Durante o séc. XII, fundamentalmente na sua primeira metade, a Escola de Chartres foi um dos centros intelectuais mais importantes da Europa Ocidental, tornando-se um foco de conhecimento através de novas perspectivas, muitas vezes denominadas “naturalistas”, inspiradas na filosofia clássica.
O seu fundador foi o bispo Fulberto (960-1028) e que dirigio esta Escola durante as primeiras décadas do séc. XI. Pouco se sabe de Fulberto, mas terá sido discípulo de Gerberto de Aurillac, considerado um dos maiores sábios do séc. X. As suas ideias, sustentadas no pensamento platónico, serão uma marca importante, seguida posteriormente por Bernardo de Chartres, Teodorico, Bernardo Silvestre e Guillermo de Conches.
Os pensadores da Escola de Chartres caracterizaram-se pela conciliação entre a fé das concepções cristãs com a compreensão racional do mundo inspirando-se em textos neoplatónicos como os de Agostinho de Hipona (St. Agostinho), Boecio, Casiodoro, Isidoro de Sevilha, Gerberto de Aurtillac, entre outros, tendo, no entanto, a influência maior sobre a Escola de Chartres sido o pensamento de Calcidius e Macrobius, através dos quais chegaram as concepções pitagóricas e platónicas nos seus escritos que foram determinantes para a formulação das ideias Chartrianas. A Escola de Chratres vai unir o pensamento físico e metafísico platónico, essencialmente tendo como referência o Timeu, juntamente com elementos da matemática pitagórica.
Na grande admiração que nutriam pelos antigos sábios, Bernardo escrevia que “assemelhamo-nos a anões encavalitados nos ombros de gigantes: vemos, por isso, mais coisas do que eles viram e vemos mais longe do que eles. Qual a razão? Não se deve nem à acuidade do nosso olhar nem à superioridade do nosso porte: reside em que somos segurados e erguidos pela alta estatura dos gigantes.”
Por volta do ano 1141, Thierry de Chartres, chanceler da Escola de Chartres, escreve a obra Heptateuchon que ficará conhecida como a “bíblia das artes liberais”, onde exprime a sua concepção do saber assim como o importante papel das artes liberais para o conhecimento. O próprio nome da obra faz referência ao número sete, número que corresponde às artes liberais que se dividem no Trivium (Gramática, Dialéctica e Retórica) e Quadrivium (Astronomia, Música, Geometria e Aritemética) em relação com os sete primeiros livros das Escrituras (Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuterónimo, Jossué e Juízes). As artes liberais formariam os instrumentos fundamentais à filosofia: Através das componentes do quadrivium se obteria a reflexão, a compreensão, a iluminação da mente e do trivium se encontravam as artes que permitiam a correcta manifestação do pensamento.
A Gramática terá para esta Escola uma grande importância, pois trata-se de um importante veículo para se filosofar. Já Séneca queixava-se da pobreza de vocabulário do seu tempo em relação ao gregos que possuíam uma quantidade de vocabulário muito maior para designar as coisas e ideias, o que lhes permitia uma maior qualidade e precisão da exposição de ideias, valores, qualidades, etc.
O estudo e compreensão da Natureza, denominada “universo das coisas” (rerum universitas), englobava todo o universo criado, desde o mundo angelical ao mundo físico, e comportava todos os argumentos que fundamentavam a filosofia chartriana, tendo nas disciplinas das artes liberais o estudo e exercício mental para a fundamentação argumentativa. Tal ideia já era sustentada pelo neoplatonismo agostiniano, e mais tarde promovida por Boécio, em que quatro eram as vias da sabedoria e de estudo do universo: Astronomia, Música, Geometria e Aritemética.
A Escola de Chartres uniu o pensamento simbólico ao pensamento científico procurando as marcas de Deus. O simbolismo que busca as semelhanças que proporcionam as estruturas mentais e as matemáticas que levam a razão a poder aceder ao inteligível e contemplar a verdade divina reflectida nesse mundo visível. Não existe um antagonismo entre a procura racional e a fé cristã, antes pelo contrário, é através do estudo intelectual da natureza que o homem poderá chegar até Deus. Esta ideia denota também a influência do pensamento filosófico e cientifico islâmico, distinto do pensamento cristão na época, que fez as ciências prosperarem enormemente no mundo islâmico neste período e que trará também fortes contributos à Escola de Chartres.
Adelardo, nas “Quaestiones naturales”, expõe o sentido desta busca do conhecimento no mundo natural de forma clara:
Aquilo que é preciso deter e conhecer, é a razão das coisas. (…) Esta forma de agir não afecta, de modo algum, o poder de Deus; porque Deus tudo fez, mas não fez nada sem razão e é no sentido de conhecer essa razão que se deve orientar a ciência humana.
Entre 1187 e 1191 foi oferecida ao papa Clemente III a obra Ars Fidei Catholicae, que não se sabe se da autoria de Alain de Lille ou Nicolau de Amiens, que aborda precisamente o propósito de explicar o mundo de forma racional, através de relações numéricas, cuja pretenção era não só revelar as leis da natureza mas inclusive a própria essência divina.
Uma obra de grande influência foi De Nuptiis Mercurii et Philologiae, de Martianus Capella (séc. V), onde representa as artes liberais como sete virgens que fazem oferta dos seus presentes (os seus conhecimentos) no casamento entre a Filologia e Mercúrio. Trata-se de um dos compêndios mais famosos da Idade Média e as suas figurações vão aparecer em muitas obras medievais.
Existem duas outras obras que vão ser bastante importantes na Escola de Chartres: o Timeu de Platão, traduzido e comentado por Calcidius no séc. IV, e o comentário in Somnium Scipionis de Cícero, por Macrobius, provavelmente do início do séc. V.
Calcidius, com base em antíguos conhecimentos, estabelece uma relação entre as sete artes liberais e os planetas.
Trivium:
Gramática (Lua)- Linguagem
Dialéctica (Mercúrio) – Lógica
Retórica (Vénus) – Arte de falar
Quadrivium:
Aritmética (Sol) – Número
Música (Marte) – Harmonia
Geometria (Júpiter) – Espaço
Astronomia (Saturno) – Movimento
Esta relação será imortalizada por Dante, na Divina Comédia, ao estabelecer uma analogia entre as esferas celestes da cosmologia medieval, que envolviam a Terra, e as ciências. Estas começam na Lua (Gramática), Mercúrio (Dialéctica), Vénus (Retórica), Júpiter (Geometria), Marte (Música), Saturno (Astronomia) e o Sol (Aritmética). A oitava esfera, a do firmamento encontrava-se associada à Física e à Metafísica.
O facto de que as distâncias entre os planetas, tal como os seus movimentos estejam ordenados matematicamente, levará a que o estudo do universo seja tarefa não só da astronomia, mas também da geometria, que estuda as leis imutáveis do espaço dispostas harmonicamente por Deus segundo as proporções aritméticas e os padrões da harmonia musical.
Na primeira parte do seu comentário ao Sonho de Cipião, Macrobius escreve sobre a ascensão e descenso das almas:
Relativamente à descida em si mesma, na qual a alma cai do céu até às regiões inferiores desta vida, é aqui que a ordem se desenvolve.
O círculo da Via Láctea abraça o Zodíaco rodeando-o com o giro de uma órbita obliqua de tal modo que o cruza onde o Zodíaco porta os signos tropicais, Capricórnio e Câncer. Os físicos chamaram-lhes as “portas do Sol” porque, num e noutro signo, o solstício impede o Sol, impede-o de prosseguir a sua marcha e o faz regressar ao trajecto de uma zona cujos limites jamais abandona. É crença que por estas portas passam as almas do céu à terra e regressam da terra ao céu. Também recebem o nome, uma de “porta dos homens”, a outra “porta dos deuses”: Câncer, a “porta dos homens”, porque por aqui realiza-se a descida às regiões inferiores; Capricórnio, a “porta dos deuses”, porque por alí regressam as almas à mansão da sua imortalidade e ao número dos deuses.
Mais à frente Macróbius refere que as almas após passarem a “porta dos homens” na sua descida atravessam as sete esferas planetárias. É neste trajecto que as almas adquirem todas as faculdades que lhe serão necessárias na sua vida terrena: Na esfera de Saturno, a alma obtém o entendimento e a racionalidade; na esfera de Júpiter, o poder de actuar; na de Marte, o valor e a ousadia; na do Sol, a sensibilidade e a imaginação; na esfera de Vénus, o desejo; na esfera de Mercúrio, a habilidade para expressar e interpretar os pensamentos; e na esfera da Lua, a função de reprodução e incrementar os corpos materiais.
Há uma influência importante na Escola de Chartres, a de Gerbert d’Aurillac (930-1003), futuro Papa Silvestre II. Praticamente por toda a Europa, à medida que Gerbert aprofunda as artes do quadrivium vai ensinando música, astronomia e geometria, considerando que esta última não é uma ciência apenas para a resolução de problemas práticos, mas que constitui uma forma sapiencial de pensar e conhecer o Universo. Conhecido como o “papa matemático”, foi profundamente influenciado pelas ciências árabes. Entre as figuras eminentes que eram seus alunos, encontrava-se o futuro fundador da Escola de Chartres, Fulberto.
Inspirados pela concepção platónica da anima mundi (a alma, ou anima do mundo), os filósofos da Escola de Chartres referem que é através dela que Deus governa o mundo. Teodorico, tal como Abelardo, identificam a anima mundi com o Espírito Santo.
A natureza será identificada como a força universal (vigor universalis), a força motriz, ordenadora e vivificadora do mundo. Ela surge personificada e exaltada como a filha de Deus, a genitrix de todas as coisas, a ordem, o esplendor e a harmonia do mundo.
Teodorico distingue quatro causas que se projectam sobre as quatro fases do processo de auto-realização de Deus no mundo: a causa eficiente, que é Deus Pai; a causa formal que é a Sapiência ou o Filho de Deus, que organiza a matéria; a causa final que é o Espírito Santo que anima e vivifica a matéria já formada e organizada; e finalmente a causa material que são os quatro elementos que o próprio Deus criou do nada no princípio.
O último dos grandes mestres de Chartres do séc. XII, João de Salisbury, escreveu a propósito da natureza desta alma do mundo e os 4 elementos nela contidos:
O espírito criado (a anima mundi), isto é, o universal e natural movimento, toma uma forma que é em si mesma invisível numa matéria de si invisível, de uma tal maneira que o que é composto delas é transformado num género de substância actual e visível. O espírito é um movimento natural e universal, que contém os quatro elementos como se fossem ligados à matéria (hyle), e espalhados nor firmamento pelas estrelas, no mundo sublunar pelo fogo, ar, água e terra, e em todas as outras coisas que naturalmente movem-se no mundo. A este movimento Mercúrio (Hermes) chama natureza, Platão chama de anima mundi, outros chamam destino e os teólogos chamam de providência divina.
A concepção platónica do mundo das ideias ou arquétipos e da sua sombra projectada no mundo das imagens, vai estar presente também na filosofia chartriana, amplamente tratada por Bernardo, como o testemunha João de Salisbúria na obra Metalogicus:
As ideias, enquanto subsistentes na mente divina, estão privadas de matéria e não são sujeitas ao movimento; na matéria estão apenas as imagens dessas formas ideiais, impressas por Deus, as imagens a que Bernardo chama formas inatas e que têm o destino das coisas singulares.
Teodorico, inspirado nos conceitos matemáticos pitagóricos e platónicos faz uma explanação no seu “Tratado” da emanação criadora dos números, que como ele o diz inspirado numa admirável fórmula pitagórica: “criar os números é criar as coisas”. Torna-se pois incontornável citar alguns excertos do seu pensamento:
A unidade, suma divindade, supera tudo pela excelência da Sua natureza, pois o número precede o peso, a medida, o lugar, a figura, o tempo e o movimento, e tudo o que existe, existe segundo a quantidade, qualidade ou relação, já que tudo procede do número. Por isso, a unidade, que precede toda a alteridade, é eterna, “permanência interminável”, fonte e origem de todas as coisas.
(…)
Como o número é infinito e a unidade o origina, é necessário que a unidade não tenha limites na sua potência. A unidade é omnipotente na criação dos números, e como a criação dos números é a criação das coisas, a unidade é omnipotente na criação das coisas. Portanto, como a unidade é omnipotente, ela é a divindade necessariamente.
(…) pois eles (números) geram outros a partir de si mesmos e da sua própria substância, como o “dois” que, multiplicado por si mesmo gera o “quatro”, o “três” o “nove”, etc. Mas se multiplicarmos por números diferentes, geram outros, como o “dois” multiplicado por “três” gera o “seis”, etc.
A primeira geração proporciona tetrágonos ou cubos, círculos ou esferas, que garantem a igualdade das suas dimensões. Mas a segunda geração faz figuras com um lado mais longo ou oblongo, ou figuras caracterizadas pela desigualdade dos seus lados.
Bernardo de Chartre expõe que a firmerza e solidez do universo tem origem nos números 1, 2, 3, 4, que são os constituintes da anima mundi, e que estes são os mesmos da harmonia musical. Ideia esta fundamentada na filosofia pitagórica e na tetraxis, cuja unidade (10=1+0) é obtido pela soma dos quatro números, e onde se encontra contido o cubo da natureza (configurado pela expressão do 7) e o logos (configurado no triângulo).
Concebia-se que a harmonia do mundo era fundamentada na Harmonia (do grego αρμονία) e que significa o princípio da perfeição, das harmonias musicais e que os próprios planetas estavam ordenados matematicamente segundo as tonalidades da escala musical, e tal como dizia Pitágoras na sua teoria das esferas celestes, ao movimentarem-se produziam harmonias belíssimas mas que não podiam ser captadas pelos ouvidos dos mortais. Bernardo ao referir que o estudo da ordem do universo deve ser feito pela música e pelos cálculos aritméticos cita Platão que ensinara que a estrutura, ou a “sinfonia” do mundo partia dessa harmonia.
Adelard de Bath, que se presume tenha sido discípulo de Thierry de Chartres, na obra De eodem et diverso, aludindo a Pitágoras, refere a atracção que a música exerce sobre os homens e animais pelo facto de que a harmonia da alma do mundo está presente em todos os seres do universo, pois tal como dizia Pitágoras, a alma do mundo foi unificada destas consonâncias, pois ela está em harmonia consigo mesma e alegre de colocar essa mesma harmonia nos corpos.
A importância da música nos mosteiros irá estar presente ao longo de toda a Idade Média, por exemplo na ordem de Cluny encontrava-se no centro da vida dos monges, onde o cântico e a música eram uma comunhão com a ordem do universo e a harmonia o mais sublime louvor da criação ao Criador. Um curioso manuscrito, de um monge anónimo, intitulado De VII planetis et VII musis, propõe o ensino dos astros através da leitura de uma prosa que deve ser ao mesmo tempo cantada, fazendo corresponder para cada um dos sete tons da escala musical um dos sete planetas.
Para Thierry de Chartres, a sabedoria é o fim último da filosofia, e esta tem como instrumentos da sua análise as ciências que estudam a verdade das coisas na imutabilidade dos números. Para a Escola de Chartres, scientia, sapientia e philosophia, são de alguma forma sinónimos.
A Escola de Chartres vai ter uma postura não só busca do entendimento na natureza, no sentido global que o termo encerra, mas na aplicação prática de tais conhecimentos, dos quais se destaca a arquitectura, onde todos os seus conhecimentos e entendimento do universo, nas suas dimensões metafísica e física, vão estar presentes. Exemplo disso é o plano inicial da própria Catedral de Chartres que será concebida como uma Imago Mundi, imagem perfeita da Criação” e que se pensa ser da autoria do próprio Fulberto, fundador da Escola. Aí vamos encontrar toda a perfeição geométrica assim como a sua relação musical em escalas harmónicas na pedra que fazem ressoar vibrações perfeitas, igualmente aí se encontram plasmados os conhecimentos astronómicos e astrológicos nas orientações e o acompanhamento dos fabulosos vitrais alquímicos cujas cores vão transportando a dimensões sublimes no percurso da nave ou no do transepto. Também no Portal Real da Catedral de Chartres vamos encontrar a representação das 7 artes liberais com esculturas de alguns daqueles mestres clássicos que foram inspiração destas artes para a Escola de Chartres: Aristóteles, Cícero, Pitágoras, Euclides, Ptolomeu, Donato e Prisciano.
Podemos concluir sintetizando que Escola de Chartres foi pois o resultado da inspiração no pensamento clássico, fundamentalmente platónico e pitagórico, com uma visão “naturalista” na qual o pensamento teológico volta-se mais para a compreensão da natureza, afastando-se do modo religioso medieval. O ideal chartriano caracterizar-se-á pelo esforço na compreensão da estrutura matemática do universo, estabelecendo uma relação entre a teologia e o quadrivium. O seu entendimento cosmológico é o caminho para o entendimento da Criação e a comprovação do seu Criador cuja imutabilidade se reflecte na exactidão dos números e da ciência matemática.