“Ainda tenho que comunicar-te algo mais importante e mais necessário que é, por sua vez,
o que mais me agrada e o que mais desejo:
ensinar-te a coisa mais sublime que eu alcancei,
ou seja, a descrição do fim ao qual chega a natureza humana
percorrendo aquele caminho”.
Estas palavras, belas e profundas, foram escritas por Avempace, um dos sábios que mais influenciaram as linhas e direções do pensamento islâmico, primeiro no século XI, e depois durante toda a Idade Média; sendo citação obrigatória e repetida por Ibn Tofail (1105 – 1185), Ibn Rush (1126-1198 d.C., mais conhecido no Ocidente como Averroes), Maimónides (1135-1204); e depois por Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino. É, portanto, um dos pilares ideológicos do primeiro milénio da filosofia islâmica.
Nesta citação da “Carta do Adeus”, o autor indica um caminho, o da Sabedoria e um sistema de vida, o do Solitário; que correspondem à alusão platónica do caminho que faz a alma desde as sombras das opiniões, assentes no frágil e caótico mundo das sensações; até à pura luz do Conhecimento Perfeito, fora da escravidão da caverna que é o mundo objetivo.
Este Caminho é o da Filosofia no seu sentido clássico de “Amor à Sabedoria” e o da Iniciação ou renascimento espiritual da alma psíquica em comunhão com o Espírito, chama não criada, fonte e causa última de todo o conhecimento e virtude.
Miguel Asin Palácios, o grande arabista da língua hispana, comentando este parágrafo diz que se trata do método para conseguir a união do intelecto agente e do homem; isto é, o desenvolvimento do Fogo Mental que faz do homem a encarnação de um Deus, um Arquétipo, uma Forma Pura na Mente Divina (usando a linguagem aristotélica de Ibn Bajja).
Abu Bakr Ibn Muhammad Ibn Yahia Ibn al-Saig Bajja, conhecido simplesmente como Ibn Bajja ou melhor, com o seu nome latino de Avempace, nasceu de acordo com alguns (a maioria) em Saragoça, Alguns dizem que, em Córdova; e outros, apontando o patronímico Ibn Bajja (Beja) nestas nossas terras lusitanas e Portucalenses.
O ano? Pouco se sabe, embora se considere provável que seja entre 1085 e 1090. O nome al-Saig indica que a sua família era ourives e, talvez, ele mesmo tenha aprendido, desde criança, este ofício tão aparentado com a Alquimia.
Durante o último quarto do século X, o governo do amerita Almansur bil-Lah (o Vitorioso por Deus), mais conhecido como Almançor – um governo justo, equitativo e poderoso, imaculado – foi o canto do cisne do califado omíada. Depois da sua morte e da do seu filho (recordemos que governavam em nome da dinastia omíada), uma guerra civil despedaçou as terras do al-Andalus e começa o período instável dos reinos Taifa. O cordovês Ibn Hazm viveu este tempo crítico e turbulento; e relata algumas das suas impressões no “Colar da Pomba”, tratado sobre o amor de grande erudição e doçura.
Al-Mundir, da estirpe dos tuyibíes foi o primeiro a proclamar a sua independência em Saragoça, no ano de 1018, e ali governaria até 1038, quando foi removido (violenta remoção!) pelo clã dos Banu Hud. Os amiríes estabeleceram-se e fizeram-se senhores do reino de Valência, os Abaditas em Sevilha, os yahwaríes em Córdova, e assim uma vintena mais de reinos cuja independência e fragilidade, portanto, permitiria o avanço das tropas cristãs, no norte, e dos exaltados almorávidas a partir das terras de Marraquexe, setenta anos depois.
Neste período, e antes que chegassem, como um vento do deserto, as legiões almorávidas, lideradas por Yusuf (famoso por combater o Cid Campeador), a cultura floresceu como um jardim encantado.
Por volta do ano 1100, encontramos Ibn Bajja em Saragoça, antiga Marca Superior, terra limítrofe do al-Andalus. O rei- Mutamin, e em geral a família dos hudíes, de origem árabe, promoveram artes e ciências e também a filosofia, que é a grande arquitrave e frontispício que as enlaça e justifica.
Cinquenta anos antes, encontramos também em Saragoça Ibn Gabirol (1020-1058), o grande filósofo e poeta da Árvore da Vida, que na sua obra Kether-Malkuth, nos comove intimamente com um hino à Divindade desconhecida e sem nome; um sublime canto, tão longe do sectarismo e rigidez das ortodoxias religiosas como o é o fogo do gelo. Recordemos os versos imortais deste poeta judaico, o Avicebrón de escolástica Medieval, que possivelmente serviram de fonte de inspiração ao nosso filósofo:
Tu és o Uno, o princípio de todo o cômputo
E a base de todo o edifício.
Tu és o Uno, e no mistério da tua Unidade,
A razão dos sábios se confunde
Pois não conhecem nada sobre isso.
Tu és o Uno, e não diminui ou cresce a tua unidade;
Em ti não há nenhum défice ou excesso.
Tu és o Uno. Mas não como o uno de uma coisa
Que se adquire ou conta.
Pois é inconcebível em Ti a multiplicação ou a mudança.
Tu és Uno sem definição, sem perífrases.
Tu és Uno. Mas ao tentar estabelecer em Ti
Um limite ou uma determinação,
O entendimento desanima-se.
Assim que direi, eu me observarei
Para não cometer nenhum erro na linguagem.
Tu és Uno. Tua sublimidade e tua Transcendência
Não podem ser diminuídas ou rebaixadas.
Por acaso pode o Uno decair?
Nestas mesmas alturas, em Saragoça, o médico al-Kirmani dá a conhecer, por entre as almas mais selectas da cidade, as 52 cartas ou escritos esotéricos, chamados agora “Enciclopédia dos Irmãos da Pureza” (Ikwan al-Safa), todo um corpus de conhecimento iniciático, que combina a filosofia platónica, a matemática pitagórica, a astrologia dos caldeus e uma sábia interpretação, mais além da letra morta, do Corão. Esta fraternidade de natureza Ismaelita proclama também uma responsabilidade ativa para estabelecer um reinado de justiça na terra, sob a inspiração, a sabedoria, o amparo e o poder de um Imã oculto. Estamos, desde logo, perante uma Fraternidade Cavalheiresca Iniciática que serviria o Rei do Mundo e cujo ideal de vida e civilização seria muito semelhante ao dos Templários, e fundamentariam também toda a mística dos Assassine e o Velho da Montanha, na sua fortaleza de Alamut.
Esta “Doutrina Secreta do Islão” foi, quase certamente, conhecida por Ibn Bajja; porque na sua grandeza de conhecimento e no seu exemplo de vida descobrimos um Iniciado nos Mistérios. Pois são eles, os Iniciados, e não outros, as forças ocultas que fazem marchar a História em direção a um Ideal de Justiça e de Concórdia; ao reencontro harmonioso e frutífero de todos os seres humanos, numa união divina com a natureza.
A cultura é a flor aberta da alma humana, que assim perpetua o seu aroma e cor no mundo. A civilização é a cristalização poderosa e duradoura dessa cultura, é a pirâmide, que nascida da vontade e da necessidade histórica eleva ao céu como uma oração de trabalho e concórdia, de força e união, o esforço humano. Ambas, cultura e civilização são filhas do tempo, com as limitações e condições em que nasce tudo aquilo que deve morrer. No entanto, ambas, cultura e civilização, filhas, como sabemos, do tempo, deixam no seu seio uma semente ou uma pegada de permanência, tal é a natureza divina da alma humana!
Ambas, cultura e civilização, nascem da terra e elevam-se ao Céu (como uma flor de lótus, a cultura; como uma fortaleza, a civilização), ante um forte apelo, musical e inescapável. É Deus quem pulsa as cordas da História e da consciência humana, fazendo nascer tão belas criações? Chamemos-lhe Deus, Bem, Logos, Vontade-Amor-Inteligência Universal, Espírito e Alma da Natureza, ou, como fazia Paracelso, o íman que magnetiza toda a vida; o que importa? É a chamada do desconhecido e sem limites quem os toltecas chamaram “Noite e Vento” e os egípcios Ammon.
Portanto, tanto a cultura como a civilização dependem e subsistem em virtude de uma seiva mística, de uma chama espiritual, alentada pelas Escolas de Mistérios e pelas almas heróicas de todos os tempos.
Juntando as poucas peças que dispomos do puzzle histórico de al-Andalus, ou melhor, de Saragoça, no início do século XII, encontramos factos interessantes que assinalam um rio oculto de mística e conhecimento. No ano 1100, aproximadamente, o Sufi Ibn al-Arif, de Almeria, ensina em Saragoça a jovens aspirantes aos Mistérios. Entre eles devia encontrar-se, sem dúvida, Ibn Bajja, que com não mais de vinte anos, beberia, embriagado, os seus ensinamentos. Este sábio e místico, Ibn al-Arif, fundou uma escola esotérica em Almería, e amigo ou discípulo dele foi Ibn Qasi, o rei filósofo e mago dos Algarves, que se proclamou Mahdi (Enviado de Deus) e governou a partir do castelo de Mértola, na chamada “revolta dos Muridinos”. Discípulo dos discípulos deste último, encontramos a figura imponente e amável de Ibn Arabi (1165-1240), a tocha mística do Islão. Sábio que, segundo alguns historiadores, viajou até à cidade de Lisboa seguindo as pegadas de Ibn Qasi. Para saber, ou melhor, para imaginar o estado em que se encontrava a alma de Ibn Arabi, meditemos sobre as revelações sinceras que fez no seu livro Futuwah:
O meu coração tornou-se capaz de assumir todas as formas.
É prado de gazelas e convento de monges cristãos:
Templo de ídolos, Kaaba dos peregrinos,
Tábuas da lei judaica e o livro do Corão
Eu vivo na religião do amor, onde quer que se dirijam
As suas cavalgaduras, aí está a minha religião e a minha fé.
Ibn Bajja apresenta-se como um filósofo; mas ao modo pré-socrático, manifestando um amplo saber em todas as ciências e artes.
Alma educada e dúctil, assombrosos eram os seus dotes musicais, tanto na canção como na interpretação, compondo obras ou dissertando sobre os próprios fundamentos teóricos da música. Recordemos Platão quando afirmava que a música é a expressão sensível da filosofia. Ibn Bajja escreveu, por exemplo, um extenso tratado intitulado “Sobre as Melodias Musicais”, infelizmente, hoje perdido. Compôs também um comentário sobre a música de al-Farabi, também hoje perdido, do qual se disse que fazia inúteis todas as obras anteriormente escritas sobre este assunto.
Inspirado e fecundo poeta, poucos dos seus versos chegaram até aos nossos dias. Alguns arabistas consideram que a ele se deve a forma lírica zéjel, fusão da poesia árabe clássica com os ritmos e melodias de canções cristãs.
Dos seus escritos sobre a Natureza, apenas chegou até nós um manuscrito que comenta a Física de Aristóteles e uma carta ao seu amigo Ibn Hasdai. Fundamenta-se no Timeu de Platão, nos Comentários de Alexandre de Afrodisia (século III) e nas ideias neoplatónicas de Juan Filipón (século VI).
Como botânico elaborou um “Livro de Experiências”, que completou o “Livro sobre os Medicamentos Simples” do Toledense Ibn Wafid (que morreu em 1075), o Abenguefiz dos eruditos farmacêuticos medievais. Mas desta obra, perdida, infelizmente, apenas conhecemos numerosas citações. E ainda que ali onde esteve, exerceu como médico, baseando-se num profundo conhecimento das propriedades curativas das plantas, e escreveu comentários às obras de Galeno, Hipócrates e al-Razi, embora pouco saibamos sobre essas obras. O seu livro Sobre as plantas também perdido, influenciou o tratado De vegetalibus de Alberto Magnus. Só se conservam dois pequenos tratados, Discurso de alguns livros sobre plantas e Sobre o nenúfar.
Como astrónomo escreveu um pequeno tratado sobre geometria e astronomia, utilizando o modelo de esferas excêntricas de Ptolomeu. Recordemos que para a cultura islâmica, tão universalista neste tempo, a Astronomia era o saber por excelência (só inferior à Filosofia, Ciência da alma), saber que era o fundamento da alquimia, da botânica e da astrologia. E que os árabes foram magistrais astrólogos. Valha, como exemplo, a seguinte anedota, relacionada com o califa omíada Abderrahmán III. Consultado um astrólogo, a título experimental, para que lhe dissesse o dia e hora, por qual das portas do salão do trono iria sair; o astrólogo, depois de fazer cálculos precisos, deu-lhe a resposta num documento lacrado. No dia e hora designadas Abderrahmán ordenou, como tinha planeado, abrir uma nova porta no salão, derrubando o muro. E qual foi a sua surpresa quando descobriu que tal ação tinha sido prevista pelo astrólogo. Os sábios astrólogos árabes especializaram-se numa forma muito prática, chamada de astrologia horária, que era de consulta obrigatória para reis e generais.
Ibn Bajja foi também um mestre da arte política e dedicou reflexões importantes sobre esta disciplina fundamental que é uma ciência e uma arte; e que este sábio relacionou com a práxis da filosofia.
Qual seria o seu saber e presença, que em 1110 foi proclamado vizir de Saragoça pelo rei Almorávida Ibn Tifilwit. Durante o vizirato foi encarregado de uma embaixada ao rei deposto Hudi que, na época, ainda conservava a sua independência em Ruta (Rueda de Jalon). Este último declarou-o um traidor e fê-lo prisioneiro durante vários meses. Depois de ter sido libertado Ibn Bajja não retornou a Saragoça – ignoramos os motivos – mas sim para Valência, onde tomou conhecimento da morte do rei Ibn Tifilwit (1117). Em Dezembro de 1118, as tropas cristãs, comandadas por D. Afonso o Batalhador entram em Saragoça. O nosso filósofo dirigiu-se para o oeste de Espanha, mas foi capturado e preso em Játiva pelo almorávida Ibrahim b. Yusuf, acusado (como não?) de heresia. Libertado, possivelmente graças à influência do célebre Qadi Ibn Rush (o avô de Averroes) dirige-se para Almeria, Granada e Sevilha (onde o encontramos em 1135). No mês de Maio de 1139, morrerá em Fez, possivelmente envenenado.
No que diz respeito à política, são os virtuosos, diz Ibn Bajja, os que devem assumir as responsabilidades históricas, o peso do mundo. E os governantes perfeitos, à maneira platónica, serão, unicamente aqueles que tenham conquistado a verdade; aqueles que tenham saído da caverna da ignorância e do egoísmo. Eles, porque se sustêm a si mesmos, podem suster o mundo e podem guiar aqueles que conduzem a História até um horizonte de Luz.
“Sabe, para além disso, que o homem que consegue alcançar este último grau, encontra-se já num estado em que nem a natureza física o combate nem a alma bestial lhe faz guerra. Mas, o conhecimento deste estado, no qual atinge a libertação destes dois assaltantes, quero dizer, da natureza e da alma bestial; é o conhecimento de um estado que não pode revelar, exceto naquilo que eu disse, pois é um estado inefável que vai mais além da linguagem humana pela sua grandeza, pela sua beleza e ainda pelo deleite que produz”.
Das quarenta obras, aproximadamente, que lhe são atribuídas, conservaram-se frequentes comentários aos tratados de lógica de al-Farabi, e é claro que, para ser vizir, teve que conhecer as Leis, a arte militar, a economia, etc., etc.
O caminho e a vida de pessoas como Ibn Bajja é uma vida e um caminho que não fere a terra e sim, deixa atrás de si um rastro de luz e frutos de beleza e bondade. Benditos aqueles que se aproximam dos sábios, quando libam das suas palavras a seiva da vida! Embora a verdadeira união e o verdadeiro encontro não seja neste cenário limitado e mascarado dos sentidos; mas no âmbito das almas. Isto diz, ternamente, ao seu amigo Ibn Abde Alazis, ministro das Finanças de Sevilha dos Almorávidas, a quem dirige a sua Carta do Adeus:
Pois bem. Sobre como, onde e quando eu me encontrarei contigo, se me vejo privado da morte deste corpo com o qual me movo, vou dizer o seguinte: os atos humanos só se diferenciam uns dos outros na sua moralidade, pelas intenções ou fins. Assim, por exemplo, o devoto sincero e o hipócrita realizam ambos um ato exatamente igual, sem outra diferença que não esta: o fim do devoto é fazer-se grato a Deus enquanto que o fim do hipócrita é conseguir que as pessoas acreditem que ele é um devoto sincero. Assim, o ato dum é a virtude e do outro o pecado. Isto mesmo é transparente em todos os atos humanos, por pouco que se observem. Agora, o encontro é um ato humano que às vezes ocorre per accidens, como por exemplo, quando Zaide encontra Amr no caminho sem se ter proposto a isso; mas não é este o encontro que agora estão a tentar procurar. Pode também acontecer que Zaide o tenha proposto com antecedência e se tenha colocado em marcha para consegui-lo. Se assim for, o fim a que Zaide se propôs foi simplesmente deleitar-se com o encontro com Amr – e este será um encontro de natureza animal, uma vez que as bestas participam em comum com o homem neste tipo de encontros – ou procuram um encontro para que qualquer um daqueles que se encontram retire dele um proveito; e este será o encontro desiderativo. Pode ser também que o encontro seja procurado por ambas as partes, a fim de se ajudarem mutuamente a alcançar um bem comum; e este é um encontro próprio dos homens na sociedade política. E o encontro pode ser, por fim, para ensinar e aprender; e este é o encontro intelectual porque se realiza com o entendimento especulativo e teórico. Mas como o conhecimento teórico é de várias classes, também será de várias classes este encontro. O encontro metafísico ou divino, será pois o que tem por objetivo adquirir ou comunicar este ramo da ciência especulativa, razão pela qual é o mais nobre ou sublime de todas as classes de encontro.
Este encontro é, portanto, um meio enquanto a comunicação desta ciência, isto é, o seu ensinamento ou a sua aquisição (a aprendizagem) constituem um fim. Ora bem, uma vez que se alcançam os fins, sobram os meios. Assim, quando este conhecimento seja em ato, o encontro será supérfluo e desnecessário. Contenta-te, pois, em procurar o encontro mais longínquo se por ventura não se possa realizar o encontro corpóreo, uma vez que eu tenha perdido o corpo e não possa por isso mover-me, dado que todo o móbil está dotado de corpo e é, por isso, divisível. Dedica-te, então, a procurar esta espécie de encontro à distância, estudando a ciência especulativa. De modo que sempre que queiras encontrar-te comigo e aqueles que viveram antes de mim, como eu os encontrei, e encontrares tu mais tarde com aqueles que vieram para a vida depois de ti no tempo futuro, consagra-te inteiramente a este grau de ciência e nela encontrarás os teus antepassados em quem Deus se comprazeu, como eles se comprazeram com ele. Essa será a maior vitória.
Esta Carta do Adeus é uma das suas poucas obras íntegra que ainda conservamos, estando dirigida a uma figura pública de Sevilha é fácil pensar que a conheceu durante a sua estadia nesta cidade (o que, desde logo, não é garantido), pois ele já estaria em Fez ou a caminho desta cidade, onde iria encontrar a morte. Dada a natureza e a sabedoria de Ibn Bajja, e o título, tão claro, de Carta do Adeus, quem sabe já teria previsto a chegada deste mensageiro do destino que é a morte.
Nesta Carta desenvolve vários temas em relação com o caminho da filosofia, a senda para os invisíveis e reais arquétipos. A linguagem e as estruturas conceptuais são aristotélicas, a inspiração e as ideias, platónicas e todas as imagens e ensinamentos apontam para uma mística de conhecimento. Em cada linha deste pequeno tratado é evidente a grandeza da sua alma e a penetração da sua inteligência.
Pouco depois de começar, coloca uma equação simples pela qual sabemos que a sua idade é a metade da do destinatário da carta. Diz:
Assim, pois, como talvez não volto a encontrar-te novamente e na minha alma pulsa um ardente desejo de conversar contigo sobre alguns temas gerais dos mais necessários e dignos de preocupar todos os homens; como, além disso, já percorri, do caminho da vida, o espaço que medeia entre a minha idade e a tua, oxalá seja a tua tão longa que vivas mais anos do que os que tenho eu agora…
Aqui está a expressar uma simples equação algébrica y – x = x, que se converte em y = 2x. Onde x é a idade do aluno e y a do professor, a do Mestre Ibn Bajja. E oxalá possas viver y mais. Ou seja, devem ter mais ou menos 30 e 60 anos, respetivamente. Este simples detalhe deve-nos levar a uma importante meditação. Para a filosofia islâmica, assim como para a grega e a renascentista, na verdade, para todas as civilizações antes da mecanização cartesiana do conhecimento, as fórmulas algébricas não estão mortas, mas vivas, como o está a trigonometria (onde percebemos a sabedoria arquetípica dos ângulos ou goniosofía). Não está morta a lógica aristotélica, pois expressa os modos do ser, da realidade; as estruturas mentais vibrantes, vivas que servem de base para a realidade; de acordo com o aforismo egípcio de que “o todo é Mental”. Cada ramo do conhecimento expressa um modo desta vida, laço de união que permite unir na consciência todas as disciplinas científicas. Assim, quando aprendemos, transmutamo-nos na nossa intimidade. Todo o conhecimento reflecte-se naturalmente na vida, que é a sombra da sabedoria, verdadeira vida e luz do conhecimento.
Esta dicotomia entre a realidade pensada e a realidade vivida (em última análise, a res extensa e res cogitans de Descartes), esteriliza a nossa alma, pois submerge-a numa empresa onde todos os caminhos se separam e se quebram. E como a alma, e a vida, é em essência, união e continuidade, desfaz assim, a sua imagem, na escuridão.
Toda a atividade que não faz vibrar a nossa alma mais profunda torna-se estéril e está condenada ao esquecimento e aborrecimento. O estudo da história mostra esta verdade infinitas vezes.