Amiúde, damo-nos conta com a reflexão sobre a ideia de felicidade. Esse exercício parece estar envolto numa complexidade que muitas vezes é referida como subjetiva. Vamos tentar simplificar, uma vez que essa subjetividade está muito provavelmente relacionada com a infelicidade e a insatisfação do ser humano. Parecendo dois conceitos antagónicos, atrevo-me a afirmar que a via para a infelicidade é muito mais percetível, do que aquela ideia que teimamos em dificultar, quando buscamos a sua natureza – a felicidade. Porque não assumimos o caráter singelo e puro da felicidade, como um estado de espírito que está tão perto de nós? A felicidade pode transmitir-nos com grande fulgor, e simplesmente, um estado de uma consciência plenamente satisfeita. A sua origem do latim, felicitas, pode significar fertilidade, felicidade, boa fortuna, sorte, favor dos deuses e prosperidade. Heráclito, filósofo pré-socrático (500-450 a. C.), deixou-nos com esta máxima: Se a felicidade residisse nos prazeres do corpo, diríamos que os bois são felizes quando encontram feno para pastar. Sócrates (470-399 a. C.) afirmava aos seus discípulos que tinha tudo o que desejava, mas que adorava ir ao mercado para descobrir que continuava completamente feliz, sem todo aquele monte de coisas. Platão (428-348 a. C.) promoveu o exercício da temperança no que diz respeito à busca de riqueza material, de modo que, ao fortalecer a moderação, a pessoa pudesse preservar assim, a ordem de sua psique. Diógenes de Sínope (412-323 a. C.), filósofo cínico interpretou a felicidade através de uma vida simples, e a necessidade de retornar à natureza, apesar de todas as convenções e costumes que nos tendem a afastar. Epicuro (342-270 a. C.) identificou que a raiz do mal se encontra na intemperança dos desejos, que sobre o efeito de uma falsa representação do prazer e da felicidade, impulsiona-nos a possuir sem limite, quando não é buscar a qualquer preço um diminuto poder ou glória de um curto momento. Lao Tse (V-IV séc. a. C.), filósofo da Antiga China, preconizou a rejeição do supérfluo, e defendeu uma certa ética da frugalidade e da autolimitação, valorizando a busca de harmonia com a natureza, mais do que a acumulação de bens materiais. Diz-nos ainda, Lao Tse, que a sabedoria é o caminho que desprende o excesso, a extravagância e o exagero. A ideia de felicidade não tem, afinal, qualquer subjugação ao subjetivo material, sem ligação às conquistas da posse e das coisas transitórias.

Quanto à economia, sabemos que a sua origem vem do grego, oikonomia, que significa simplesmente, a gestão da casa. Sem nos deleitarmos nas grandes definições da micro e macroeconomia, convém não esquecermos, que na sua origem está tudo aquilo que nos ensinaram os nossos pais, quando alimentávamos um porquinho mealheiro, para pouparmos ou economizarmos. Por muitas definições que possamos dar à economia, convirá reforçar esta ideia de moderação nos gastos, ou o proveito de que resulta em gastar pouco. Como referiu Serge Latouche, economista e filósofo francês, nascido em 1940, explorou a ideia de economia como um Ideal de Frugalidade, onde é vivenciada uma abundância frugal dentro de uma sociedade solidária, ou seja, aquilo que é característico da sobriedade, da temperança, da moderação, do comedimento, da parcimónia.

Porém, apesar destas referências sábias tão ancestrais, porque se foi consolidando a sociedade de consumo? Podemos ensaiar uma certa teimosia da História ou uma ilusão coletiva persistente, que atravessou e se conformou nas diferentes fases da história da humanidade, justificado pela teoria do Path Dependence, ou dependência da trajetória, a lei de continuidade preconizada por Leibniz. Esta trajetória que vem sendo reforçada de longe, no tempo, que fez fortalecer a sociedade burguesa, no século XIV, firmando com a expansão comercial, que trouxe a chamada mundialização ou globalização, iniciada nos finais do século XV-XVI, catapultada pelas conquistas materiais da revolução industrial, nos séculos XVIII-XIX. Somos quase sempre afetados e influenciados pela vantagem de sermos contemporâneos da história presente, aquilo que poderíamos chamar de efeito de contemporaneidade. Mas podemos estar cientes de coisas de outros tempos, vividas no nosso tempo. E de facto, o comportamento consumista já vem de longe. Por exemplo, no início do século XX, ainda o telégrafo era uma tecnologia de comunicação de excelência, tal como nos dias de hoje é a Internet, a empresa Sears, uma cadeia de vendas à distância, nos Estados Unidos da América e fundada em 1893, que despachava diariamente 100.000 encomendas, em 1905, cujo volume de negócio era garantido pela exploração de duas tecnologias emergentes: o telégrafo e o comboio a vapor.

Hoje em dia, já não faz sentido falar-se de consumo, mas hiperconsumo e o seu impacto na saúde da humanidade e na preservação do planeta: o excesso do consumo de carne e gorduras, de sal, de álcool, de açúcar e de gordura, fizeram disparar a obesidade e o colesterol, a hipertensão, a cirrose e a diabetes. Por outro lado, verificamos que a distribuição e a produção de riqueza são assimétricas, entre os hemisférios norte e sul. No primeiro, o excesso de riqueza devasta a qualidade de vida dos seus habitantes; no segundo, é o extremo de empobrecimento que assola os seus naturais. Uns experimentam os efeitos do hiperconsumo, outros os do hipoconsumo.

Esta obsessão a que assistimos atualmente com a variação do indicador do crescimento económico, conhecido por Produto Interno Bruto, porque tem que crescer, custe o que custar, com imensos prejuízos e desvantagens para o equilíbrio do planeta Terra, mereceu um pensamento do economista John Stuart Mill (1806-1873), em tudo ajustado com os princípios do decrescimento económico controlado: Se a Terra tiver de perder a maior parte da sua beleza pelos danos provocados por um crescimento ilimitado da riqueza e da população, então, pelo bem da posteridade, desejo sinceramente que nos contentemos em ficar onde estamos nas condições atuais, antes que sejamos obrigados a fazê-lo por necessidade. Em verdade, para onde nos conduz esta obsessão do Altar Sagrado da Economia Mundial, que nos impinge a ideia destruidora da necessidade do crescimento ilimitado do Produto Interno Bruto!

John Stuart Mill (1806-1873). Domínio Público

Serge Latouche argumenta que todos os organismos crescem, pois seguem uma lei da natureza. Mas também diferencia os organismos naturais, do organismo económico, sendo que este nada tem de natural, unicamente aspira sobreviver às consequências da sua inserção no ecossistema do planeta, alheio e indiferente aos seus efeitos.

Para melhor compreendermos a natureza da economia do crescimento, façamos uma comparação com o conceito de entropia, que surgiu em 1865, por Rudolf Clausius (1822-1888), como caracterização da Segunda Lei da Termodinâmica: A energia do universo é constante e a sua entropia está a aumentar continuamente. Aqui poderíamos confundir o contrário, ou seja, que a energia do universo está continuamente a crescer e que a entropia é constante. É a entropia que faz a sua variação, crescendo. Mas como podemos entender a entropia? Geralmente, é a medida da desordem ou aleatoriedade de um sistema, que pode ser exemplificado com a aspersão de um perfume dentro de uma sala. Ao ser aspergido, as suas moléculas apresentam um grau elevado de aleatoriedade, velocidades variáveis, face às pequenas diferenças de temperatura e pressão que o ar apresenta dentro da sala, e nessas condições a sua entropia aumenta, ou seja, cresce a desordem.

A crença na possibilidade de que o crescimento económico possa ser ilimitado está fortemente descredibilizada. O crescimento económico não tem um comportamento entrópico como o do perfume, apenas, quando muito, pode representar um alto grau de desordem na economia, quando conduz a fenómenos elevados de superavit (resultado orçamental que aferiu mais ganhos do que gastos) e como consequência a deflação (oposto da inflação).

Esta obsessão pelo crescimento económico parece atingir níveis dramáticos, ao ponto dos especialistas, afirmarem por vezes, que os mercados ficam nervosos. Parece estarmos perante uma personificação, mas se analisarmos bem, o que são os mercados? Entendemos os mercados como o conjunto dos consumidores, num sentido lato, que são um elemento preponderante na governação das economias ditas modernas. Em junho de 2023, um periódico com especialidade em economia, emite a seguinte notícia: Irlanda, campeã do crescimento, entrou em recessão técnica, após ter alcançado um crescimento homólogo do Produto Interno Bruto, de cerca de 13%, no último trimestre de 2022, emagrecendo 0.3% no primeiro trimestre de 2023. Aqui está um exemplo do drama da economia, quando se confronta com os emagrecimentos, mesmo de pouca monta. Então como se processa o antídoto para acalmar os mercados? Através da estratégia do incentivo ao consumo: promovendo ações de marketing para criação do supérfluo; disponibilizando sistemas de crédito que facilitam o acesso ao consumo e disseminando o modelo de obsolescência programada, que visa tornar o produto não-funcional ao fim de um curto prazo da sua vida.

Mas qual é a força motriz para esta obsessão com o crescimento do PIB? Um dos mais proeminentes economistas da primeira metade do século XX, Joseph Schumpeter (1883-1950), desenvolveu uma teoria que designou por Criação Destrutiva, que consiste na promoção da inovação tecnológica, como motor para o desenvolvimento do modelo capitalista, e consequentemente um impulsionador do crescimento económico. A ideia da Criação Destrutiva é gerar incrementos tecnológicos nos produtos, tornando obsoletas as versões anteriores, para induzir nos mercados necessidades aparentes que levam os consumidores a comportamentos irracionais extremos, como por exemplo, dormirem de véspera, à porta das grandes superfícies comerciais, para garantirem a aquisição da nova versão do produto tecnológico. É a geração de ciclos de destruição, criação, destruição, criação…, para cumprir uma máxima dos empreendedores modernos: a inovação é uma invenção que encontra o seu mercado. Não significa que entendamos a inovação como um processo nefasto e desnecessário, pelo contrário, é graças à inovação que progredimos científica e tecnologicamente. Porém, a inovação como processo complexo na perspetiva filosófica requer um código de ética próprio, cooperante, solidário e que verdadeiramente, zele pelo Bem Comum.

A Lei de Conservação como uma das leis morais que constam da Codificação de Allan Kardec, tem uma relação direta com os princípios da economia da felicidade. O tópico por excelência desta economia denomina-se por instinto de conservação. Faz parte da nossa natureza a preservação da saúde, a conservação de um estado corporal e mental equilibrados. Ficamos transtornados quando alguma avaria acontece aos elementos tecnológicos que nos deveriam facilitar o cotidiano: o automóvel, o telemóvel, o frigorífico, o esquentador ou o cilindro de água quente…. Frequentemente até nos alheamos dos cuidados a ter para conseguirmos esse estado de preservação das características funcionais. Não é natural adquirir o novo quando o velho ainda pode ser reparado, conservado, preservado. A consciencialização dos exageros, da ambição, dos gozos, dos prazeres, das emoções e dos desejos é fundamental para que possamos definir os limites do necessário e do supérfluo. Conhecer verdadeiramente esta fronteira é sinal de sabedoria, reconhecendo ao mesmo tempo, que são os vícios os dominadores das necessidades ilusórias.

Estas ideias associadas ao decrescimento económico, não são uma grande novidade contemporânea. Serge Latouche apresenta-nos no seu livro Les précurseurs de la décroissance. Une anthologie, uma lista de pensadores que defenderam estes princípios, desde as mais Antigas Civilizações. Não seria possível enumerá-los a todos, mas optamos por citar apenas alguns, aqueles que selecionamos com uma visão bem diferente, como críticos da revolução industrial e da sociedade de consumo.

John Stuart Mill (1806-1873), um dos filósofos mais influentes de língua inglesa, no século XIX, que se dedicou também ao estudo da economia. Viveu o fulgor da nova revolução industrial, e foi dos poucos a ter uma visão que se ajusta aos dias de hoje: (…) o dinamismo da vida económica para no limiar dos rendimentos decrescentes, que não são outra coisa senão a finitude da natureza, a escassez de terras férteis, o esvaziamento das minas, os limites do planeta (…) Sobraria tanto espaço para toda a espécie de cultura moral e de progresso moral e social; outro tanto para melhorar a arte de viver e maior probabilidade de o ver a evoluir, assim que as almas cessassem de serem cheias de adquirir riquezas (…) Todas as invenções mecânicas realizadas até ao momento, diminuíram o cansaço cotidiano do ser humano; elas aumentaram a comodidade das classes médias, mas ainda não começaram a operar no destino da humanidade (A ética do estado estacionário, a lógica económica fica imutável, não é consequência direta da escolha da sociedade, mas de um limiar externo, como a raridade de terras de Thomas Malthus).

Ensaio sobre o Princípio da População (1826). Domínio Público

Thomas Malthus (1766-1834) foi um clérigo anglicano, iluminista, versado em assuntos de economia e demografia, ficou conhecido pela sua teoria do controlo do aumento populacional. Esta teoria refere que os meios de subsistência crescem em progressão aritmética, e a população cresce em progressão geométrica, sendo necessário impor limites rígidos para a reprodução. Jorge Angel Livraga escreveu um artigo intitulado A Trágica Profecia de Malthus, no qual preconiza que apesar de quão odioso nos seja reconhecê-la e dos evidentes erros de detalhe, a teoria de Malthus continua de pé.

Mahatma Gandhi (1869-1948) deixa-nos a máxima de que a terra é suficientemente grande para satisfazer as necessidades de todos, mas será sempre muito pequena para satisfazer a avidez de alguns. E acrescenta que não há necessidade do sistema da concorrência, da competitividade que atormenta a vida. A sabedoria de Gandhi estabelece que o bem-estar é necessário, mas para além de um certo limite torna-se um obstáculo, porque por detrás da criação de necessidades ilimitadas esconde-se uma armadilha: a degeneração no culto da matéria.

Lewis Mumford (1895-1990), historiador norte-americano, denuncia um crescimento artificial de necessidades que não tornam os cidadãos mais felizes. Defende um regionalismo descentralizado, uma cidade à medida humana, um equilíbrio entre a indústria e a agricultura e sobretudo, adere à nova ideia da época, de uma democracia de entreajuda e de plenitude. Mumford advertiu que a sociedade tecnológica deveria entrar em harmonia com o desenvolvimento pessoal e as aspirações culturais regionais. Conforme avançamos anteriormente, trata-se de abordar o tema da inovação científica e tecnológica com um sentido ético.

Georges Bataille (1897-1962), escritor francês pouco conhecido em vida, mas que influenciou muitos outros depois da sua morte. Escreveu ensaios sobre o misticismo da economia. A despesa é uma peça fundadora e um conceito chave da crítica de Bataille à economia tradicional. De facto, na moderação da despesa reside o equilíbrio entre a necessidade efetiva e o supérfluo, assim como o atendimento às prioridades.

Nesta perspetiva da despesa, George Bataille configura uma imagem muito original relacionada com a porção muito reduzida de energia disponível e circulante que é utilizada no crescimento do sistema vivente. À energia sobrante, Bataille chama servil ou subserviente, um excedente considerável de energia disponível, que resulta numa limitação, face à possibilidade de um emprego útil de energia que seja otimizado para o crescimento do sistema. Fica a ideia de uma satisfação intrínseca ao Ser Humano, que deriva do desperdício puro e simples da obsessão de crescimento, conferindo uma segurança ilusória, apenas pela sua realização, que visa perpetuar a utilização de energia subserviente. Podemos designar como autosubserviência do desperdício, sem capacidade filosófica para deter esta realidade nefasta da energia servil. Deste modo, a despesa ocupa um lugar estratégico no funcionamento das sociedades humanas, que para Bataille, tem uma finalidade suprema: a destruição. Esta finalidade não está focada na existência ou na sobrevivência, mas na despesa. Afirma Bataille que esta economia que reduz os seres humanos ao estado de átomos calculadores do crescimento, que os dirige ao culto do momento servil e à urgência original de sobrevivência. O desafio é enfrentar uma sociedade de decrescimento para requalificar as vias da despesa e não preservar uma existência já demasiado preservada e imóvel. Bataille deixa-nos o seu testemunho sobre a necessidade de nos dedicarmos à economia, priorizando a sua componente filosófica.

Lanza del Vasto (1901-1981), filósofo e poeta italiano, apelidado o Gandhi do Ocidente, pois reencontra decisivamente Mahatma Gandhi no seu livro Peregrinação às Fontes (1943). Este filósofo afirmou que é possível viver uma fraternidade, simplificando a existência cotidiana, revendo as necessidades para reduzi-las ao essencial, partilhando os recursos, com as suas mãos, velando para que não pese sobre o planeta e os outros, redescobrindo a via espiritual e o sentido da festa – e mostrar que isso não é difícil nem doloroso. Que nos esforcemos de não violar e romper o vínculo que Deus e a Natureza colocaram entre o que pede a boca e o que as duas mãos podem produzir. Que reduzamos os nossos desejos às nossas necessidades e as nossas necessidades ao extremo, para nos libertar da labuta excessiva (…). Lanza del Vasto expressa aqui um valor incomensurável para a existência humana, nas sociedades ditas desenvolvidas. Atenda o leitor à palavra que este autor escolheu, labuta, que significa trabalho pesado e perseverante ou labor com luta, a realidade que nos impulsiona imbricados e aprisionados no tempo despendido na satisfação dos vícios e dos desejos. A economia da felicidade preza sobretudo o trabalho, como lei moral, para satisfação das nossas necessidades estritas, libertando-nos tanto tempo que deve ser dedicado à imaginação e criatividade. Trabalhar mais, labutar menos, para criarmos muitos caminhos de filosofia.

Simone Weil (1909-1943), foi uma escritora e filósofa francesa, e uma das mentes mais brilhantes do séc. XX, apesar da sua curta existência. Estudou os maniqueus, gnósticos, pitagóricos, estoicos, o taoísmo e o budismo. Devorou o Livro dos Mortos do Antigo Egito, e ficou tão impressionada com o Bhagavad Gita que começou a aprender sânscrito por conta própria. Obteve licença de dois anos do seu magistério para estar entre os operários da linha de montagem da Renault, e assim estudar as relações do proletariado. Mas não se pense que o seu pensamento foi próximo da corrente marxista, uma vez que criticou as ideias de Karl Marx (1818-1883).  

Simone Weil (1909-1943). Domínio Público

À lógica do crescimento económico chamou de lei da força, que parece existir de forma velada e misteriosa: (…) parece que o homem não pode conseguir aliviar o jugo das necessidades naturais sem pesar o jugo da opressão social, como que pelo jogo de um equilíbrio misterioso (…) Foi apenas a intoxicação provocada pela velocidade do progresso técnico que deu origem à ideia louca de que o trabalho poderia um dia tornar-se supérfluo. Esta ideia desenvolvida por Simone Weil representa uma simbiose amplamente automatizada, entre os alcatruzes das necessidades e a nora personificada na opressão social vendada: quanto mais roda a nora, mais água sai do poço; quanto maior for a opressão social, maior é o jugo das necessidades. Para Weil esta opressão não resulta em rebelião, mas em obediência cega e apatia. Reforça esta imagem com a ilusão da máquina de movimento perpétuo fundada na lei da conservação de energia. Esta é a canga das sociedades governadas pelo crescimento económico.

Ivan Illich (1926-2002), foi um pensador austríaco da ecologia política e crítico da sociedade industrial. Estudou filosofia e teologia. Estudou os temas da objeção ao crescimento: a insustentabilidade do desenvolvimento e do nosso modo de vida, a colonização do imaginário (choque cultural entre dois povos), a autolimitação das necessidades, a convivialidade, até a pedagogia das catástrofes. O livro Para Uma História das Necessidades, onde o autor denuncia a maior evidência do desenvolvimento como gerador daquilo que chama: pobreza modernizada. Illich afirmou que com a globalização assistiremos à mutação do homo oeconomicus em homo miserabilis, o homem necessitado, convertendo a medicina em doença, a escola em ignorância, o crescimento e desenvolvimento em empobrecimento. É curioso e interessante o exemplo refletido por Illich, quanto à grande ineficácia do transporte automóvel, uma das mais influentes General Purpose Technology (causam grande impacto nas estruturas económicas e sociais pré-existentes). Illich estabelece uma relação entre a ilusória vantagem do monopólio radical do uso do carro dentro das cidades e a quantificação dos impactos económicos face à perda das pernas do condutor. Considerando o tempo de imobilização nas filas de trânsito, o tempo a labutar para pagar o combustível, os pneus, as portagens, o seguro, as multas, sem falar dos acidentes, a velocidade média do carro situa-se nos 6 km/h, aproximadamente aquela que o condutor pode realizar a pé. Neste caso os membros inferiores constituem o elemento corporal essencial para a locomoção. O paradigma de Illich centra-se na quantificação dos efeitos económicos desta perda, o que torna quase impossível, o economista concretizar.

Pensamos que foram elencadas algumas reflexões importantes, na defesa da economia do decrescimento controlado, e consequentemente, a necessidade de olharmos com outros modos, para o futuro do nosso planeta. A economia do crescimento está a causar um impacto devastador sobre a biosfera, e bastará pensar apenas na quantidade de lixo que produzimos. Há necessidade de repensarmos o nosso modo de produzir e consumir, contando que cerca de 80% dos bens comerciáveis são utilizados uma única vez, antes de serem definitivamente descartados. A produção de lixo por habitante, de uma das maiores economias do mundo, os EUA, é cerca de 800 kg por ano. Convirá refletir de cada vez que lançamos algo no lixo, pois nem todas as economias mundiais têm programas adequados e ajustados ao correto destino do lixo dos desperdícios. Neste capítulo também fica bem visível a preponderância do kama-manas e a prevalência do egoísmo sobre o altruísmo.

É crucial operar uma mudança de valores e redefinir os conceitos de necessidade e de supérfluo, a escassez e a abundância, o desperdício, a despesa, e finalmente, o que é a pobreza e a riqueza. Não podemos persistir numa competitividade obsessiva, ao ponto de estarmos a criar novas gerações devotadas ao culto pecuniário, em vez de promovermos os laboratórios de cidadania e ética, seguindo os ensinamentos da República de Platão.

É preciso sensibilizar para as ações prioritárias que concorrem para o fortalecimento Interior do Ser Humano, valorizando a criatividade sobre a obsessão da labuta, descobrindo através disso, que a importância da vida não mora no desejo do consumo ilimitado, e que devemos acordar de uma longa letargia da heteronomia da sujeição económica, e privilegiar a beleza da obra, em vez de focarmos em exclusivo, na eficiência da produção.

Para viver melhor, é preciso daqui em diante produzir e consumir de outra maneira, fazer melhor e mais com menos, eliminando, para começar, as fontes de desperdício (exemplo: as embalagens perdidas, o mau isolamento térmico, a prevalência do transporte rodoviário, etc.…) e aumentando a durabilidade dos produtos. André Gorz (1923-2007).

Carlos Paiva Neves

Bibliografia:

-Latouche, Serge (2016), Les Précurseurs de la Décroissance, Une Anthologie, Le Passager Clandestin.

-Latouche, Serge (2011), Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

Imagem de destaque: Obra artística da mancha de lixo no oceano, exposto na UNESCO em Paris (2013). Creative Commons