.
3ª parte – Da origem e da natureza das emoções.
4ª parte – Da escravidão humana ou da força das emoções.
5ª parte – Do poder do entendimento ou da liberdade humana.
Para deixar de ser um joguete das paixões e tornar-se uma pessoa livre, é preciso entender a sua natureza e a natureza de muitas outras coisas. Esta é a excelsa tarefa da Ética, mas como diz Espinosa na famosa última frase da sua obra: Tudo o que é excelso é tão difícil quanto raro.
A vida de Espinosa foi muito singela. A sua família tinha vindo de Portugal para a Holanda para escapar à Inquisição. O próprio Espinosa foi educado no ensino judaico, mas achou impossível manter-se ortodoxo. Ofereceram-lhe cem florins por ano para que mantivesse as suas dúvidas escondidas; quando os recusou, tentaram assassiná-lo. Apesar de tudo, viveu tranquilamente, primeiro em Amesterdão e depois em Haia, ganhando a vida a polir lentes. As suas necessidades eram poucas e singelas e, durante toda a sua vida, mostrou uma rara indiferença pelo dinheiro. O governo holandês, com o seu habitual liberalismo, tolerava as suas opiniões sobre questões teológicas, embora, a certa altura, tenha sido mal visto politicamente, por se ter aliado aos Witts contra a Casa de Orange. Na idade precoce dos 44 anos de idade, morreu de tuberculose.
A sua principal obra, a Ética, foi publicada após a sua morte.
Os seus outros dois livros, o Tractatus Theologico-Politicus é uma curiosa combinação de crítica bíblica e teoria política; e o Tractatus Politicus ocupa-se apenas da teoria política.
Chama-se Ética, porque o seu objetivo é acima de tudo, prático, passar da escravatura à liberdade. O título completo do nosso livro é Ética demonstrada segundo a ordem geométrica, de modo que parece ser uma espécie de geometria moral. De facto, no prefácio da terceira parte do livro, Espinosa diz: “Considerarei as ações humanas e os apetites como se fossem linhas, planos ou corpos”.
Porque é que Espinosa escolheu o modelo da geometria euclidiana para comunicar as suas ideias? Bem, há que entender que Espinosa nasceu no final do Renascimento, uma época de dois séculos que introduziu muitas mudanças e inovações no mundo europeu. Uma das mais importantes teve a ver com a descoberta do trabalho dos grandes matemáticos do mundo antigo, especialmente a geometria de Euclides, que influenciou a ciência, a arte e a filosofia.
A Ética de Espinosa trata de três assuntos diferentes. Começa com a metafísica; continua com a psicologia das paixões e da vontade; por último, formula uma ética baseada na metafísica e na psicologia, precedentes. A metafísica é uma modificação da de Descartes, a psicologia tem reminiscências de Hobbes, mas a ética é original e é a parte mais valiosa do livro.
Espinosa também adota a perspetiva racionalista, mas, poderia dizer-se, que o seu racionalismo é ainda mais sistemático e radical. Na Ética, Espinosa diz: “A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas”. Aqui temos uma resposta a uma das questões mais antigas da filosofia, a saber, a relação entre o ser e o pensar. Para Espinosa, eles são idênticos. Talvez o mundo seja assim. Possivelmente que o ser e o pensar não coincidam e que há limites para o que podemos explicar. No entanto, a explicação, o impulso para tornar a nossa experiência razoável, é a tarefa básica do filósofo. Espinosa leva essa tarefa muito a sério e, no seu pensamento, vemo-lo a levá-la até aos limites. A Ética em especial, em toda a história da filosofia, é o exemplo mais audaz deste compromisso com a inteligibilidade.
Diz-se que a relação de Espinosa com Descartes é, nalguns aspetos, semelhante à de Plotino com Platão. Descartes era um homem de muitas facetas, cheio de curiosidade intelectual, mas não era muito aprumado pela seriedade moral. Espinosa, embora não deixasse de ter interesse na ciência, e inclusive escreveu um tratado sobre o arco-íris, era especialmente atraído pelos problemas religiosos e morais.
Aceitou de Descartes e dos seus contemporâneos uma física materialista e determinista e tentou, dentro da sua estrutura, encontrar um lugar para a reverência e para uma vida consagrada ao Bem. A sua intenção foi grandiosa e suscita admiração mesmo naqueles que não o creem afortunado.
O sistema metafísico de Espinosa é do tipo inaugurado por Parménides. Existe apenas uma substância, “Deus ou Natureza”; nada finito subsiste por si mesmo. Para ele, o pensamento e a extensão eram atributos de Deus. As almas individuais e os pedaços separados de matéria são adjetivais; não são coisas, mas apenas aspetos do Ser divino. Não pode haver a imortalidade pessoal em que os cristãos acreditam, mas apenas aquela imortalidade impessoal que consiste em tornar-se cada vez mais uno com Deus. Só pode haver um Ser que seja totalmente positivo, e Ele deve ser absolutamente infinito. Desta forma, Espinosa é levado a um panteísmo completo e sem atenuações.

Busto de Parménides de Eleia, Creative Commons
Na segunda parte da Ética, passa a considerar estes dois atributos em termos da mente (pensamento) e do corpo (extensão), e a sua relação entre si. Espinosa não trata a mente e o corpo como duas substâncias, como faz Descartes, uma vez que a sua metafísica é monista. A mente e o corpo são antes duas manifestações do mesmo fenómeno. Isto dá passo a uma ideia muito estranha: o paralelismo psicofísico. Isto significa que não existe uma relação causal entre a mente e o corpo, mas que a ordem ou a sucessão das ideias na mente é paralela à sucessão das coisas no mundo, mas de forma completamente independente, sem que uma determine a outra. É bastante contraintuitivo, mas totalmente consistente com a argumentação.
Tudo, segundo Espinosa, é governado por uma necessidade lógica absoluta, ordem lógica e matemática do Universo, que exclui a finalidade ou a utilidade (para que servem o ser humano e a natureza). Não há livre-arbítrio na esfera mental nem azar no mundo físico. Tudo o que acontece é uma manifestação da natureza inescrutável de Deus, e por lógica, é impossível que os acontecimentos possam ser diferentes do que são. Tudo o que constitui o Mundo surge de um aspeto necessário de Deus.
Em Deus, o único que é por completo real, não há negação, e por conseguinte, o mal, naquilo que nos parece pecados, não existe quando estes são contemplados como partes do todo. Esta doutrina, embora de uma forma ou de outra tenha sido defendida por muitos místicos, obviamente não pode ser conciliada com a doutrina ortodoxa do pecado e da condenação. Ela está ligada à negação total do livre-arbítrio formulada por Espinosa. Embora nada polémico, Espinosa era demasiado honrado para ocultar os seus pontos de vista, por mais inaceitáveis que fossem para os seus contemporâneos; a aversão à sua doutrina não é, portanto, surpreendente.
A Ética está redigida ao estilo de Euclides, com definições, axiomas e teoremas. Tudo o que aparece por detrás dos axiomas é suposto ser demonstrado com rigor por raciocínio dedutivo. Isto torna a leitura difícil. Embora muitos digam do espanto que provocam as definições e os axiomas que enchem as primeiras páginas da Ética, a verdade é que, depois dos discursos sem fim nas redes sociais, este envolto conceitual de precisão geométrica deveria tomar-se como um oásis. Espinosa emprega a exposição geométrica, não por gosto, como um estilo entre outros viáveis, mas porque reflete a estrutura da realidade e porque o seu poder não é retórico, mas conclusivo. É o que melhor expressa e torna evidente a coincidência entre a ordem das ideias e a das coisas.
Um estudante moderno, que não pode supor que existam “provas” rigorosas das coisas que o filósofo declara afirmar, tende a impacientar-se com o detalhe das demonstrações, que na realidade, não vale a pena dominar. Basta ler os enunciados das proposições e estudar os escólios, que contêm muito do melhor da Ética.
Não obstante, seria falta de compreensão censurar Espinosa pelo seu método geométrico. Na essência do seu sistema, tanto ético como metafísico, estava o facto de defender que tudo podia ser demonstrado e que, por conseguinte, era essencial expor as demonstrações.
“Nós” não podemos aceitar o seu método, mas isso porque não podemos aceitar a sua metafísica. Não podemos crer que as inter-relações das partes do universo sejam lógicas, porque sustentamos que as leis científicas têm de ser descobertas pela observação e não apenas pelo raciocínio. Mas para Espinosa o método geométrico era necessário e estava ligado às partes mais essenciais da sua doutrina. É a ordem geométrica que rege a identidade Deus-Natureza e, portanto, tudo o que conhecemos como substância: Deus geometriza. A substância implica a sua implementação matemático-geométrica como algo que lhe é inerente.
Na terceira parte da Ética, Da origem e da natureza das emoções, ele passa do aspeto cognitivo do ser humano para o seu lado afetivo. Aqui encontramos a sua famosa noção de conatus, que se refere ao impulso básico de qualquer coisa para perseverar na sua existência. Nos seres humanos, isso manifesta-se em termos de desejo. Inverte a conceção tradicional do bem, que diz que desejamos algo porque é bom. Para Espinosa, uma coisa é boa porque a desejamos.
Estas ideias podem-nos fazer lembrar Nietzsche, e não é de estranhar. Muito antes de o alemão, se falara da vontade de poder, Espinosa discutia o conatus. E há uma carta maravilhosa de Nietzsche, onde ele fala da sua descoberta de Espinosa. Diz: “Estou espantado e encantado! Tenho um precursor, e de que tipo! Encontrei que não só a sua tendência geral é igual à minha – fazer do conhecimento a paixão mais poderosa – mas também que coincido com ele em cinco pontos essenciais da sua doutrina, nos quais esse pensador original e solitário se aproxima grandemente de mim, que são: nega o livre-arbítrio, a teleologia, a ordem moral universal, o não egoísta e o mal”.
Nietzsche, também ele um pensador bastante solitário, termina a carta dizendo que tinha encontrado um companheiro. Por certo, Hegel, com quem Nietzsche discutiu muito, também tinha um profundo respeito por Espinosa. Entre outros elogios, diz: “Espinosa é tão fundamental para a filosofia moderna que se pode dizer: quem não for espinosista não tem filosofia nenhuma.

Friedrich Hermann Hartmann (1822-1902). Domínio Público
Bem, chegamos então à teoria das emoções de Espinosa. Esta surge após uma discussão metafísica sobre a natureza e a origem do pensamento, que conduz à espantosa proposição de que “o entendimento humano tem um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus”. Mas as paixões, que são examinadas no terceiro livro da Ética, distraem-nos e obscurecem a nossa visão intelectual do todo.
“Tudo – dizem-nos – enquanto está em si mesmo, procura perseverar no seu próprio ser”. Daqui surgem o amor, o ódio e a luta. A psicologia do terceiro livro é inteiramente egoísta:
“Aquele que concebe que o objeto do seu ódio é destruído, sentirá prazer”.
“Se concebemos que alguém se deleita com algo que só uma pessoa pode possuir, trataremos de fazer o possível para que o indivíduo em questão não o possua”.
Mas mesmo neste livro há momentos em que Espinosa abandona a aparência de cinismo, demonstrado de forma matemática, como quando diz: “O ódio aumenta ao ser correspondido e pode, por outro lado, ser destruído pelo amor”.
A autoconservação é o motivo fundamental das paixões, segundo Espinosa, mas isso altera o seu carácter quando nos damos conta que o que é real e positivo em nós, é o que nos une ao todo, e não o que conserva a aparência de separação.
Os dois últimos livros da Ética, intitulados, respetivamente, quarta parte, “Da escravidão humana ou da força das emoções” e a quinta parte, “Do poder do entendimento ou da liberdade humana”, são os mais interessantes.
A quarta parte da obra explica a condição de escravidão em termos da distinção entre paixões ativas, associadas à alegria, e as passivas, associadas à tristeza.
Somos escravos na medida em que o que nos acontece é determinado por causas externas, e somos livres na medida em que nos determinamos a nós próprios.
Espinosa, tal como Sócrates e Platão, acredita que toda a ação ilícita é devida ao erro intelectual: o indivíduo que compreende as suas próprias circunstâncias agirá com prudência, e será mesmo feliz, face ao que para outro representaria a desgraça. Ele não faz algum apelo ao desinteresse; sustém que o interesse próprio, em algum sentido, e mais particularmente a própria conservação, governam toda a conduta humana.
“Nenhuma virtude pode ser concebida como prévia a esta tentativa de conservar o próprio ser. Mas a sua conceção de que um indivíduo prudente escolheria como meta do seu interesse é diferente da do egoísta comum: “O bem mais elevado da mente é o conhecimento de Deus, e a virtude mais elevada da mente é conhecer Deus”.
As emoções são chamadas “paixões” quando brotam de ideias inadequadas; as paixões de diferentes indivíduos podem pugnar, mas os indivíduos que vivem em obediência à razão, encontrarão um acordo. O prazer é em si mesmo bom, mas a esperança e o temor são maus, tal como a humildade e o arrependimento: “Aquele que se arrepende de uma ação é duas vezes perverso ou doente”. Espinosa considera o tempo como irreal e, por conseguinte, todas as emoções que têm a ver com um acontecimento futuro ou passado são contrárias à razão. “Enquanto a mente concebe uma coisa sob o ditado da razão, é igualmente afetada, quer a ideia seja de uma coisa presente, passada ou futura”.
Esta é uma frase difícil, mas pertence à essência do sistema de Espinosa. Segundo Espinosa, qualquer coisa que aconteça, faz parte do mundo eterno intemporal tal como Deus o vê; para Ele, a data não tem importância. O indivíduo prudente, enquanto o permitir a limitação humana, esforça-se por ver o mundo como Deus o vê, sub specie aeternitatis, sob o aspeto da eternidade. O determinismo de Espinosa assinala-nos que só a ignorância nos faz pensar que podemos mudar o futuro; o que tiver de ser, será, e o futuro está fixado de forma tão inalterável como o passado. É por isso que a esperança e o temor são condenados: ambos dependem de contemplar o futuro como algo incerto e, por isso, brotam da falta de sabedoria.
Quando adquirimos, na medida do possível, uma visão do mundo análoga à de Deus, vemos tudo como parte do conjunto e igual, necessário para a bondade do todo. Por conseguinte, “o conhecimento do mal é um conhecimento inadequado”.
Deus não tem nenhum conhecimento do mal, porque não há algum mal para ser conhecido; a aparência do mal surge apenas da consideração das partes do universo como sobrevivendo por si mesmas.
A visão de Espinosa propõe libertar as pessoas da tirania do temor. “Um ser humano livre pensa menos na morte; e a sua sabedoria é uma meditação, não sobre a morte, mas sobre a vida”. Espinosa viveu inteiramente de acordo com este preceito. No último dia da sua vida, estava completamente tranquilo, conversando, como em qualquer outro dia, sobre assuntos de interesse para o seu interlocutor.
A diferença de outros filósofos, não só acreditava nas suas próprias doutrinas, como as praticava. Na controvérsia, era cortês e razoável, sem nunca molestar, mas fazendo todo o possível para persuadir.
Na medida em que o que nos acontece brota de nós, é bom; só o que vem de fora é mau para nós. “Como todas as coisas das quais um indivíduo é a causa eficiente são boas por necessidade, nenhum mal pode sobrevir a um indivíduo, exceto por causas externas. É óbvio, portanto, que nada de mau pode acontecer ao universo como um todo, uma vez que não está sujeito a causas externas. “Somos uma parte da natureza universal e seguimos a sua ordem. Se tivermos um entendimento claro e distinto disto, a parte da nossa natureza que é definida pela inteligência – por outras palavras, a parte melhor de nós próprios – irá assentar com segurança com o que quer que nos aconteça, e nessa aquiescência devemos tentar persistir.
Na medida em que um indivíduo é uma parte relutante de um todo maior, ele está em servidão; mas na medida em que, por meio do entendimento, captou a única realidade do todo, é livre. As consequências da sua doutrina desenvolvem-se no último livro da Ética.
Espinosa não faz reparos a todas as emoções, como os estoicos, apenas faz reparos àquelas que são “paixões”, ou seja, aquelas em que aparecemos ante de nós próprios, no poder de forças exteriores: “Uma emoção que é uma paixão, deixa de ser uma paixão de pronto, assim que formamos uma ideia clara e distinta dela”. O entendimento de que todas as coisas são necessárias ajuda a mente a adquirir poder sobre as emoções.
“Aquele que com claridade se entende a si mesmo e às suas emoções, ama a Deus, e tanto mais, quanto mais se compreende a si mesmo e às suas emoções”. Esta proposição introduz-nos no “amor intelectual de Deus”, em que consiste a sabedoria. O amor intelectual de Deus é uma união de pensamento e emoção: consiste no pensamento verdadeiro, combinado com o gozo da apreensão da verdade. Todo o gozo do pensamento verdadeiro faz parte do amor intelectual de Deus, pois não contém nada negativo, e é, portanto, em verdade, parte do todo, não apenas na aparência, como são as coisas fragmentárias, tão separadas no pensamento que até parecem más.
Todo o incremento da compreensão do que nos acontece, consiste em referir os acontecimentos para a ideia de Deus, pois, na verdade, tudo faz parte de Deus. Esta compreensão de todas as coisas como parte de Deus é o amor de Deus. Quando todos os objetos são referidos a Deus, a ideia de Deus ocupará completamente o entendimento.
Assim, a afirmação de que o “amor de Deus deve estar acima de tudo na mente” não é, em princípio, uma exortação moral, mas uma exposição do que deve inevitavelmente ocorrer à medida que adquirimos compreensão.
Segundo Espinosa, há uma vantagem maior no amor de Deus comparado com o amor dos seres humanos: “A falta de saúde espiritual e as desventuras podem geralmente ser atribuídas ao amor excessivo de algo que está sujeito a muitas variações”. Mas o conhecimento claro e distinto “suscita um amor por uma coisa imutável e eterna”, e esse amor não tem o carácter turbulento e intranquilizador do amor por um objeto, que é passageiro e mutável.

Parte I da Ética de Spinoza. Domínio Público
Embora a sobrevivência pessoal após a morte seja uma ilusão, existe, no entanto, na mente humana algo que é eterno. A mente só pode imaginar ou lembrar enquanto o corpo existir, mas há em Deus uma ideia que expressa a essência desse ou daquele corpo humano na forma de eternidade, e esta ideia é a parte eterna da mente. O amor intelectual de Deus, quando experimentado por um indivíduo, está contido nessa parte eterna da mente.
Chegamos à quinta e última parte do livro, Do poder do entendimento ou a liberdade humana, que versa sobre o poder da razão e como ela alcança a liberdade.
A Ética termina com estas palavras: “A pessoa sábia, na medida em que é considerada como tal, apenas sofre uma perturbação de espírito, pois sendo consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, por uma certa necessidade eterna, nunca deixa de o ser, mas possui sempre a verdadeira aquiescência do seu espírito. Se o caminho que indiquei como conducente a esse resultado parece excessivamente difícil, pode, no entanto, ser descoberto. Tem de ser difícil, posto que raras vezes o encontra. Como seria possível que, se a salvação estivesse ao alcance imediato da nossa mão e pudesse ser encontrada sem grande esforço, fosse negligenciada por quase todos os indivíduos? “Tudo o que é excelso é tão difícil quanto raro”.
A grande maioria das pessoas adquire conhecimento sobre o mundo de forma aleatória, utilizando os sentidos, a imaginação e a experiência quotidiana. Graças a isso, têm ideias confusas que produzem paixões tristes e escravizantes. Mas há uma segunda via ou classe de conhecimento, a que se adquire com a razão. Nesta fase do livro, talvez já nos tenhamos habituado a ela e já tenhamos chegado de muito longe na reforma do nosso entendimento. Mas há uma terceira e celebremente enigmática via, que requer igualmente a razão, mas que descansa, no fim de contas, sobre a intuição. Com ela, alcançamos uma condição muito distante da escravatura, a saber, a beatitude.
Chegando ao final do livro, parecerá que escalámos o Monte Evereste. Intelectualmente, embora não seja fácil, valerá muito a pena. Repetimos o que Espinosa já nos disse: “Tudo o que é excelso é tão difícil quanto raro”.
ADDENDA
Para formar uma apreciação crítica da importância de Espinosa como filósofo, é necessário distinguir a sua ética da sua metafísica e considerar que parte da primeira pode sobreviver ao repúdio da segunda.
A metafísica de Espinosa é o melhor exemplo do que pode chamar-se de “monismo lógico”, isto é, a doutrina de que o mundo como um conjunto é uma só substância, nenhuma das partes é capaz de existir sozinha.
O conjunto da sua metafísica é impossível de aceitar; é incompatível com a lógica moderna e o método científico. Os “factos” têm de ser descobertos pela observação, não pelo raciocínio; quando induzimos com êxito o futuro, fazemo-lo por meio de princípios que não são por lógica necessários, mas que foram sugeridos por dados empíricos. E o conceito de substância, no qual Espinosa se baseia, é um conceito que nem a ciência nem a filosofia podem aceitar atualmente.
Mas quando chegamos à Ética de Espinosa sentimos que algo, embora não tudo, pode ser aceite, mesmo quando o fundamento metafísico foi rejeitado. Falando em termos gerais, Espinosa preocupou-se em mostrar-nos como é possível viver com nobreza, mesmo quando reconhecemos os limites do poder humano.
Ele próprio, com a sua doutrina da necessidade, onde a necessidade exclui a finalidade, torna estes limites mais estreitos do que são; mas quando eles existem indubitavelmente, as máximas de Espinosa são, talvez, as melhores possíveis. Tomemos, por exemplo, a morte: nada do que um indivíduo possa fazer, o tornará imortal, e é, portanto, inútil perder tempo com lamentações e temores a respeito do facto de termos de morrer.
O problema para Espinosa é mais fácil do que para quem não tem nenhuma fé na bondade última do universo. Espinosa crê que, se cada um vir as suas próprias desventuras, como são em realidade, como parte da concatenação de causas que se estendem desde o princípio dos tempos até ao final, verá que são apenas desventuras pessoais, não do universo, em relação ao qual são meras discórdias momentâneas que apenas servem para realçar a harmonia final.
Tudo segue uma ordem matemática que procede de Deus. Só as matemáticas buscam as verdadeiras essências das coisas, sem se deter na sua utilidade ou finalidade. A doutrina da finalidade, para além de ser absurda a nível humano (veja-se a distribuição díspar dos bens e dos males…), eliminaria a ideia da perfeição de Deus, porque se Deus perseguisse alguma finalidade, quereria dizer que lhe falta algo. Esta seria apenas uma conceção fantasiosa que tenta explicar o mundo, segundo a maneira como as coisas nos afetam, e não segundo a essência real das coisas.
Entre a fé e a teologia, e a filosofia, não há relações nem afinidade alguma: o objeto da Filosofia é a Verdade, e o da fé é a obediência, para além do verdadeiro ou do falso.
A religião não é um estado natural: nenhum homem pode conhecer por natureza que está obrigado a obedecer a Deus, nem a razão ensina isso. Isto faz que a fé deva permitir a cada um a máxima liberdade para filosofar.
A obra de Espinosa, que parte da lei da necessidade e de Deus como de uma geometria viva e infalível, tem como objetivo garantir a liberdade do indivíduo: liberdade política, liberdade religiosa e liberdade moral das suas próprias paixões.
Não obstante, quando o nosso destino é ter de suportar algo que é, ou nos parece, pior do que a sorte comum da humanidade, o princípio de Espinosa de pensar no conjunto, ou em todo o caso, em assuntos de mais amplitude do que o nosso próprio pesar, é útil. Há mesmo vezes em que é reconfortante pensar que a vida humana, com tudo o que contém de mal e de sofrimento, é uma parte infinitesimal da vida do universo. Estas reflexões podem não ser suficientes para constituir uma religião, mas num mundo cheio de dor, são uma ajuda para o bom senso e um antídoto contra a paralisia do desespero extremo.
Teresa Álvarez Santana
Bibliografia:
- Material de la Cátedra “Historia de la Filosofía Moderna” del Programa de Estudios de la Organización Internacional Nueva Acrópolis.
- Clases sobre Spinoza del Programa “La Fonda Filosófica” del Profesor Darín McNabb.
- La Ética. Spinoza. Traductor Vidal Peña García. Alianza Editorial.
- Historia de la Filosofía. Bertrand Russell RBA Coleccionable: Grandes obras de la cultura. Barcelona 2005.