Publius Vergilius Maro, (70 – 19 a.C.), é o autor da Eneida, poema que narra a fundação de Roma na região do Lácio por Enéias, herói troiano que escapara do desastre da queda da cidade de Tróia, assim ligada hereditariamente ao surgimento do povo italiano. Roma absorveu muito da cultura grega e isso é evidente na influência que a Ilíada e a Odisseia de Homero na composição dos doze livros que compõem a Eneida.
Vergílio, que pertenceu ao grupo dos “poetas alexandrinos” que buscavam o conhecimento nos poetas gregos do século 3 a.C., é considerado o maior poeta latino. Dante Alighieri, na Divina Comédia, atribui-lhe a missão de ser seu guia no Inferno e no Purgatório.
Dos “poetas alexandrinos” que influenciaram mais os romanos destaca-se Calímaco (300 – 240 a.C.), designado por Ptolomeu II bibliotecário durante 20 anos da Biblioteca egípcia de Alexandria e a quem é atribuída a publicação de mais de 800 livros; Apolónio de Rodes (295 – 215 a.C.) sucessor de Calímaco na direcção da Biblioteca de Alexandria e autor da “Argonautica” onde se relata a aventura de Jasão na procura do velo de ouro; Teócrito (310 – 250 a.C.) de quem foi seguidor Vergílio no estilo poético pastoral nas Eclogas e muitos outros como Aristárco de Samotrácia (215 – 131 a.C.), autor do primeiro sistema heliocêntrico, discípulo de Aristófanes de Bizâncio (257 – 187 a.C.) que lhe sucedeu também na direcção da Biblioteca de Alexandria, autor de cerca de 800 papiros e de uma edição dos Hinos Homéricos.
A Biblioteca de Alexandria fundada em 332 a.C. por Alexandre o Grande, era o centro do desenvolvimento da ciência astronómica e matemática, para não citar amplas referências à ciência geográfica e médica e às Artes, onde pontificavam nomes como Arquimedes e Euclides fundador da Escola de Matemática na dependência da Biblioteca de Alexandria, herdeira das tradições dos Mistérios Herméticos e dos profundos conhecimentos de geometria egípcia. Não esqueçamos Eratóstenes que chegou a medir o perímetro da Terra, com uma margem de erro incrivelmente pequena.
Por último entre os génios matemáticos da Antiguidade e encerrando a existência da Biblioteca encontramos Hipátia (370 – 415 d.C.), brutalmente assassinada por um grupo de fanáticos religiosos a mando de Cirilo, arcebispo cristão de Alexandria. Possuidora de uma esmerada educação conferida pelo seu pai Teon, e que incluía arte, ciência, literatura, filosofia, oratória, retórica e uma formação profundamente politeísta que colidia com os interesses do cristianismo. Hipátia tem sido desde sempre comparada a Ptolomeu, Euclides, Apolónio, Diofanto ou Hiparco. Porém, os seus tratados, entre os quais apenas sobreviveram um sobre as cónicas de Apolónio e outro sobre a geometria euclidiana, foram destruídos com a Biblioteca, ou quando o templo de Serápis foi saqueado.
Afirma Carl Sagan[1] “Existem lacunas na História da Humanidade que nunca poderemos vir a preencher. Sabemos, por exemplo, que um sacerdote caldeu chamado Berossus terá escrito uma História do Mundo em três volumes, na qual descrevia os acontecimentos desde a Criação até ao Dilúvio (período que ele calculava ser de 432 mil anos, cerca de cem vezes mais do que a cronologia do Antigo Testamento!). Que segredos poderíamos nós desvendar se pudéssemos ler aqueles rolos de papiro? Que mistérios sobre o passado da humanidade encerrariam os volumes desta biblioteca?”
Vergílio, conhecedor das tradições mistéricas da Escola de Alexandria, herdadas dos ancestrais sistemas filosóficos babilónicos zoroastrianos e hinduístas dos escritos Upanishads, faria reflectir na Eneida no Canto VI, quando ao fazer o herói troiano Enéias percorrer o Tártaro e o Elísio na busca do pai Anquises, nos dá conta de forma exploratória e concisa “dos reinos sem consistência”[2], seguindo os preceitos da Sibila, uma viagem aos reinos onde o tempo não é senhor, permitindo o vislumbre do futuro que o espera e ao mesmo tempo um relato pormenorizado e por vezes horrendo das situações que envolvem as almas que os povoam, tal como Dante Alighieri o faz na Divina Comédia também pela mão avisada e conhecedora de Vergílio na visita ás dimensões imateriais do Purgatório e do Inferno.
Tal como na mitologia egípcia existe um barqueiro – Anúbis, o Caronte na Eneida, que transporta as almas, “leves seres incorpóreos, que volitam sob a oca aparência de corpos”[3], na transposição do rio das lamentações, o Aqueronte que “fervilha e vomita toda a sua vaza no Cocyto”. O rio tomado aqui como ideia de fluxo continuamente evolutivo e transitório na sua constituição, propagativo de fenómenos locais, tal como um sistema ondulatório de probabilidades. Ali, no rio, os espaços (as margens) ditam às massas (águas) como se comportarem e as massas (águas) ditam aos espaços (margens) como se apresentarem. O mesmo acontece no Espaço e no Tempo einsteiniano onde ambos têm uma natureza relativa e não absoluta newtonianas. O barqueiro, como um deus, é o viajante no Tempo que tudo regula nas diferentes dimensões ao estabelecer leis que regulam o comportamento de quem transitoriamente se apresenta para transpor as ondulações das águas que possuem cor, de forma semelhante como as frequências do espectro visível. É assim que surge a ”vaza esverdeada de limo sem forma”[4], ou “um rio rápido com chamas abrasadoras”[5], ou ainda as águas do rio Estige com um tom avermelhado.
Para além do rio Estige outros quatro desembocam no submundo do deus Hades, tais como o Aqueronte (rio da dor), outros como o Letes (rio do esquecimento), o Phlegethon (rio do fogo) ou o Cocyto (rio das lamentações). Caronte, é o barqueiro mediador que transporta as almas dos mortos através dos rios de acordo com os Manes (karma) de cada uma, em direcção ao submundo.
A transmigração das almas (espíritos) e a reencarnação são assuntos assumidos em ambos os poemas: na Eneida por estar no tempo mais próxima das fontes, e na Divina Comédia temporalmente numa época posteriormente distinta, a da Idade Média, influenciada claramente pela primeira ao colocar Vergílio como figura central, fosse ainda pela retoma das tradições defendidas nas doutrinas e filosofias mistéricas do Antigo Egipto, e que muitos atestam ao conferirem a Dante os conhecimentos exigidos.
Prova Anquises a existência da alma (espírito), no seu discurso a Enéias, quando finalmente se encontram de forma virtual, e esclarece: ” Vou dizer-te então, filho, e não te deixarei na incerteza… Antes de mais deves saber que um espírito imanente alenta o céu e as terras, as planícies líquidas (os oceanos), o refilgente globo lunar e o astro do Titã (o Sol), e uma alma, derramando-se pelos membros, põe em movimento toda a matéria e penetra o magno corpo.”[6].
E logo á frente diz, reforçando a concepção da reencarnação: “Cada um de nós sofre os seus Manes (destino, karma). De lá somos enviados para o amplo Elíseo (paraíso). Poucos habitamos os campos da alegria. Até que o longo passar dos dias, completado o ciclo de tempo, nos livra de labéu antigo e deixa puro o celeste sentido e o puro fogo do espírito. O deus evoca todas estas, depois de terem feito girar durante mil anos a roda do tempo, para junto do rio Letes (rio do esquecimento), em grande multidão, precisamente para que, esquecidas, voltem a contemplar a abóbada celeste e comecem a ter o desejo de regressar aos corpos.”[7]
Na mitologia grega o rio Letes fluía pelas cavernas de Hypnos, o deus do sono, considerado a antecâmara da morte. As almas dos mortos só estariam aptas a reencarnarem quando obrigadas a beberem do rio para esquecerem as suas vidas passadas. A Eneida faz referência a esta obrigação. Porém ao não beber do rio Letes, a alma poderia ver ultrapassado a sujeição ao ciclo de morte, esquecimento e renascimento, como ensinavam os mistérios órficos, onde outro rio, o Mnemosyne rompia o tecido do espaço-tempo.
Também o físico teórico italiano Carlo Rovelli se sente atraído pela ideia da água e do mar oceano, quando intuitivamente tenta descrever o espaço-tempo como laços do campo gravitacional na escala de Planck (10-33 cm), ao referir que “o tecido formado pelos laços é muito mais cerrado do que os aglomerados de átomos que vivem dentro dele. Podemos ver estes últimos como grandes pérolas bordadas no tecido fino de uma camisa – ou talvez como peixes num mar onde cada molécula de água corresponde a um laço.”[8].
Deverá ser a este nível onde quase tudo se passará: onde em vez do espaço-tempo contínuo que nos é dado constatar macroscopicamente no nosso dia-a-dia, nos transpomos para a fluidez dimensional das altas energias vibracionais dos “laços quânticos” que se contêm a si próprios, e que se rompem na presença de massas como os campos electromagnéticos na presença de cargas eléctricas, ainda de acordo com Rovelli.
Estas massas, neste caso poderiam ser vórtices energéticos criados na aniquilação partícula-antipartícula das flutuações do vácuo quântico, matematicamente revelados nos Diagramas de Feynman e detectadas pelo Efeito Casimir. Espécie de nano buracos negros, irmãos microscópicos dos titânicos cosmológicos, e que afinal no seu conjunto sustentam a nossa realidade material, de onde tudo procede, como ilusão resultado de uma profunda magia que o CERN – Organização Europeia para a Investigação Nuclear, ainda não possui, mas contudo corporizado num processo antevisto nos Vedas pelo ciclo infinito dos Gunas figurados nos Rajas-Tamas-Sattva ou na filosofia japonesa taoista das forças Yin-Yang.
Em ambos os casos teríamos corpos estelares, sóis mitologicamente designados por Titãs, fossem eles as estrelas de neutrões com massa acima daquela de Chandrasekhar, fontes de Buracos Negros de dimensões cosmológicas e depois, aos nossos olhos passados éons de tempo, convertidas pela acção da Radiação de Hawking (efeito partícula/antipartícula) em Estrelas de Planck, ou fossem ainda os nano buracos negros/brancos gerados nas flutuações do vácuo quântico (o mesmo efeito partícula/antipartícula).
Diz Hermes Trismegisto no seu segundo Aforismo da Correspondência: “O que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima.”
Afirma Rovelli: “O pensamento científico está consciente da nossa ignorância. Eu diria até que o pensamento científico é a própria consciência da extensão da nossa ignorância e da natureza dinâmica do conhecimento. É a dúvida, não a certeza, que nos faz avançar.”[9].
Nos Cantos dos grandes poemas da humanidade, de que fazem parte a Eneida e a Divina Comédia, a certeza carece de prova porque a revelação faz parte da mente intuitiva que acede aos arquétipos e às construções mentais colectivas da humanidade reveladas por Platão e Jung.
João Porto
Notas bibliográficas
[1] Sagan, Carl, Cosmos, Editora Gradiva, 1980.
[2] Eneida, Vergílio, Bertrand Editora, Lisboa 2020, Canto VI, 260.
[3] Eneida, VI, 290 (p.159).
[4] Eneida, VI, 410 (p.163).
[5] Eneida, VI, 550 (p.168).
[6] Eneida, VI, 730 (p.173).
[7] Eneida, VI, 750 (p.174).
[8] Carlo Rovelli, E Se o Tempo não Existisse?, Edições 70, Fevereiro 2022 (p.42).
[9] Carlo Rovelli, E Se o Tempo não Existisse?, Edições 70, Fevereiro 2022 (p.65).
Imagem de destaque: Virgílio, detalhe do Mosaico Monnus. Creative Commons