No primeiro Tratado das Enéadas, Plotino esclarece o que é o ser humano, diferenciando as suas características das dos animais. Fica assinalada, desta forma, a importância do autoconhecimento como o passo primordial no caminho do conhecimento superior, na viagem da alma em busca da sabedoria, aquilo que Plotino chamaria “A Caminho do Uno“.
Vejamos o seguinte esquema onde apresentamos uma tentativa gráfica de perceber as diferentes partes do ser humano completo:
Sabemos que qualquer esquema é limitado na sua capacidade de transmitir a complexidade do pensamento de Plotino, que por sua vez reflecte a complexidade do nosso ser interior. A figura do círculo que se sobrepõe tem a finalidade de transmitir as múltiplas referências à existência composta (divisível) e não-composta (indivisa) das almas. Cada alma tem a possibilidade de entrar no corpo, dividindo-se e participando da multiplicidade dele, ou de estar fora do corpo, recuperando a sua unidade e participando da sua essência.
Existe um conjunto de “sujeitos” no ser humano, ou seja, existem múltiplos “eus” diferenciados de acordo com a dimensão interior na qual está a nossa consciência. Existe um eu que age, um eu que vive, um outro que tem emoções, outro que pensa e raciocina, e há por último o intelecto da alma, correspondente no ser humano às duas primeiras hipóstases do cosmos: a Inteligência e o Ser.
A parte animal é, segundo Plotino, responsável pelo erro e pelo pecado, uma vez que aquilo que é o ser humano propriamente dito corresponde à sua alma superior (nous), cuja aderência à Inteligência universal a faz participar na Harmonia e no Bem. A alma humana tem uma parte indivisa – o Indivíduo que não se degrada nem se corrompe – e uma parte divisível, que se projecta no interior do corpo assumindo as qualidades e defeitos que o corpo possa ter.
Daí que o corpo – com a sua alma animal – seja a raiz do erro, sempre que a alma humana superior fique obscurecida pelas paixões e instintos animais que existem dentro de nós. Por outro lado, pertence também à parte animal a possibilidade de adquirir as virtudes “cívicas”, quando conseguimos educá-la e harmonizá-la à imagem das virtudes intelectivas, próprias do eu superior humano. Vejamos algumas passagens das Enéadas, comparando-as com o esquema.
Sobre o Corpo
“Pois bem, se a alma se vale do corpo como de um instrumento, não está forçada a receber afeições do corpo, como tampouco os artesãos as afeições dos seus instrumentos.” – I 1, 3
Com simplicidade e clareza nos introduz à relação que existe entre a alma e o corpo. Se há uma obra que devemos construir na vida, devemos contruí-la através do corpo. É ele a nossa ferramenta para poder agir, utilizando as pernas nas deslocações, as mãos no trabalho, os olhos e os ouvidos na aprendizagem e a boca nos discursos. Mas a verdadeira viagem que temos que fazer,“não há que realizá-la a pé: os pés levam-nos sempre de uma terra a outra. Tampouco [numa] carruagem de cavalos ou numa embarcação, mas deves prescindir de todos esses meios e não colocar os olhos neles, e melhor que isso, como que fechando os olhos, deves trocar essa vista por outra e despertar a que todos têm mas poucos usam.” – I 6, 8
O corpo é apenas um veículo de expressão, um veículo que necessita de um condutor, um Homem Interior, como lembra Plotino do seu mestre Platão (I 1, 10). Onde está, então, esse Homem Interior? Devemos procurá-lo virando o nosso olhar para dentro, mergulhando nas nossas várias almas, cada vez mais dentro, cada vez mais alto, até que por fim atingiremos a alma das almas, a inteligência das inteligências.
Sobre a alma vegetativa: a vida do corpo
“Se o nosso eu se identificasse com a nossa faculdade vegetativa, o nosso eu estaria activo; mas de facto, o nosso eu não é essa faculdade vegetativa, o nosso eu é a actividade do intelecto.”
– I 4, 9
O princípio vegetativo é aquele que dá vida ao corpo, é o que nos coloca em actividade e que dá energia ao movimento das nossas acções. Em boa parte, segundo Plotino, o influxo desta vida vegetativa provém do Sol, tal como é afirmado aqui:
“Se, pois, o Sol e os demais astros exercem algum influxo nos seres daqui, há que pensar que o próprio Sol permanece a olhar para cima, e que se se produz algum influxo, além do calor, por transmissão de alma – de quanto há de alma vegetativa nele, em abundância – é produzido por ele do mesmo modo que o calor distribuído pelos seres que há na terra.”
– IV 4, 35
A “alma vegetativa”, então, seria melhor entendida como uma energia, uma vitalidade que alimenta os seres vivos de toda a natureza. Além disso, é também o molde que é utilizado para dar forma à matéria do nosso corpo nutrindo-o, fazendo-o crescer e reproduzir-se, ou seja, todas aquelas características próprias dos seres vivos (ver III 4, 1, onde afirma a matéria do corpo não ter vida em si mesma, mas apenas em virtude da alma vegetativa que lhe dá vida e forma). Daí que “a potência vegetativa, geradora e nutritiva não esteja ausente de nenhuma parte do corpo.” (IV 3, 23)
Sobre a alma sensitiva: mundo emocional
“Pois bem, da faculdade sensitiva da alma podemos dizer que tem percepção apenas do exterior; porque se bem que seja verdade que pode haver percepção consciente dos fenómenos que se produzem no interior do corpo, ainda neste caso a percepção das coisas externas à faculdade sensitiva são as afeições produzidas no corpo por ela mesma.” – V 3, 2
Diz-nos Plotino que a nossa alma sensitiva – a qual por vezes identifica com a parte animal que há em nós, uma vez que é semelhante à existente nos animais – permite apenas uma percepção de fenómenos externos a ela mesma. Todas as emoções sentidas por esta parte da alma, que Plotino assinala ao perguntar-se “qual será o sujeito dos prazeres e das penas, dos temores e dos atrevimentos, dos apetites, das aversões e da dor?” – tudo isto é sentido no contacto da alma com o corpo, que por sua vez está sujeito às alterações produzidas no seu entorno.
Ou seja, de acordo com as experiências com que nos deparamos, sejam elas prazerosas ou dolorosas, gerem elas medo ou atracção, movimentos e alterações são produzidos no corpo. A alma sensitiva, como que observadora do que se passa dentro do corpo, reconhece aquelas alterações e movimentos do corpo como emoções e sentimentos.
São estas as emoções com as quais construímos os vínculos com o mundo, conduzindo a nossa vida em direcção àquilo que nos possa conferir prazer, e afastando-nos daquilo que nos pode proporcionar sofrimento. Mas por detrás desta alma sensitiva, ou acima dela, ou no interior, está um Eu, um Sujeito, que é quem verdadeiramente torna consciente os sentimentos. Uma coisa é sentir, outra coisa diferente é a (auto)consciência do sentimento:
“- Mas, como é que somos ‘nós’ os que sentimos?
– Pois, porque não nos libertamos de tal animal, não obstante a presença em nós de elementos mais valiosos na formação da substância total do homem, constituída por uma multiplicidade.” – I 1, 7
Aponta-nos o Filósofo que existe a possibilidade de nos libertarmos do eu animal, de elevarmos o centro da nossa consciência de modo a perceber realidades que não tenham a sua origem no mundo sensível. Estar enredado neste mundo da sensibilidade emocional, sujeito aos seus caprichos e alterações constantes, à sua susceptibilidade em relação a tudo o que acontece à nossa volta, é aquilo que nos turva o entendimento e obscurece a razão. Esta é também a causa do mal, segundo Plotino, uma vez que“obramos mal porque cedemos às partes inferiores, do mesmo modo que, no domínio da sensação, acontece ao sentido comum ver coisas falsas em vez de se valer do juízo crítico da razão. A inteligência, no que lhe diz respeito, ou toca ou não toca. Por isso é impecável.” – I 1, 9
Ser impecável significa não poder incorrer em pecado, ou seja, não poder errar nem cometer o mal. Há dentro de nós um mundo luminoso de perfeição, de bondade e beleza, de harmonia e justiça, que é acessível intuitivamente através do intelecto ou inteligência, no seu movimento ascendente. O exercício deste movimento contemplativo é aquele que nos vai libertando as asas da alma humana das superfícies peganhentas da matéria, em cujos apegos se vê arrastada para a injustiça e o caos.
Sobre a alma humana: opinião, razão, intuição
“Os raciocínios, as opiniões e as intelecções: sobretudo
aqui está o nosso eu. Os níveis anteriores a esse são
nossos, mas nós somos precisamente o que há daí para
cima, sobrepondo-nos ao animal.” – I 1, 7
Ficam aqui definidas as três vertentes da alma humana, ou do eu humano, que surgem de acordo com a proximidade a um dos planos vizinhos. Quando a alma humana (a mente) desce e se mistura com o animal – também chamado de “vivente” – não se gera mais que uma opinião (doxa), um ponto de vista parcial e subjectivo, dependente das afeições pessoais de cada um. Neste plano estão aqueles pensamentos tingidos de desejo, obscurecidos pelas emoções.
Os raciocínios surgem quando a mente se reflecte sobre si própria (daí o termo “reflexão”), encontrando uma harmonia de conceitos, conhecida como “lógica”. É aquilo a que chamamos de recto pensamento ou recta razão. É neste nível que o ser humano encontra a sua característica mais definitória, uma vez que,“como o homem coincide com a alma racional, sempre que raciocinamos, somos “nós” quem raciocina pelo facto de que os raciocínios são actos da alma.” – I 1, 7
Quando, por outro lado, a alma se vira para cima, elevando-se em direcção à Inteligência Cósmica, o raciocínio é substituído pela contemplação, surgem as intelecções, o discernimento das ideias puras do mundo inteligível. Essa é a luz que provém do Uno e que, uma vez vertida sobre os nossos raciocínios – estando limpo e sereno o espelho da mente – se transforma em conhecimento verdadeiro.
“E em relação à Inteligência, como estamos? Não me refiro à inteligência como estado da alma que é a posse dos elementos que provêm da Inteligência, mas à Inteligência em si mesma. Pois ainda esta a temos por cima de nós.”
– I 1, 8
Há, portanto, uma diferença a ser apontada entre a Inteligência que existe no plano universal, como Hipóstase, a mente cósmica, e a inteligência que existe nos planos superiores da nossa mente. Alguns autores utilizam, em vez de inteligência, a palavra “intelecto”. Talvez a utilização de duas palavras distintas, caso se trate da Inteligência Hipóstase ou da inteligência humana, torne mais compreensível esta questão.
Uma outra palavra, além das apresentadas, poderia ser utilizada, de acordo com a afirmação de Plotino que a inteligência “ou toca ou não toca” no mundo inteligível (I 1, 8). Isto quer dizer que a visão da inteligência é uma intuição, ou seja, uma visão interior, porquanto intuição significa aquele conhecimento que se obtém sem o uso do raciocínio, mas por contacto directo. Há uma luz inteligível, verdadeiramente divina e perfeita, que paira por cima dos nossos mais elevados raciocínios, luz de ideias puras que Platão chamava Arquétipos, coeterna e consubstancial à nossa alma imortal. Isto é assim uma vez que a inteligência humana (nous) é uma e a mesma coisa que a inteligência cósmica, um raio da mesma luz, e portanto é idêntica ao seu objecto de conhecimento: a Inteligência a conhecer-se a si mesma.
A contemplação das ideias puras faz crescer na alma humana os poderes que nela estão latentes, as virtudes intelectivas ou contemplativas, das quais falaremos noutro artigo. O Sol de Beleza e Bondade nutre as sementes da sabedoria contidas na alma, desabrochando os valores humanos e fazendo crescer os ramos da árvore da sabedoria e da virtude.
A inteligência, podendo chegar intuitivamente onde os raciocínios não alcançam, ainda assim, necessita do guia da razão na progressão ascendente. Apenas quando chega ao cume da montanha interior pode abdicar da razão, no cimo da qual já não há sombra nem nuvem, já não há senão luz, quando
“te vires a ti mesmo transformado nela, então, feito já visão, confiando em ti mesmo e não tendo já necessidade do que te guiava, uma vez subido aqui acima, olha ao redor e vê. Este é, com efeito, o único olho que vê a grande Beleza (…)
Porque jamais olho algum haveria visto o sol, se não tivesse nascido parecido com o sol. Pois tampouco pode uma alma ver a Beleza sem ter-se feito bela.” – I 6, 9
Sobre o Ser ou Essência real
“E a Deus, como o possuímos? Possuímo-lo acima da
natureza inteligível e sobre a essência real (o Ser).” – I 1, 8
Chegados aqui, na triunfante ascensão teofânica do filósofo, tudo o que é inferior desaparece da consciência: desaparece o corpo e as suas sensações, desaparece a alma animal e as suas afecções, desaparece a alma humana e os seus raciocínios. Mais alto que as mais altas montanhas, acima das nuvens, acima da atmosfera da Terra, mergulha-se o olho da inteligência no espaço infinito e sem limites, na essência das essências, no mistério dos mistérios, no centro de todos os centros, o único Ser, o Bem em si mesmo: DEUS.