Um dos lugares psicológicos mais comuns no mundo, tanto hoje como provavelmente em muitos outros momentos, é aquele em que se aclama ser urgente encontrar soluções para os problemas em mãos. Sob este imperativo movem-se mundos e fundos, iniciam-se guerras, destroem-se países inteiros e justificam-se acções que muitas vezes colocam em causa a dignidade humana e titubeiam junto ao abismo da insanidade. O ímpeto de aperfeiçoamento e capacidade de adaptação são próprios e naturais ao ser humano, a questão reside em saber discernir quais são os reais problemas e a raiz que os alimenta, bem como, quais as soluções válidas e verdadeiras. Por outras palavras, saber discernir o que é evolutivo e interno do que é apenas inconsequente e superficial.
Vivemos num mundo muito peculiar, onde problemas e pretensas soluções aparecem e desaparecem como fugidias nuvens, sem que por isso nada melhore dentro do ser humano e na forma como este vive a realidade.
Parece existir hoje alguma compreensão, se bem que parcial, sobre a importância da educação da criança para o futuro e para a saúde de uma sociedade. No entanto, não parece haver uma compreensão generalizada e clara sobre o que é a criança, a sua natureza profunda e o mais valoroso e legítimo contributo que pode dar ao mundo. Isto apresenta-se como um real e relevante problema, agravado pelo facto de que no modo de vida da actual civilização ocidental, apesar das muitas conquistas já realizadas neste âmbito, a criança está posicionada mais a jusante, acabando por ser receptáculo de muitas tensões e violências provenientes do mundo dos adultos que ferem e marcam a sua inocência. Desta forma, o desenvolvimento do seu potencial permanece suprimido e as suas feridas e traumas transformam-se nas disfuncionalidades do futuro.
Seguindo o pensamento de Jorge Ángel Livraga, as verdadeiras soluções têm raiz no Espírito Imutável do Homem, pois de alguma forma são válidas hoje, amanhã e sempre. A criança tem em si uma certa qualidade atemporal e universal que a distingue. As suas características fundamentais não variam com a circunstância e tampouco o seu valor enquanto reservatório de potencial humano deixará alguma vez de existir enquanto o homem for homem. Na criança está latente toda a potencialidade da sua Alma, enquanto que o adulto, no geral, já trabalha com um campo mais limitado de possibilidades.
Logo são necessárias outras ideias, que criem novas abordagens e novos espaços vitais para que aquilo que de facto é próprio do Homem se possa manifestar. É neste sentido que surge este trabalho, como um simples exercício de reflexão e aprofundamento – baseado em investigação e vivências quotidianas – que procura conhecer e interpretar a criança enquanto elemento activo e protagonista de um nascente mundo novo, que terá de, custe o que custar, revelar-se como a verdadeira solução.
O homem ao longo da vida vive fases diferentes de desenvolvimento dos seus veículos de expressão. Esta romagem, por ser de cariz evolutivo, compreende uma sucessão de mortes e renascimentos com novos elementos que se vão agregando e outros que se vão perdendo. Este contínuo processo de perdas e ganhos através do qual se vai formando o carácter, deve ser acompanhado e conscientemente conduzido, especialmente na infância quando o homem não tem a capacidade de agir conscientemente sobre si próprio.
Então, cada etapa da vida tem as suas características próprias, com os seus condicionamentos, necessidades e oportunidades. No entanto, parece haver uma dimensão mais interna e íntima no homem, com a qual é negociada constantemente a formação evolutiva do carácter, e cuja presença tinge a vida com uma sensação psicológica de continuidade e permanência face à variedade de mutações externas que sucedem. Este Homem Interno que observa silenciosamente o passar do tempo e do cortejo das formas da vida, revela-se na criança assim como o diamante bruto que poderá ser lapidado e sublimado, ou por outro lado, enlameado e subterrado pelas águas sujas da vida terrena. A presença deste mistério espiritual reside na própria identidade do homem, mas de alguma forma, assim como o sol que brilha intensamente através de uma pequena e diáfana nuvem, manifesta-se evidentemente na criança – dádiva generosa da Natureza para auxiliar o homem no seu processo de autoconhecimento.
É neste sentido que se revela a importância de dar a criança o seu espaço. O espaço que é legitimamente seu e onde as suas características inatas possam ganhar raízes dentro de si para mais tarde florescer na vida adulta.
À semelhança das quatro primeiras notas da sinfonia nº 5 de Bethoven, a criança surge como uma explosão de vida que traz em si um enorme potencial de possibilidades, através do qual desenvolver-se-ão todo os temas da vida humana. É verdade que o bebé é altamente moldável e está aberto para receber as influências do mundo, mas de alguma forma já tem dentro de si o mundo e, através de um processo de ressonância com o seu ambiente irá agregando novas camadas à sua composição psíquica.
É realmente impressionante observar e acompanhar o desenvolvimento de um pequeno ser humano. É como se o ímpeto galopante da necessidade de evolução humana se tornasse perfeitamente percetível. As conquistas são realizadas diariamente e consolidadas de forma imediata, a inteligência revela-se em decisões que nunca foram ensinadas ou transmitidas, mas brotam naturalmente das suas pequenas mãos. Adquire-se uma nova capacidade motora num espaço de alguns segundos, aprende-se a comunicar simultaneamente em duas ou até três línguas numa questão de meses, memorizam-se nomes, caras, palavras, lugares e caminhos sem qualquer necessidade repetição. A criança cria pontos de contacto antes inexistentes entre os adultos, atrai a bondade, a generosidade, o sorriso fácil e natural e não reconhece nem valoriza as diferenças externas que fragmentam e propiciam o conflito e a violência. A criança ilumina e de uma forma passiva e extremamente subtil e nobre, domina o ambiente onde está. A criança é dona de um poder que no geral, a sociedade deixou de compreender.
Tudo isto contradiz um certo posicionamento próprio do adulto que não consegue ver na criança mais do que a sua própria projecção. O bebé ao nascer, dentro desta visão, é um ser vazio, desprovido de qualquer realidade interna e disponível para receber um software que sim, dar-lhe-á a possibilidade de compreender e agir sobre o mundo. Então, é necessário transmitir à criança o que o adulto crê ser importante para si próprio. Aqui reside um grande problema, ou seja, o não reconhecimento da inteligência e potencial próprio da criança, do seu professor interior que lhe permite agregar capacidades a um ritmo que largamente ultrapassa aquilo de que um adulto é capaz. Desta forma os pequenos tornam-se num depósito das nuances psíquicas dos adultos com quem vivem e contactam, enquanto deviam ser tomadas como uma possante fonte pura e límpida que deve ser conduzida até ao mar.
A criança não é um projecto do adulto, não é a sua possibilidade de redenção face aos incumprimentos e frustrações de quem as educa, e tampouco é o reduto no qual se deve procurar conforto emocional em troca da satisfação de todos os seus caprichos e desejos. A procura por compreender e verdadeiramente fazer florescer a criança é um dever do adulto face à Natureza e à sua própria consciência.
Esta compreensão nasce primeiramente de uma observação atenta, amorosa e silenciosa. Neste espaço de compromisso, dedicação e dever o adulto poderá ver surgir as inúmeras qualidades humanas próprias dos mais pequenos e que lhes pertencem naturalmente.
A criança é curiosa e está constantemente interessada no ambiente que a rodeia, para ela o mundo é um lugar a ser explorado e conhecido – os seus olhos brilham com intensidade face a uma nova situação ou perante o aparecimento dos seus objectos de interesse. O ser humano nasce com uma enorme aptidão para conquistar o seu entorno, sendo que através da criança compreende-se que a sublimação da conquista é o conhecimento, já que, quando o pequeno ser pode livremente entrar em contacto e conhecer os objectos de forma saudável e harmónica, acaba por deixar de lado a necessidade de possessão.
A criança é espontaneamente criativa. Desde o momento em que conquistam algum controlo sobre os seus corpos e principalmente sobre as suas mãos, os pequenos dançam, cantam, pintam, modelam etc… Cabe ao adulto compreender este ímpeto e dar-lhes o espaço para que se possa manifestar. Uma parede ou um móvel riscado a caneta não é um sinal de desobediência ou mau comportamento, é a necessidade da criança de se expandir no seu ambiente através da criatividade. Esta criatividade deve ser conduzida e fomentada com elementos belos e harmónicos e, rapidamente a criança apontará com o seu próprio dedo e dirá – isto é bonito – enquanto que aquilo que é desarmónico espontaneamente lhe criará repulsa.
A criança utiliza a memória e a imaginação eficientemente. Já foi referida a sua grande capacidade de memorização, e acrescenta-se que se o adulto confiar no potencial infantil e refrear o seu próprio medo e necessidade de controlo, a criança rapidamente adquire confiança em si própria e não repete constantemente os mesmos erros. Por outro lado, ela trabalha activamente no mundo da imaginação, onde o invisível é real e também uma ferramenta útil para realizar experiências com cores, objectos, personagens das histórias que ouve e pessoas que conhece. Esta possibilidade de ver não só com os olhos físicos, mas de encarar a imaginação também como realidade, é importante ser mantida e nutrida, porque de alguma forma, contribuí para que mais tarde o adulto possa desenvolver uma vida interior rica e frutífera.
A mente da criança está descondicionada e não assume automaticamente caminhos mentais rígidos que a incapacitam de assimilar tudo aquilo que a circunstância tem para oferecer. Para constatar isto, basta colocar à criança algumas perguntas sobre o seu ambiente físico e imagético, e observar com admiração e surpresa a forma como relaciona elementos inesperados sem que por isso se perca a coerência com aquilo que é a sua experiência da realidade.
Mesmo antes dos dois anos de idade, a criança já começa a demonstrar uma capacidade extraordinária de poder estar concentrada na tarefa em mãos, podendo ficar horas a repetir e a experimentar com os mesmos elementos. Ela deve poder experimentar sem estar condicionada pela necessidade de concretização de objectivos que é própria do adulto, porque a criança conhece-se através do desenvolvimento das suas tarefas. Por outro lado, aquilo que faz, fá-lo com um sentido de brio e de atenção aos detalhes. Não busca a recompensa da tarefa, mas o valor presente na sua realização.
A criança tem uma consciência translúcida e pura. Ao olhar atento, são visíveis nos seus olhos os momentos em que absorve intensamente o movimento motor de um adulto, um novo objecto ou um animal diferente. A sua alma é impressionável e deve ser protegida e valorizada.
A criança é acima de tudo bondosa, e esta qualidade não lhe é imposta pela circunstância. O Bem que a criança traz ao mundo é-lhe inato, trouxe-o no coração ao nascer, como uma chama que não pode queimar, mas que ilumina de forma subtil e suave. A criança psiquicamente saudável olha com amor, está disponível para ajudar de livre vontade e a ceder quando lhe é pedido.
Todas estas qualidades devem ser observadas através de um contacto próximo, prolongado e atento com os pequenos humanos, pois estes vivem numa atmosfera especial, própria e envolvente. A criança é em essência e de uma forma misteriosa, um modelo do que o homem deve procurar conquistar e actualizar ao longo da sua vida.
O adulto e a criança estão de certa maneira polarizados, pois as formas com que cada um vive a realidade são muito distintas, são prismas completamente diferentes. Face a isto, facilmente poder-se-á instalar uma relação de oposição não resolvida e consequentemente de conflito, onde a criança torna-se uma força caótica e destrutiva e o adulto torna-se opressor, encarando-a como um fardo que o sobrecarrega e lhe retira o seu precioso tempo. É verdade que a criança exige um grande e contínuo sacrifício por parte do adulto, mas que não deve ser considerado de forma alguma um fardo. Apenas o é hoje, em alguns casos, porque vivemos num sistema altamente disfuncional e afastado das verdadeiras necessidades humanas.
Servir a criança é uma responsabilidade e um dever sagrado, é um trabalho custoso, mas que traz consigo as mais maravilhosas recompensas que apenas podem ser vivenciadas. Entenda-se que servir a criança não é a satisfação dos seus caprichos, é promover e proteger a manifestação das qualidades espirituais que nascem com o homem. A verdadeira criança, como diria Maria Montessori, é o Homem Novo que nasce para dar um novo alento e ser uma nova Esperança para o Mundo.
A possibilidade de harmonização entre o adulto e criança, poderá passar primeiramente pela aquisição do conhecimento e da experiência que permitirá ao adulto ocupar a sua legitima posição enquanto polo activo e capaz de conduzir a criança ao seu melhor desenvolvimento. No entanto, a criança não deve ser vista como um receptáculo, uma plasticina que pode ser moldada pelas forças tensionadas dos interesses egoístas da sociedade. É fácil ver que, mesmo agindo com boa intenção, o adulto pode ferir com a sua insensibilidade tornando a criança um espelho das suas próprias preocupações e ambições. Os pequenos devem ser mantidos no seu casulo onde é a própria natureza que os desenvolve e faz crescer. Cabe ao adulto conduzir e não esculpir, proteger e não forçar.
O educador nasce quando o adulto se assume como polo activo mas não como protagonista, deixando a alma da criança revelar-lhe o caminho do seu desenvolvimento; quando o adulto reconhece e respeita o valor e o potencial espiritual presente dentro de cada rebento; quando é capaz de diminuir as necessidades da sua personalidade e de não projectar as suas sombras; quando ama a criança independentemente das suas características externas; quando compreende que educar verdadeiramente implica o seu próprio autoconhecimento e transformação. O educador transforma-se através do contacto com o processo que pretende conduzir, e é assim que o peso do sacrifício é sublimado em fogo que verticaliza e une. Desta forma, adulto e criança caminham juntos e de mãos dadas, sob a beleza de uma relação harmoniosa e do olhar silencioso do verdadeiro protagonista – o Homem Interno que habita em ambos.
O educador ajuda os pequeninos a manifestar o seu potencial num mundo que desconhecem e, estes por sua vez, ajudam os mais velhos na medida em que os recordam que a natureza é essencialmente boa. A criança deve ser reconhecida na sociedade como um arauto de outro mundo, um mensageiro espiritual, um elemento renovador que vem reavivar a memória daqueles que vão acumulando as camadas espessas da vida terrena. É invariavelmente observável, como se de uma lei da natureza se tratasse, o efeito benéfico que as crianças têm sobre os adultos. A chegada de uma criança renova uma família, alegra um grupo de amigos e promove o amadurecimento das consciências que lhe são mais próximas.
Talvez fará sentido afirmar que, num Estado justo, devem existir mecanismos e espaços onde, de forma cuidada e adaptada, os adultos integrados, mesmo que não sejam educadores, possam contactar e vivenciar o ambiente próprio e especial da criança saudável.
Em modo de conclusão, é possível afirmar que o papel que a criança deve legitimamente desempenhar tem de ser resgatado e valorizado. Para isto ela tem de ser compreendida e, a compreensão da criança é também a compreensão do próprio homem. A mudança profunda de paradigmas, ou até a criação de novas civilizações tem de passar obrigatoriamente pelo contacto fértil com o mistério que reside no homem, pelo conhecimento profundo da primeira fase da vida humana.
Que ideia maravilhosa é esta, de que num mundo onde se procuram as soluções para as maleitas da humanidade apenas no que é externo e desprovido de vida, possa-se voltar a atenção para aquilo que é íntimo e puro. Num mundo onde, a competição desenfreada, a violência e a lei do mais forte governam as relações entre os povos, a solução passe por fazer regressar o nosso interesse para a mais frágil manifestação do ser humano. O valor da criança está na sua possibilidade de transformar a humanidade, de ser uma verdadeira solução, de enxugar com as suas pequenas mãos as lágrimas de sofrimento dos adultos. E desta forma, revela-se como um mistério espiritual.
Rafael Zamith Pereira
“Ama Como estrada Começa…”
Assim Nos deixou Bem patente Mário Cesariny.