Durante o período de confinamento, alguns de vocês podem ter encontrado um conto de E. M. Forster chamado “The Machine Stops” (“A Máquina Pára”, em tradução livre), que se tornou notícia devido à sua extraordinária presciência. Escrito em 1909, cinco anos antes do evento cataclísmico que foi a Primeira Guerra Mundial, o autor descreve um mundo futuro em que as pessoas se auto-isolam, comunicam entre si por meio de ecrãs e controlam o ambiente das suas células individuais pressionando botões que lhes dão sensações realistas de som, cheiro e côr.
Tudo isso, não só apenas uma reminiscência das nossas experiências compartilhadas de confinamento, mas também de um fenómeno mais generalizado de digitalização (“a maneira pela qual muitos domínios da vida social são reestruturados em torno de comunicação digital e infraestruturas de media”), que foi meramente acelerado pela pandemia de Covid-19. Desde que começou, praticamente o mundo de todos se tornou mais digitalizado: eventos públicos, reuniões de família, cursos universitários e até jantares acontecem rotineiramente no Zoom ou em plataformas online semelhantes. Como na história de Forster, temos contacto com outras pessoas, mas não é a mesma coisa: “Vejo algo parecido contigo nesta superfície, mas não te vejo a ti. Ouço algo parecido contigo através deste telefone, mas não te ouço a ti.”

Ligação Humana. Unsplash
No entanto, mesmo antes da pandemia, este fenómeno já estava em andamento, especialmente entre os mais jovens, que passam grande parte de suas vidas nas redes sociais ou em jogos de computador, tornando-se cada vez menos hábeis na comunicação real entre humanos. Mesmo antes da internet, a televisão começou a erodir a tradição da refeição em família e, com o avanço da tecnologia, era comum que cada criança tivesse uma TV (agora um computador com conexão à internet) no seu próprio quarto.
Nos últimos anos, a digitalização começou a tornar-se cada vez mais sofisticada e complexa, principalmente com o advento da inteligência artificial (IA). As aplicações (ou “apps”) estão em todos os lugares e servem para tudo – namorar, planear viagens, transações bancárias, medir parâmetros de saúde e condição física… Muitas tornam a vida mais fácil – tudo está lá, imediatamente acessível – e potencialmente mais eficiente e lucrativa para os negócios. Existem aplicações de seguros de automóveis que analisam os danos do veículo e decidem o valor do sinistro, sem a necessidade de um avaliador em muitos casos; aplicações hospitalares estão a ser desenvolvidas para verificar os pacientes, reduzindo a pressão sobre médicos e enfermeiros para fazer suas rondas.

Contacto digital entre humanos. Unsplash
Tudo isto faz sentido, mas há pelo menos dois perigos: desumanização e perda de privacidade, bem como a segurança de dados e controlabilidade. Este último é motivo de extrema preocupação para alguns ativistas da indústria digital, como o ex-funcionário do Google chamado Tristan Harris, que apareceu no documentário de 2020 “The Social Dilemma” (“O Dilema Social”, em tradução livre). Este filme mostra como os algoritmos usados para maximizar vendas e expandir mercados podem efetivamente mudar e controlar a maneira como as pessoas pensam. As pessoas que passam muito tempo on-line podem facilmente ser atraídas para “câmaras de eco” e “bolhas”, onde só recebem informações de que gostam e com as quais concordam, acabando assim por pensar que a maneira como veem o mundo é a única maneira. Isso pode levar à polarização e potencialmente à violência contra aqueles que se atrevem a pensar de forma diferente.

Tristan Harris. Creative Commons
Outro perigo é quando os governos têm o controlo dessa tecnologia e a utilizam para controlar os seus cidadãos, algo que já começou a acontecer na China, onde o fenómeno do “crédito social” tem sido testado em diversas áreas. Alguém que não se conforme verá o seu “crédito social” diminuir e como consequência terá dificuldade em conseguir um emprego e poderá tornar-se socialmente ostracizado (outra coisa que, a propósito, acontece na história de Forster). Como em toda a tecnologia, o problema não está nela própria, mas no uso que os seres humanos lhe dão. No nosso mundo atual, em que “o dinheiro fala mais alto”, há uma falta de moralidade nestes assuntos.
Continuemos a divertir-nos e a economizar tempo com as nossas aplicações, mas não esqueçamos o aspecto humano, pois o que torna a vida na Terra um paraíso ou um inferno somos justamente nós, os seres humanos, e as escolhas que fazemos.
Julian Scott
Publicado em New Acropolis Library em 3 de Janeiro de 2021
Imagem de destaque: E. M. Forster. Domínio Público