No ano de comemoração dos 700 anos do falecimento de Dante Alighieri, propus-me os 3 R`s, reler, reflectir e redigir sobre a Divina Comédia, deixando aqui algumas conjecturas desse esforço dantesco de tentar “digerir” 14.233 versos, acompanhado por consultas bibliográficas colaterais.
A Divina Comédia escrita no início do século XIV por Dante Alighieri (1265-1321), é considerada uma das epopeias clássicas da literatura ocidental e espelho de muitas inovações para o seu tempo, a começar pela escrita em italiano vulgar e não em latim como seria de esperar da alta literatura da época. E assim é, porque para Dante o conhecimento devia libertar o homem e fazê-lo chegar mais depressa ao reino de Deus e à sua contemplação eterna. A obra é dividida em três livros, nomeadamente Inferno, Purgatório e Paraíso, onde cada um está por sua vez dividido em Cantos de tercetos normalmente compostas por 3 versos de 33 sílabas (3 x 11).
Considera-se que a composição desta obra gira em torno da numerologia através do simbolismo do número 3, que a filosofia mais recuada simboliza nos três Logos hinduísta expresso em Atma, Budhi, Manas ou a sua adaptação religiosa da cristandade na Santíssima Trindade, assim como também o equilíbrio e a estabilidade reflectidas no Trigunas hinduísta Tamas, Raja, Sattva, ou o Yang-Yin da filosofia chinesa, ou ainda recuando à antiguidade grega, a relação com o triângulo pitagórico.
Na senda da numerologia sagrada, possui três personagens principais, a saber o próprio Dante Alighieri, que personifica o homem; a sua amada Beatriz que personifica a fé; e Virgílio, o seu guia no Inferno e no Purgatório, que personifica a razão, a ciência, o intelecto.
Os 3 livros que compõem a Divina Comédia são divididos em 33 cantos. No entanto o Inferno possui um canto a mais que serve de introdução. No total perfaz 100 cantos, 33 x 3 + 1, e 14.233 versos.
O Inferno, o Purgatório e o Paraíso, são divididos em nove círculos cada, formando no total 27 diferentes dimensões (3x3x3). Finalmente os 3 livros terminam com um verso que utiliza a mesma palavra: “estrelas”, cujo significado permanece ainda por identificar.
Ao descrever a peregrinação do personagem Dante pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, o poeta desenvolve as perspectivas filosóficas, religiosas e científicas do seu tempo. Todos na Europa medieval acompanhavam o pensamento de Ptolomeu e Aristóteles que achavam que a Terra era estática e estava no centro do universo, e que os planetas, entre os quais a Lua e o Sol, giravam à sua volta. A Divina Comédia segue o paradigma aristotélico-ptolomaico ao descrever por exemplo o Paraíso formado por nove céus concêntricos girando em torno da Terra imóvel e estática no centro do Universo.
Uma leitura, que não pode deixar de ser profunda e atenta da Divina Comédia, leva-nos a viajar pela mitologia europeia associando conhecimentos agora corporizados pela Física, Química, Astronomia, História, Filosofia, Arte, Literatura, Metafísica e Religião, traduzindo para além da cosmovisão da realidade na Idade Média, mensagens codificadas inerentes às tradições transmitidas pelas doutrinas secretas dos Templários e dos Maçons construtores de catedrais. Não é por acaso que no último Canto 33 da peregrinação pelo Paraíso, Dante Alighieri é conduzido até à face de Deus por São Bernardo de Claraval (1090 – 1153), padroeiro dos Templários.
“Bernardo me acenava e me sorria
por que eu olhasse ao alto; mas eu era
já por mim mesmo como ele queria;
que minha vista vinha assim sincera,
e mais e mais no raio se entranhava
da alta luz que só por si é vera.”
Paraíso, Canto XXXIII, 49-54
Curiosamente Bernardo de Claraval nasceu em Dijon, na mesma cidade onde nasceu o seu primo, o Conde D. Henrique (1066). Defendeu a criação da Ordem dos Templários, redigindo os seus estatutos. Esteve associado à fundação de Portugal, pois foi por mediação da sua abadia de Claraval que o Papa enviou um legado à Península Ibérica, reconhecendo a independência nacional e o título de dux a D. Afonso Henriques, rei templário.
Ao analisarmos a Divina Comédia descortinamos as raízes da ciência na Idade Média contradizendo a presunção, tantas vezes avançada, de que não existiu qualquer progresso científico durante este período histórico, muitas vezes abusivamente apelidada de Idade das Trevas.
Depois de Tomás de Aquino, com os seus estudos, debates e discussões, ter adaptado à gnose cristã a filosofia grega, perdida para o Ocidente após o colapso do Império Romano e recuperada sobretudo a partir de fontes árabes e bizantinas, os pensadores medievais produziram avanços no conhecimento, considerados já de natureza científica, através sobretudo das universidades medievais de Oxford e Paris no decorrer de todo o século XIV.
Na cosmovisão medieval o universo era uma hierarquia de esferas onde se situava a Terra como um globo centrado no espaço e sem movimento próprio, envolvido por uma atmosfera e contendo mares e terras. Quanto mais longe da Terra nos situássemos, mais perto do céu estaríamos, Os dois extremos desta geografia eram dados pelo centro da Terra, onde era colocado o Inferno, e a esfera das estrelas na sua periferia. Entre os dois, uma fronteira definida entre a Terra, região sublunar perecível onde vivia a humanidade, e a esfera celeste dos céus perfeitos e imutáveis, constituía a esfera da Lua. Depois desta fronteira, seguiam-se as nove esferas cristalinas, formadas por éter ou quintessência, orbitando eterna e circularmente em torno da Terra, a saber as esferas da Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Neste modelo de ordem harmoniosa situava-se por último a esfera das estrelas fixas para lá das quais se situava o firmamento e, fora dele, o reino de Deus.
Todos estes fundamentos estavam contidos na quarta disciplina do Quadrivium, transmitidos no Tratado da Esfera de João Sacrobosco.
Esta concepção anti-terraplanista era comum entre os estudiosos medievais e vem formatar a concepção da Terra na Divina Comédia. A geografia terrena apresenta-se com dois hemisférios: um boreal e habitado onde existiriam as terras conhecidas, e outro o austral onde dominavam os mares povoados de monstros mitológicos, que só as navegações de descoberta dos Portugueses desmistificaram. O primeiro estendia-se da foz do rio Ganges na Índia à nascente do Rio Ebro, na Península Ibérica enquanto no centro, ao meio-dia, localizava-se Jerusalém. Nos antípodas de Jerusalém haveria uma ilha que abrigaria a montanha do Purgatório. No entanto a queda de Lúcifer havia produzido uma fenda cónica, onde residiria a estrutura dos 9 círculos do Inferno e no seu centro o anjo caído em desgraça.
Na peregrinação de Dante e Virgílio pelo Inferno, ao descerem pelos círculos do Inferno chegam ao centro da Terra onde encontram Lúcifer. Em seguida, e já no segundo livro, Virgílio sobe com Dante às costas pelo túnel de uma passagem vazia que os leva ao hemisfério austral e à montanha do Purgatório:
De lá tu foste enquanto eu me descia,
mas quando me voltei tinhas passado
ponto que a todo o peso atrai a via.
e ao hemisfério ora te eis chegado
oposto ao que recobre a grande seca (a Terra)
sob o tecto (Jerusalém) da qual sacrificado…”
Inferno, Canto XXXIV, 109-114
Este “ponto” que “a todo o peso atrai a via” torna claro e traduz na nossa opinião, o efeito da atracção gravitacional provocada pelo centro (o “ponto”) da geometria esférica da Terra. A ligação de centro de massa com o peso dos corpos é autêntica inovação no conhecimento da realidade, uma revolução no pensamento tradicional aristotélico para o qual não havia necessidade de uma força da gravidade uma vez que era o desejo natural dos objectos ocupar os seus devidos lugares que os fazia cair ou ascender. O conceito de força ou de acção à distância só em 1687 foi proposta por Newton com a formulação da Lei da Gravitação Universal.
Sem esforçar tendencialmente a nossa interpretação, seguindo a metodologia inovadora da simplicidade franciscana medieval da “navalha de Ockham”, que agora à luz do mundo da Mecânica Quântica e da Astrofísica e da Cosmologia encontra a explicação mais plausível, a peregrinação de Dante naturalmente transporta-nos para um universo multifacetado de mundos paralelos coexistentes e inter-relacionados. Excepção feita para as dimensões dos círculos do Inferno, que são vivencialmente eternos. Todos são assumidos como meios similares ao estado das respectivas almas que os Cantos têm a particularidade de descrever pormenorizadamente. Como se o contexto das frequências vibracionais das almas emparelhasse com o seu meio ou vice-versa, tal como da estrutura fina de um espectro luminoso onde reina a constante universal e unidimensional alfa (α). Constante, que se sabe, unir três domínios essenciais da Física: o Electromagnetismo sob o valor da carga do electrão (e), a Relatividade Geral expressa pela velocidade da luz (c) e a Mecânica Quântica expressa pela Constante de Planck (h).
A constante universal alfa nos dois sistemas de unidades como valor adimensional.
Fizemos esta experiência: dos primeiros Cantos do Inferno, Purgatório e Paraíso, respectivamente os versos 1,3 e 7, obtivemos a seguinte sequência, porém com uma tercina sónica diferente (AAB, CCB, DDE)
“No meio do caminho em nossa vida
porque a direita via era perdida,
Tão amarga é, que pouco mais é morte;
Buscando águas melhores iça as velas
que deixa atrás de si cruéis porcelas;
A morta poesia ressuscite;
A glória do alto ser que tudo move
mais numa parte e menos noutras chove
pois perto a seu desejo indo a subir”
Espantosamente resume de forma sucinta e clara o propósito da existência material. Esta só tornada possível porque o valor 1/137 ou 7,297352568 x 10-23 é tão diminuto que permite que a força electromagnética deixe os electrões “saltarem” entre as orbitais dos elementos, controlando deste modo a força das ligações químicas, mas forte o suficiente para que as estrelas possam sintetizar os elementos mais pesados da Tabela Periódica, como o carbono, que está na base da Vida. Daí, talvez, a presença da palavra “estrelas” no fim de cada livro da Divina Comédia.
Este será então o propósito da Vida já contido no Dharma védico expresso nos Upanishads e na Doutrina Secreta de Blavatsky.
A emissão ou absorção de luz em determinadas frequências devido ao “salto” dos electrões em diferentes níveis no átomo, criam as linhas espectrais onde as escuras são a absorção e as claras a emissão. Como se fosse uma estrutura fina, tipo código de barras.
As propriedades de toda a matéria e energia resultam desta relação profunda dos campos quânticos ondulatórios, extensíveis a todas as dimensões, na Divina Comédia tidas como círculos e aqui aprimoradas nestes tercetos onde se revela a natureza imaterial e as propriedades da luz (reflexão e refracção), chegando Beatriz a propor a realização de uma experiência (Paraíso, Canto II, 49-111).
““Eleva a mente grata a Deus”, me disse,
“que nos juntou com a primeira estrela”.
E pareceu que nuvem nos cobrisse,
Lúcida, espessa, sólida e polida,
qual adamante ali que o sol ferisse.
Dentro de si, a eterna margarida (pedra preciosa)
nos recebeu, tal como a água recebe
raio de luz permanecendo unida.
Se eu era corpo, e aqui não se concebe
como uma dimensão outra admitiu,
quer se convém se corpo em corpo embebe,
mais o desejo acesso então surgiu
de ver aquela essência em que se vê
como nossa natura e Deus se uniu.”
Paraíso, Canto II, 30-42
No seu livro QED – a estranha teoria da luz e da matéria, Richard Feynman afirma acerca desta constante de acopulamento: “Pode-se dizer que a mão de Deus escreveu aquele número, mas não sabemos como Ele usou o lápis.”. E ainda mais à frente, referindo-se às constantes universais: “Não há nenhuma teoria que explique adequadamente estes números. Usamos os números em todas as nossas teorias, mas não os percebemos – o que eles são ou donde vêm. Acredito que, de um ponto de vista fundamental, este é um problema muito interessante e sério.”
Na Divina Comédia poderíamos considerar os múltiplos círculos como dimensões paralelas, tão caras à física das “cordas” e às “branas” na cosmologia. A nossa existência material constituiria apenas mais um “círculo” dantesco, suportado por forças titânicas onde dominam os campos quânticos das forças nucleares e electromagnéticas, que nos confinam no “centro” do universo, afastados irremediavelmente das “esferas cristalinas” das estrelas, do “empíreo” firmamento e da deidade e dos seus campos quintescentes e etéricos (quânticos?).
O progresso de Dante e do seu guia Vergílio nos círculos inferiores do Inferno e do Purgatório são sempre descritos com grande esforço e cansaço por efeito das intuídas forças gravitacionais, por vezes desnorte e esmorecimento que só a fé e os olhos de Beatriz são capazes de compensar. Energia e massa são necessárias para os ultrapassar e romper as forças que os sustem.
“Eu estava na ponte a ver tal surto,
e se a um rochedo ali não fosse preso,
sem choque lá caía em tempo curto.
E o guia, que me viu assim surpreso,
Diz: “No fogo os espritos são a arder;
cada um se envolve do que nele é acesso.”
Inferno, Canto XXVI, 43-48
““Bem te segures numa escada tal”,
Me disse o mestre arfando de cansaço,
“é preciso partir de tanto mal”.
E um buraco na pedra fez-lhe espaço (conversão matéria <=> energia)
de sair e me foi na orla pousar;
e veio ter comigo a certo passo.
Alçando os olhos, cri que ia avistar
Lúcifer como o eu tinha deixado;
E então o vi de gâmbias para o ar (efeito gravitacional do centro de massa);
e se eu fiquei um tanto perturbado,
a rude gente o pense, que não vê
que ponto (centro do planeta) é esse que eu tinha passado.”
Inferno, Canto XXXIV, 82-93
“”Ó minha força, fraca a que te empregue?”,
A mim dizia eu que me sentia
Não ter nas pernas força que carregue.”
Purgatório, Canto XVII, 73-75
A montanha do Purgatório tendo sido formada após a morte de Cristo pelo colapso da terra na direcção do hemisfério austral, parece assumir a ideia de que o aparecimento da humanidade criou a perspectiva de redenção da alma humana, porventura através de éons de tempo por sucessivos processos reencarnatórios, sendo que aquele avatar humano foi a causa definitiva (conceitos defendidos pelo Cristianismo primitivo anterior ao Concílio de Niceia em 325 dC).
A formação da montanha do Purgatório por colapso de um cone interno da matéria (a Terra = matéria) faz-nos recordar a física de um Buraco Negro, aquele sol central negro já presente na cosmologia da Ísis Sem Véu ou da Doutrina Secreta de H. Blavatsky.
“Desta parte tombou vindo do céu;
e a terra que aqui antes se estendia,
do medo que lhe vem fez do mar véu,
vindo ao nosso hemisfério; e então seria
que fugindo, lhe esvaziou ignoto
lugar a que ali vês e que ascendia.”
Inferno, Canto XXXIV, 121-126
A Cosmologia fez-nos compreender que a estrutura temporal do universo é muito semelhante a um cone, onde no centro de qualquer evento surgem por baixo e por cima os cones dos seus eventos futuros e passados, estruturados pela luz que viaja nos seus limites. Deste modo, nas proximidades de um Buraco Negro, estes cones de luz confluem todos, dado que a sua massa desacelera o tempo, de tal modo que o tempo pára nas suas fronteiras ou no seu “horizonte de eventos”. As analogias com o Inferno de Dante são arrasadoras!
“Antes de mim não houve coisas mais
Do que as eternas e eu eterna duro.
Deixai todas a esperança, vós que entrais.”
Inferno, Canto III, 7-9
Toda a peregrinação do personagem Dante é assumidamente feita num estado dualidade existencial: está vivo mas percorre o espaço-tempo dos mortos como entidade da mesma natureza daqueles, comunicando e interagindo simultaneamente física e metafisicamente, como se para tal ambos partilhassem um estado de “entanglement”, tal qual paradoxo do “Gato de Schrodinger”. A morte e a vida surgem como estados simultâneos apenas separados dimensionalmente.
Partilhamos o que afirma Vasco Graça Moura na sua introdução à Divina Comédia: “Às concepções da Escolástica sucederam o espaço absoluto e o tempo absoluto de Newton, ainda emanados da omnipresença e da permanência divinas, e a estes substitui-se o conglomerado espaço-tempo que Minkowski mostrava ser implicado pela teoria da relatividade….também em Dante há um peculiar entendimento finalista do espaço-tempo, da simetria, da energia, da matéria, do efeito fotoeléctrico, da ondulação e da velocidade da luz…, impondo portanto uma leitura não romântica do Paraíso…”
Longe da intenção de explorar todas as vertentes que confluem na Divina Comédia como antecedentes da Ciência, traduzidos pela Filosofia Natural, filha da Ciência Teológica medieval, todo o poema é trespassado por referências astronómicas.
A referência de maior relevo aparece na explicação dada por Beatriz sobre a geografia da superfície lunar e das suas manchas escuras, em Paraíso, Canto II, 49-111.
Surgem tercetos repletos de sinais e orientações estelares, planetárias e de constelações, como aquelas dando acesso ao Purgatório, no Canto I, mas que poderíamos reproduzir em muitos outros ao longo do poema, e que colocam a Astronomia, como astrosofia, no seu cerne.
“O planeta que todo o amor conforta (Vénus)
fazia sorrir já todo o oriente,
velando os Peixes (constelação) que a escoltá-lo exorta.
Voltei-me à mão direita e pus a mente
no outro pólo (austral), e aí vi quatro estrelas (virtudes cardeais),
vistas apenas da primeira gente.
Dir-se-ia o céu gozar a chama delas:
Setentrião, tu por viúvo és tido (a humanidade carece das virtudes),
porque privado estás assim de vê-las!
Quando eu de sua vista fui partido,
e o olhar um pouco ao outro pólo (norte) vai,
lá onde o Carro era já fugido (A Ursa Maior abaixo do horizonte),
só, junto a mim, um velho, sobressai,…
´Ergue-te´, disse o mestre, ´fica em pé:
a via é longa e o caminho estreito
e já o Sol na mei-terça é´”. (entre as 7h30 e as 8 horas)
Paraíso, Canto I, 19-31
A marcação do tempo é constantemente pautada com a presença dos astros, pois este tem origem na causa primeira do movimento, conferido por Deus ao Primum Mobile, a esfera mais externa do modelo ptolomaico do universo. É Astrosofia versus Astrologia.
“A natura do mundo, que aquieta
o centro e todo o resto em torno move,
daqui começa, como em sua meta;…
… e como o tempo tenha nesse testo,
sua raiz e noutros ponha as frondas,
te pode ser agora manifesto”
Paraíso, Canto XXVII, 106-108, 118-121
Sabe-se que a primeira referência a um relógio mecânico data de 1273, criado em Norwich, Inglaterra, destronando rapidamente as clepsidras romanas. Teve uma aplicação imediata na esfera armilar dando a posição de planetas e constelações de forma bastante imprecisa. Tinham sobretudo o objectivo de marcar as rotinas diárias de oração nos mosteiros. Esta invenção aliada à instituição da numeração árabe (verdadeiramente de origem indiana), as cruzadas e a introdução vital do zero, vai transformar toda a Idade Média e criar as premissas futuras do Renascimento. Contudo Dante Alighieri na Divina Comédia ao fazer ainda uso da numeração romana só demonstra a dificuldade da introdução da notação árabe de Al-Khwarizmi, só amplamente utilizada no então recém século XIII, em grande parte motivada pela resistência da Igreja na sua aceitação. Prevalecia em Dante a ideia de divulgação popular da obra que apoiada no vernáculo italiano mantinha no entanto a numeração romana.
Do mesmo modo que a noção de tempo mantinha-se ligada aos ritos sagrados terrenos da igreja o Primum Mobile criava a ideia prevalecente do tempo ligado à Criação.
Enquanto no Inferno o tempo pára, não existe, no Purgatório e no Paraíso a sua existência pontua a evolução futura das almas, distribuídas ao longo de éons de tempo representados pelos terraços. O progresso como não podia deixar de ser, é lento mas constante.
“O sol já no horizonte agora conto
cuja meridiana volta alarga
e toca Jerusalém no sumo ponto;…”
Purgatório, Canto II, 1-3
Contudo a entrada no Paraíso leva à inexistência de referências ao tempo por Dante, pois aqui o passado, presente e futuro ganham uma dimensão contínua, absoluta e eterna, fluindo uniformemente sem relação a nada externo. Na eternidade a mudança deixa de existir, e assim, o tempo que é a medida da mudança, de acordo com o pensamento aristotélico. Esta é outra revelação revolucionária de Dante ao diferenciar os conceitos de tempo relativo, caro a Aristóteles, do tempo verdadeiro, matemático e absoluto, newtoniano, muito antes do Principia Mathematica de Isaac Newton (1687), que irá alicerçar a construção da física moderna.
Hoje o conceito de espaço-tempo está relacionado com o próprio campo gravitacional e vice-versa, onde particularmente o tempo se transforma numa complicada trama geométrica tecida em conjunto com a geometria do espaço, ambos curvos e distorcidos devido à sua natureza quantizada e considerada possivelmente granular. A disposição e configuração arquitectónica dos terraços, a sua natureza revelada pela peregrinação de Dante pelo Purgatório, configura uma rede labiríntica de eventos segundo a ordem do tempo, em círculos sucessivos, das trevas à redenção da luz. Também o Inferno ajusta-se a esta ideia sendo, como já referimos, um imenso cone oco invertido até ao centro da Terra.
Em círculos sucessivos de horrores, “areal que um turbilhão aspira”, “rio de negrume”, “água assim de escura espuma”, “A terra lacrimosa soltou vento que lampejou de luz rubra tamanha”, “vale desse abismo doloroso…escuro e profundo era e nebuloso”, são descrições do Inferno ao longo dos Cantos III e IV, que nos fazem lembrar um “horizonte de eventos” nas cercanias de um Buraco Negro onde o tempo pára.
Já no Paraíso, mundo de baixa entropia e de dimensões lumínicas subtis, o tempo é desnecessário, pois como diz o astrofísico italiano Carlo Rovelli em A Ordem do Tempo: “A temporalidade está profundamente ligada ao desfocamento. O desfocamento é o facto de sermos ignorantes face aos detalhes microscópicos do mundo. O tempo da física, em última análise, é a expressão da nossa ignorância do mundo. O tempo é a ignorância.”
Um dos objectivos na Divina Comédia é dado pela próprio acto de peregrinação, mostrando que a evolução se faz de baixo para cima, da matéria para o subtil. Citando de novo Carlo Rovelli: “É a entropia, e não a energia, que arrasta o mundo.” Ou ainda mais adiante “Dos eventos menores aos mais complexos, é esta dança de entropia crescente, alimentada pela baixa entropia inicial do cosmos, a verdadeira dança de Shiva, o destruidor.”
Concordamos que fazer comparações entre a Divina Comédia e a Física actual é um sério risco, mas a deambulação filosófica arrastada pela intuição é mais forte e criativa. Os pontos de contacto só demonstram que a intuição humana sempre foi ao longo do tempo, a mãe de todas as inspirações e a razão dos arquétipos desde os Vedas, Platão a Carl Jung.
Continuando nesta senda, o Canto XXVIII, 23-18, do Paraíso atribui a configuração próxima de Deus a um ponto único e infinito na sua essência adimensional, tal singularidade espacial também atribuída pela actual astrofísica, tanto à origem como ao termo do evento conhecido por Big Bang, ou ainda à mais recente teoria de Roger Penrose da Cosmologia Cíclica Conforme.
“E como me voltei, e foi tocando
os meus o que aparece em tal volume (esfera)
se se for o seu giro bem fitando,
um ponto vi de onde raiava lume (luz ofuscante)
e tão agudo, que o olhar que enfoca
tem de fechar-se ante tão forte acume;…”
No mesmo Canto XXVIII, Beatriz explica o ponto luminoso e os nove círculos de fogo, que em torno daquele ponto se desenvolvem cada vez mais rápidos se mais próximos dele e do qual depende o céu e toda a natureza.
Esta concepção surge no influente Livro dos 24 filósofos (Liber XXIV philosophorum), onde no 2º aforismo, é dito que “Deus é uma esfera infinita cujo centro está em todo lugar e cuja circunferência não está em lugar nenhum.”. No aforismo 18º volta-se a referir que “Deus é a esfera cujo todo tem tantas circunferências quanto pontos”. Em 24 aforismos, dois são dedicados à ideia de esfera!
Este conceito também foi transmitido mais tarde em a A DOUTRINA SECRETA, Antropogénese, vol. III, Estância I, 6 por Helena Blavatsky, onde é revelado:
“Os Sete Sublimes e as Sete Verdades (a) haviam cessado de ser; e o Universo, filho da Necessidade, estava mergulhado em Paranishpanna (b), para ser expirado (c) por aquele que é e, todavia, não é. Nada existia.”
Conjecturamos que:
- Sete Sublimes e Sete Verdades são na cosmogonia os Campos de Forças, veículos para a manifestação do Pensamento e Vontade do Uno, expressos na constituição septenária;
- Paranishpanna é o estado entre dois éons após um período de expansão do universo (Manvantara) e um período de repouso que antecede outro período de expansão, em perfeito acordo com a Cosmologia Cíclica Conforme (CCC) de Roger Penrose;
- O aparecimento e desaparecimento do Universo, descrito como acto de expiração e inspiração, em que a primeiro corresponde à emissão de uma ondulação, perturbação do vácuo, vibração do Pensamento/Consciência do qual surge o universo.
Uma passagem no Paraíso, Canto I, 103-108, partilha esta mesma ideia e é elucidativa na explicação de como o Pensamento ou Consciência de Deus está na origem da “criação” do universo
“Vês toda a cousa extante
Ter ordem entre si e esta é forma
que o universo a Deus faz semelhante.
Vêem altas criaturas se conforma
cá a marca do valor eterno, fim
ao qual é feita a supradita norma.
Na ordem que eu descrevo tende assim
toda a natura, por diversa sorte,
mais ou menos a seu princípio afim;
onde a diversos portos se transporte
no grande mar do ser, e a cada um enfuna
instinto que lhe é dado a que lá aporte.”
O universo sendo “filho da Necessidade” traduz uma Lei, tal qual a entropia, que manda o Universo existir, manifestar-se, e que estará presente em todas as coisas sob a forma de uma seta do tempo (passado-presente-futuro) e na perenidade dos valores das constantes físicas, sempre no sentido de ascese (Dharma) e reposição constante do equilíbrio (acção tradicional dos Trigunas) perturbado por esta “Necessidade”.
A ideia de entropia, desenvolvida por Clausius e Boltzmann no século XIX e expressas na segunda lei da termodinâmica, poderá considerar-se estar intuitivamente subentendida em Dante na Divina Comédia, quando manifesta no conceito de “corrupção” introduzido por Beatriz no Paraíso, Canto VII, 124-129:
Tu dizes: “Vejo a água, vejo o fogo,
o ar e a terra e todas as misturas
chegar a corrupção e morrer logo;
e estas cousas foram criaturas;
mas, se o que é dito fora verdadeiro,
deviam ser de corrupção seguras.”
Contudo de forma oposta, no Inferno a mesma lei parece não ser aplicável, quando no Canto XXIV, 97-105, Vanni Fucci, entre outros ladrões, é atacado por serpentes e transformado em cinzas. Contudo, como Fénix renascida, o pó das cinzas logo se “espessa” voltando a criar o personagem, que assim entra num rodopio de extinções e renascimentos. Deste ciclo infernal podemos deduzir a existência dos processos reencarnatórios sucessivos durante éons de tempo, e não propriamente uma corruptela das leis da termodinâmica.
“E estando um já de nós mais perto assim,
se lançou uma serpe que o furou
onde o pescoço aos ombros tem o fim.
Nem o nem i mais cedo se traçou
que aceso ardeu e logo em cinzas todo
caindo lá, por força se tornou;
e destruído em terra deste modo,
o pó logo em seguida mais se espessa
e volta a sua forma nesse engodo”
Aliás, em todas os nove círculos do Inferno, as almas entram em ciclos eternos (ou quase eternos?) de sujeição de penas apropriadas às suas faltas terrenas. Outra forma segura de exercer a entropia noutras dimensões.
Poderíamos supor que Dante Alighieri teria conhecimentos avançados para a sua época, mantidos secretos pela sua codificação declarada ao longo de doutrinas milenárias expressas na Cabala hebraica ou por filosofias orientalistas veiculadas pelos textos védicos e dos Upanishads. A terza rima inventada pelo poeta, transporta em si própria um modelo de encadeamento fluido de narrativas recheadas de simbolismos teológicos, místicos e mitológicos, por vezes fazendo uso da numerologia (entre muitos outros, o caso relevante do “um e quinhentos dez e cinco”, Purgatório, Canto XXXIII, 43) reforçando sempre o ponto de vista da estrutura sónica rítmica das tercinas.
As relações de proximidade estabelecidas por nós entre o pensamento teológico e místico dos versos da Divina Comédia com tais doutrinas e filosofias, surgiu naturalmente e tem sido explorado por muitos que se tem debruçado sobre a interpretação dos conteúdos desta obra. Já forçoso será dizer que as relações com a Cosmologia, Astrofísica e Física modernas, construíram-se e abeiraram-se do espírito também pelas suas similaridades dos seus contextos de natureza científica por um lado e a estrutura simbólica, muitas vezes obscura, por outro, mas que se apoiam por transmutação analógica. Essencialmente trespassam toda a obra poética, sob a forma de uma portentosa simulação, o que parecem ser noções de entropia, espaço-tempo curvo, gravidade, dimensões características de campos de força quânticos, cosmologia e física.
Com Dante partilhamos hoje aquilo que nos tempos actuais a simulação é na ciência, técnica corrente utilizada por meios computacionais de alta tecnologia, que permitem criar visões passadas e futuristas.
Sobretudo a Divina Comédia é uma visão para o futuro
João Porto
Imagem de destaque: Dante Alighieri. Sandro Botticelli. Domínio Público
Bibliografia
A DIVINA COMÉDIA em quadradinhos (livro electrónico) de Dante Alighieri; adaptação de Piero e Giuseppo Bagnariol; tradução de Jorge Wanderlay, Henriqueta Lisboa, Haroldo de Campos. S. Paulo, Editora Peirópolis, 2015.
A DIVINA COMÉDIA, Dante Alighieri, Tradução de Vasco Graça Moura, Quetzal Editores, 2011.
A DOUTRINA SECRETA, Antropogénese, Volume III, Helena P. Blavatsky, Editora Pensamento, 2019.
A ORDEM DO TEMPO, Carlo Rovelli, Penguin Random House, Grupo Editorial Unipessoal, Lda, 2020.
QED – A estranha teoria da luz e da matéria, Richard Feynman, Edição revista e aumentada, Editora GRADIVA, 2021
THE BOOK OF THE TWENTY-FOUR PHILOSOPHERS, Liber XXIV philosophorum, edition minima, The Matheson Trust For the Study of Comparative Religion.