Feita esta digressão, voltemos à Carta de Avempace:
Esta obra complementa muito bem uma outra, mais definitiva, que é “O Regime do Solitário” e este último serviria de inspiração a Ibn Tofail para escrever o “Filósofo autodidata” ou “O Filho do Vigilante”, obra de carácter simbólico que encontrou uma adaptação vulgarizada, mas bem-sucedida em “Robinson Crusoe”.
Em geral, exceto para os especialistas, a linguagem aristotélica é muito pesada e difícil de seguir. Além disso, segundo Blavatsky, esta linguagem, carente de poesia, não tem asas que se abram perante os ventos espirituais que são mensagens do Céu. Esta linguagem tão mental e linear impediu que a sabedoria platónica iluminasse com mais sentido e beleza o crepúsculo da civilização clássica. Foi, infelizmente, a linguagem que adotaram al-Farabi, Avicena, Ibn Tofail e muitos outros filósofos árabes e, depois, toda a Escolástica Medieval.
Tentemos retirar alguns dos ensinamentos desta Carta do Adeus – não está, pois, também dirigida para nós, às nossas esperanças? – adaptando a linguagem aristotélica a modos e ritmos mais actuais.
Começa por refletir sobre o móbil, o motor, o ente e a potência, no sentido, claro está, Aristotélico. São definições necessárias, diz, para descobrir onde ocorre o encontro com a própria alma e como consegui-lo. Antecipando-se à física quântica diz que “todo o móbil é divisível, e se não se divide, tão-pouco se pode mover”, pelo que todo o móbil ou é um corpo material, ou a potência que reside no dito corpo.
Refere-se, em seguida, ao “cálido natural” e diz que é o primeiro móbil. Aqui refere, sem dúvida, o “fogo” presente na natureza, a eletricidade, a íntima agitação que provoca todos os outros movimentos e transformações nesta natureza[1] viva. Esse impulso que agita, desde o interior do átomo como o faz no Universo inteiro. Um conceito que a Alquimia do século XX chamou de Eletricidade e Magnetismo Universal e que na Índia Védica foi chamado de Fohat, ou Agni; o Fiat do Génesis bíblico, o raio sobre as águas das cosmogonias védicas, o “primeiro impulso”, que é o veículo ou corpo do Pensamento Divino. Do mesmo modo que quando pensamos, o pensamento que é uma vibração mental, corporiza-se num impulso elétrico – no cérebro – que é o seu mensageiro e instrumento; este Movimento, na natureza, é a base ou suporte de todo o processo e existe per se enquanto exista a cadeia de causas e efeitos que faz girar o mundo. Na verdade, esta “eletricidade” é que liga a causa e o efeito, e também quem os produz, para encarnar, no tempo – que segundo Platão é “um número em movimento” – e no tecido das condições, uma verdade que está além do tempo e que é incondicional. Os textos tibetanos dizem: Fohat (este “fogo primeiro”) é o corcel e o pensamento divino é o cavaleiro. Avempace diz a mesma coisa: O cálido natural é o móbil primeiro e o motor primeiro é a sua forma. E depois o Homem primeiro é por isso, o motor primeiro. Aqui, o Homem primeiro é o equivalente ao Pensamento Divino, o Adam Kadmon cabalístico, o Homem Celeste dos textos herméticos, ou Sophia Achamoth dos gnósticos. Ele também diz: O animal, per prius e na verdade é isso: o que é verdadeiro e falso. Mas não nos deixemos enganar pelas palavras: animal significa a alma da natureza e também do homem, que segundo Platão no Timeu está feita do Uno e do Outro, do Um e do Dois, do ser e da circunstância, da vida e da morte, do real e do irreal, do que é verdadeiro e do que não o sendo, nunca é, foi, nem será.
“Passei uma jornada em Córdova, na casa de Abu al-Walid Ibn Rushd (Averroes), que já havia manifestado o desejo de conhecer-me pessoalmente. Aparentemente, tinham-lhe falado sobre certas revelações recebidas por mim durante o meu retiro espiritual, o que lhe despertou a sua curiosidade e admiração. Assim, o meu pai, que era seu amigo, levou-me sob o pretexto de que necessitaria resolver alguns negócios em Córdova.
Naquela época, eu ainda era um jovem imberbe. Ao entrar na sua casa, o filósofo levantou-se para me receber com grandes sinais de amizade e afeto e beijou-me. Então disse-me: Sim? E eu respondi: Sim. Mostrou alegria ao ver que o compreendi. Ao observar o motivo do seu júbilo, disse-lhe: Não. Então Ibn Rushd ficou surpreendido, pálido e poderia dizer-se que duvidava de si mesmo. Em seguida, fez-me a seguinte pergunta: Que resposta encontraste para as questões da revelação e da graça divina? Coincide a tua resposta com a que nos é dada no pensamento especulativo? E eu disse-lhe: Sim-Não, e entre o sim e o não os espíritos voam mais além da matéria e as cabeças separam-se dos corpos. Ao ouvir isto, Ibn Rushd empalideceu e inclusive tremeu e escutei os seus lábios a murmurar: Não há mais força e poder do que aquele que vem de Deus. Então, ele tinha entendido”.
Este foi o mesmo filósofo e poeta que, no seu Tratado do Amor afirma: Destrua-se o Universo, o Ser verdadeiro permanecerá lá fiel a si próprio.
A Alma do Mundo, que estabelece toda a pirâmide da natureza desde o primeiro motor, entrelaça (se é que isto é possível) o Sim do Pensamento Divino com o Não da Matéria Primordial[2].
Fohat, este fogo, é também a faísca que salta entre os dois extremos do “condensador” ou acumulador de carga que é toda a natureza, neste circuito elétrico que é a vida. Daí que este ensinamento de Ibn Arabi seja tão revelador e permita entender a verdadeira dimensão do conhecimento de Avempace, que identifica, como a filosofia hindu, este Fogo ou motor primeiro da alma, com o EU[3], com a letra alef e, portanto, com o número 1, que é, de acordo com Ibn Asside, no seu Tratado dos Cercos, a potência implícita em todos os números e, portanto, a unidade ativa ou o poder que vivifica toda a natureza: O homem, como os outros animais, é composto daquele motor primeiro que a gramática árabe expressa com o prefixo alef com que digo Eu.
De acordo com o ensinamento Samkhya das três gunas ou qualidades da natureza, divide Avempace os seres humanos em três tipos: Aqueles (rajas-ação excessiva, cega, fora da medida) que consomem a sua personalidade, sem nenhum critério, no fogo da vida. Vemos assim o que acontece, por exemplo, àqueles que se precipitam a si mesmos nos perigos e àqueles que se entregam totalmente aos deleites sensuais que corrompem os seus organismos. Outros que a divinizam, cuidando-a em excesso, esquecendo o uso que deve ser feito dela na vida e traindo a sua verdadeira natureza de instrumento da alma: esta é a ação tamásica ou obscura, contaminada pela inércia. Tomam muitas precauções, sem pensar em mais nada, que não seja preservar o seu corpo. Precavêm-se contra todo o perigo e tremem por qualquer coisa. Por isso não se armam com valor frente às contrariedades que lhes sucedem nem se julgam capazes de grandes esforços para chegar a cumprir nobres gestas, mas, pelo contrário, procuram apenas a tranquilidade e o maior proveito possível. E aqueles, (esta é a Reta acção da Bhagavad Gita, Satva, ou Harmonia ou Justo Meio; assim é chamada por Aristóteles, é o aureas mediocritas de Horácio), que só guardam e conservam os seus instrumentos, durante o tempo em que não precisam deles, mas gastam-nos e desprezam-nos no momento em que os vão usar, pois, ao gastá-los, não se preocupam com a ideia de saber se terão de perdê-los de vez ou conservá-los. A condição destes é a única louvável dado que ocupam o lugar intermédio entre as duas classes (…) Por isso, o autor da revelação Maomé – Deus o salve – diz que o melhor das coisas está nos seus meios-termos.
Recorda-nos Ibn Bajja que o dever é o que deve ser feito e que a ele se devem consagrar todos os nossos esforços, pois o dever é para a alma humana como o instinto é para o animal, isto é, o dever é o instinto da alma racional, sendo a razão, ratio no sentido grego de proporção, harmonia, a verdadeira natureza do ser humano.
Avempace, adiantando-se aos imperativos hipotéticos e categóricos de Kant, diz que os verdadeiros fins do ser humano “o são em si próprios, e aqueles que tratam de praticar o que devem fazer por causa desta classe de fins são os homens mais virtuosos ou excelentes”. Estes são os imperativos per se categóricos, de Kant, a base de toda a sua Ética. Se o ato conduz naturalmente ao seu próprio fim, a conduta correspondente é chamada de “retidão”, e aqueles que a praticam “retos”. Se o fim que move as nossas ações não é em si mesmo, mas um meio para conseguir o que desejamos ou proteger-nos do que tememos, se o fim não deriva da própria ação, se o fim não é de tal natureza, então o ato é uma imperfeição e vil (…) a conduta chama-se “extravio”, “frívola” e coisas semelhantes às designadas por estes nomes, por exemplo, assim o avarento se deixa dominar pelo medo da pobreza e da privação do seu bem-estar, porque tal perigo é, realmente possível; e, se é possível, quem pode garantir que não vai acontecer?
Continua Ibn Bajja nesta Carta do Adeus, referindo-se aos prazeres, dizendo que pertencem e são exclusivos da alma, uma vez que o corpo é insensível a todos os tipos de prazeres. Prazeres da alma superior, quando busca o conhecimento, e na sua união com o Intelecto Activo (o Nous dos platónicos), deleite que é de várias classes, dependendo se se dedica ao estudo de apenas uma ciência, ou a mais do que uma, ou da ciência em geral, seja como for ou seja qual for. O último prazer é propriedade exclusiva daquele que possui já filosofia, perfeição, ou está prestes a alcançá-la. Prazeres da alma escrava do corpo quando provenientes da sensualidade. E da alma vítima do egoísmo e as suas sombras noutro tipo de prazeres como o prazer do domínio, o deleite que proporcionam as honras e a glória mundanas…
Ibn Bajja aparece-nos como um verdadeiro amante da sabedoria, como um membro dessa comunidade de sábios e heróis que velam pela humanidade e sacrificam vidas, dores e esforços sem fim para que não se apague o fogo da civilização, o fogo que convoca as almas despertas. Diz:
A esta classe de pessoas que pertenço eu e tu e pertencem os nossos demais colegas, nas suas diferentes espécies, a quem conhecerás se os trouxeres à tua memória, pois não nos move a qualquer um de nós outro estímulo que não aquele de buscar o deleite do verdadeiro conhecimento; e ao estudar a ciência, não nos move tampouco outro estímulo que não o ardente desejo de adquiri-la. Porque da nobreza da nossa profissão de estudiosos, superior a todas as demais ocupações humanas, não conhecemos outra razão nem motivos senão este facto, a saber: que todos os homens reconhecem que a ciência é a mais excelente das coisas humanas e que os homens de maior mérito reconhecerão que a verdadeira ciência constitui a verdadeira fortuna e nobreza.
Podemos chamar Filosofia a uma disciplina de conhecimento que não é capaz de dar asas à alma humana e fazer que se eleve acima da sua condição animal e de uma mediocridade, sem horizontes, labiríntica? Não, não é esta a verdadeira Filosofia, nem sequer uma disciplina do saber, já que a verdadeira Filosofia é a própria condição divina da alma humana, e se tivermos que nos referir à disciplina, é aquela que permite que esta natureza, em potência, germine e se desenvolva num poderoso ato, a ciência que permite elevar-se da escuridão para a luz, da ignorância ao saber, da morte à vida sem fim, tal como cantam os Upanishads védicos. Este é o entusiasmo que arrebata Ibn Bajja, e a nós com ele, quando nesta mesma Carta, diz ao seu discípulo:
Bem seja que a ciência seja útil ou seja prejudicial, ou que encontremos nela o que disseram os antigos, será sempre certo que abrigamos a esperança de chegar com ela a algo grande que não sabemos que coisa será em concreto, embora nós saibamos que não encontramos coisa com que comparar a alma com a sua grandeza nem tampouco podemos expressar a sua nobreza, majestade e formosura. Isto é assim ao ponto que alguns homens acreditam que com ela se transformam em luz e ascendem ao céu. E assim diz Ibn Alialabe “a esfera celeste que circunda o cosmos é o lugar mais digno para nós, mas o que será permanecer eternamente no centro da esfera?”
Encontramos também nesta Carta lições de profunda psicologia: o motor da alma – refere-se à psique – é sempre uma paixão, engendrada por uma imagem da fantasia e por um ato de decisão. Os sentidos não geram imagens, porque a percepção é sempre mental. Quando a mente se inclina para os sentidos, e cai sob o seu fascínio; o mundo das imagens, que é sempre interno empurra a alma para fora e para baixo; a alma dispersa-se e perde a concentração e força.
As imagens dos sentidos não são assim um verdadeiro motor, mas sim um freio para a alma humana, que se desnaturaliza quando se converte em seu escravo. No entanto, quando as imagens da fantasia são geradas porque a alma olha para dentro, o movimento da alma, o desejo e a vida que provoca nascem de uma ideia. E assim, as ideias corporizam-se, adquirem vida, e outorgam o seu dinamismo, tão peculiar, pelo qual a vontade se expressa tão livremente, sem quebrar-se ou atolar-se. Por ideia entendo a ideia verdadeira ou certa, pois o erro nas ideias nasce apenas da debilidade ou do mau funcionamento no pensar, grau que equivale nas artes a uma aprendizagem deficiente ou má dirigida. Por isso, e como ensina a psicologia budista (no Dhammapada, ou melhor, na sublime doutrina do Abidhamma), as imagens que forjamos do mundo e de nós mesmos são o motor da nossa existência:
A imagem da fantasia é o motor. Mas não se pode duvidar que o impulso apetitivo só se põe em movimento mediante alguma relação entre o desejo e o desejado. O desejo nasce, pois, de uma imagem de fantasia; mas também nasce de uma ideia. No animal irracional, não há desejo que não nasça de uma imagem fantástica e esse desejo irracional constitui o grau mais remoto do desejo. Em contrapartida, o desejo reflexivo que é o desejo atinado, é, apenas, património do homem.
A palavra “alma” que Ibn Bajja utiliza aqui é nafs, que tem – recorda-nos Asin Palacios – o sentido geral de alma e o particular de apetite sensitivo nas suas duas funções concupiscível e irascível. É o nephesh ou alento vital hebraico, que insufla Jeová na imagem de barro do homem.
Esta alma psíquica é como uma ferramenta ou um vestido multicolor para o ser humano verdadeiro. É a sombra da alma verdadeira e racional. Embora, infelizmente, antes de ser transmutada pelo fogo do espírito a única coisa que deseja é que lhe seja rendido culto como uma deusa. No mito de Eros e Psique de Apuleio, expõem-se mistérios relativos a esta alma e os trabalhos que são necessários para adquirir, de facto, uma natureza celeste nas suas bodas místicas com Eros (a Vontade, o impulso divino).
Ibn Bajja indica o carácter desta psique, em algumas linhas da sua Carta:
Abu Almaarri é quem usou a palavra “alma” para significar potência apetitiva quando diz: “Disse-me a alma: Goza-me e deseja-me. Mas eu disse-lhe, paciência e resignação, isto é o necessário”.
De seguida estabelece uma proporção, uma chave para entender a dinâmica da alma. Ao contrário dos instrumentos do carpinteiro, as virtudes morais (que são qualidades ou instrumentos da alma) aumentam em perfeição com o seu emprego porque são instrumentos anímicos.
Ele também diz que o talento superior a todos será aquele com que se adquire toda a ciência especulativa. Tu possuis esse talento superior. Não vás agora colocá-lo no lugar próprio ao talento imperfeito, porque então trabalharás para o outro e não para ti mesmo, limitando-te a empregar a tua actividade em tarefas distintas da ciência e assim, cometerás a mais abominável das injustiças porque serás injusto com a pessoa que mais deverás amar, tu mesmo; e esta injustiça será tanto mais grave quanto maior for a distância entre o baixo nível a que degradas o teu talento e o altíssimo a que perpetuamente estás destinado.
Este talento é o fogo espiritual, inteligência ou discernimento puro: A chama ou génio que arde na mente humana e se converte em luz, e permite chegar à luz ou sabedoria, que Ibn Bajja menciona como entendimento. Neste parágrafo, o filósofo alerta-nos para não desenvolvermos a inteligência espiritual para logo servir, como se fosse uma deusa, a própria psique, para aquecer o eu de desejos, ou para fortalecer este eu inferior que é sempre aquele que nos separa de nós mesmos e da realidade essencial. O desenvolvimento desta chama ou luz deve ser, diz, por si mesmo, e não como oferenda a nenhum ídolo ou estatueta psicológica do nosso século. Este é um dos significados mais profundos e simbólicos do rejeitar dos ídolos da religião Islâmica. São os ídolos que se elevam como génios no campo da nossa imaginação que é necessário rejeitar. Tudo aquilo que não existe nessa chama espiritual sem forma é apenas uma sombra, não é real, dizem os textos antigos. Ibn Bajja insiste que a sabedoria deve ser buscada por si mesma, não como um meio de nos subjugarmos frente a algo ou a alguém, porque a única coisa que pode iluminar esta luz é o próprio dever, isto é a própria senda da vida. Este é o problema de muitos métodos que desenvolvem certas qualidades internas – mais frequentemente psíquicas – na chamada literatura de auto-ajuda, mas onde estamos sempre, no centro da teia de aranha, aguardando uma aprovação. Onde está nisso, perguntaria Ibn Bajja, a verdadeira liberdade? Uma vez que nos convertemos em escravos das nossas próprias habilidades?
Continua a Carta com um estudo de deleites corpóreos e inteligíveis. Analisa a validade de qualquer coisa pela sua continuidade. Quanto mais contínua é, quanto menos sujeito à oscilação dos opostos, mais real é. Assim sucede com os deleites. Na verdade, este estudo sobre a natureza do “contínuo”, tão filosófico ontem como científico hoje (com a física Quântica e Relativista; recordemos o continuum de Einstein do Espaço-Tempo, ou, pelo contrário, a sua descontinuidade essencial (!?) e todas as manifestações-número da natureza e energia segundo a perspetiva quântica) é um estudo sobre a natureza do Tempo e dos números. De acordo com a filosofia pura, enraizada na sabedoria ancestral das antigas civilizações, a única realidade é o contínuo, e o único contínuo é o número, que podemos interpretar como Arquétipo, Princípio ou Essência, sendo todos os números, expressões da Unidade simples. Neste texto sobre “o contínuo”, Avempace estuda o Número e as distintas formas que têm os números de expressar-se na Natureza. Assim, lendo entre linhas e usando as imagens que refere como símbolos, podemos considerar, o “contínuo”, como:
- O Número-em-Si-Mesmo manifestado numa Eternidade curva, permanente.
- Uma projeção deste Número-em-Si-Mesmo num tempo mental, até ao infinito (Tempo infinito).
- Uma participação no seu ser da continuidade desse Número.
Segundo o critério de quem escreve este artigo, Avempace, assim como também fez Ibn Asside no Tratado dos Cercos, e antes, as Cosmogonias Esotéricas do Tibete, está a indicar o processo de criação-emanação da realidade em “três passos”:
- Como o Uno sem um Segundo (o Eka advaita dos textos vedantinos), que Pitágoras, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e a filosofia dos Upanishads expressaram geometricamente como um “círculo cujo centro está em todas as partes”. É figurado pela Eternidade sem limites.
- Como o Uno ilusório, representado geometricamente como um ponto, simples, sem dimensões, e por conseguinte, infinito. Figurado pelo Tempo Infinito.
- Como o movimento e a rastro deste último Uno Ilusório, que gera todas as formas da realidade, todos os Números. Figurado pelo tempo condicionado e finito, cíclico no seio de uma eternidade inalterada.
Mas este comentário é uma sombra complexa da sabedoria simples e profunda de Ibn Bajja:
Agora eu digo que o adjetivo “contínuo” é dito: primeiramente das dimensões; segundo, do movimento local ou de translação; em terceiro, do tempo. De tudo o que existe no tempo – enquanto existe no tempo – também é dito ser “contínuo” de várias maneiras: assim, daquilo que é perpétuo diz-se que é contínuo, como se diz, por exemplo, que é o movimento circular das esferas celestes; também se diz “contínuo” o que é temporal ou transitório num, somente, dos extremos da existência, como se diz, por exemplo, que é continua a felicidade dos bem-aventurados no paraíso e o suplício dos condenados no inferno (isto, evidentemente, tem um carácter simbólico) na medida em que não tem outro extremo a aparte post ou como se diz também que o não-ser do mundo foi contínuo até ao infinito antes que Deus criasse o mundo. Em suma, o que é permanente ou perene, enquanto o é – diz-se contínuo.
No entanto, como o deleite é das coisas que existem no tempo, é também de dizer “contínuo” e será contínuo quando seja numericamente um só, quer seja num tempo cujos dois extremos se desconheçam, quer seja num tempo que careça em absoluto de extremos se isto fosse possível.
Assim, no que se refere aos deleites, ele diz que o maior, o mais contínuo, permanente e sem resíduos que existe é o deleite do verdadeiro conhecimento, deleite que só “deixa de existir quando cessa no sujeito o seu estado mental”.
O conhecimento desses Números-Leis da Natureza é o conhecimento do permanente e sem alterações, fora da caverna deste mundo de sensações. Avempace refere o conhecimento das verdades da ciência, mas mais do que no sentido da atual é no sentido platónico, ou seja, não um conhecimento que deriva dos sentidos e da experiência, e que varia como variam os ventos, de acordo com as novas experiências; mas o que emana da vivência das ideias, Arquétipos ou números que “Não é possível que cessem, porque são universais e, por conseguinte, não existem no tempo e porque o conhecimento dos universais implica uma certeza que não se pode alterar com contradição alguma que se lhe oponha e só desaparece quando deixa de existir o sujeito – que é o homem – ou porque este se ausente dos universais, o que acontece com o esquecimento”.
Assim, para Avempace, a pior desgraça que pode acontecer ao ser humano é esquecer do essencial, da sua natureza, estar ausente do universal (deixar de “pertencer a todo o tempo e lugar”, como diria o filósofo Giordano Bruno), uma vez que o esquecimento é uma espécie de privação de ser ou inexistência, um ensinamento prático e sublime, muito próximo dos místicos e filósofos do Tibete para os quais a “memória é o atributo de fidelidade a nós mesmos”. De qualquer forma, segundo Avempace, o esquecimento afeta aquele que se esquece, o ser humano, mas não o Arquétipo do Homem que vive na alma, uma vez que este é o próprio conhecimento, pois este último, o sujeito primeiro é a forma ou espécie inteligível e esta é, num aspeto, sujeito mas, noutro, é a coisa entendida e por isso é intelecto e inteligível simultaneamente. Pode ser esquecido, segundo Avempace, tudo aquilo que não é o conhecimento do real, pois esta experiência, por ser autêntica, fica gravada nos arquivos da eternidade.
Mas em tudo o que não é a vivência pura das Ideias, se é possível o esquecimento, pois o objeto entendido é coisa diferente do entendimento; e como o sujeito que conhece é distinto do objeto conhecido, já é possível que aquele se despoje deste. Mas no conhecimento intuitivo ou verdadeira sabedoria existe um pacto com o real, não há separação entre o sujeito que conhece e o objeto de conhecimento. A luz da intuição não pode esquecer, ela, em si própria é consciência e recordação do que é permanente.
Avempace faz nesta Carta interessantes meditações sobre a harmonia que deve existir entre o fim e os meios, e como o fim não pode existir sem os meios, mas tampouco os meios por si só fazem o fim. Como disse Gandhi, deve haver uma harmonia entre eles, pois o fim está nos meios, dizia, como a árvore está na semente. Na natureza não há oposições dialéticas, mas uma continuidade harmónica. Aplica esta meditação às virtudes e às perfeições da alma, que de nada servem se a alma permanece na escuridão do egoísmo. A alquimia da natureza converte o carvão em diamante e o génio humano lapida o diamante para aumentar o seu brilho e beleza. Mas mais luz reflete o carvão, bruto, quando aponta para o sol, que um diamante na escuridão. O diamante e o carvão são aqui símbolos da alma e a sua opacidade e transparência a maior ou menor perfeição da mesma; mas eles são um meio, pois neste exemplo a luz – o Entendimento Agente na terminologia aristotélica – é o princípio e o fim. Na verdade, os meios enquanto de eles não derive o fim essencial, são necessariamente, e na realidade, algo inútil e vão; pelo contrário, o fim essencial não pode ser alcançado de modo algum e em nenhum caso se antes não se realiza o meio.
Mas uma vez alcançado o fim essencial, o meio torna-se supérfluo e não necessário e então o seu uso é um trabalho maior e inútil pois dado que sem o meio pode-se alcançar o fim. Expõe também, Avempace, nesta Carta, qual é a relação do homem com as riquezas e as virtudes. Quanto à nobreza que outorgam as riquezas diz que A sua nobilitação com estes bens baseia-se, apenas na opinião e no preconceito humano, não na realidade, pois entre o homem que os possui e o que sonha não há nenhuma diferença. Na verdade, o que dorme, acredita que voa, quando realmente continua deitado na sua cama sem se ter movido e grita de alegria por uma coisa que não existe. O mesmo acontece com o homem desperto com estes bens: grita de alegria por algo que na realidade não existe. O único real que existe nisto é que algumas pessoas o crêem assim, mas acreditando em tal acabam por ser também como aqueles que sofrem de pesadelos incoerentes e confusos. O sujeito não extrai de tal crença outro proveito a não ser as amostras de honra e respeito que lhe rendem aqueles que têm essa opinião.
Faz depois uma magnífica exposição, muito mais clara do que em Aristóteles, sobre as artes e virtudes poéticas, práticas e teóricas. Cada uma delas aponta para um fim que lhe é próprio, e as virtudes teóricas ou especulativas a um fim último, que é a liberdade da alma, a sua perfeição, a sua fusão com o Logos. Se não alcançam e se dirigem para este fim, podem fazer a alma ainda mais escrava. Todas estas faculdades são motoras, diretrizes, ativas; mas não são o fim último.
O objetivo da estratégia é manter a boa ordem e a justiça na sociedade para que esta possa realizar a função para a qual está apta, e a oratória é apta apenas para convencer e persuadir os outros das verdades descobertas pela sabedoria e, se esta não existisse, a oratória seria vã e inútil, a inteligência é apta apenas para que o homem, guiado por ela, realize os atos que ela dita como necessários. Todas elas, quando traem o fim, são poderosos meios que pervertem o ser humano.
Estas são as artes práticas. No que respeita às virtudes intelectuais ou teóricas, são as que fazem do ser humano aquilo que é, assim como a navalha de barbear, sem gume, não é navalha, mas um pedaço de metal, pois não serve para o fim para o qual nasceu.
Assim, no que diz respeito ao homem, disse Ibn Bajja, porque é evidente que esta visão do entendimento constitui o fim para o qual, por natureza estamos destinados; mas como isso não é possível a não ser vivendo em sociedade política, por isso os homens foram feitos mais ou menos excelentes, segundo diferentes graus e opostos (complementares) de perfeição, para que com eles a sociedade seja perfeita e assim realizar-se de facto aquele fim.
Insiste em que se deve desenvolver as virtudes da alma pela própria alma, e não para com essas virtudes servir os poderes temporários do mundo. O exemplo que usa é que em virtude do gume a navalha é o que é, pois sem gume não o seria; mas em virtude da navalha, disse, o gume torna-se servo, pois emprega-se para cortar isto e aquilo. O fim da vida é a perfeição da alma, ao serviço do espírito; e é este espírito o que ditará, e não nenhuma condicionante externa, o que se faz com esta ferramenta já perfeita. Pois devem ser as causas justas e não outras as que fazem que desembainhemos a espada da vontade, e não para servir ao melhor licitante. Isto tem muito a ver com a mística impessoal e cavalheiresca destes cavaleiros puros enamorados da noite e do infinito, que não servem aos reis, mas à justiça, em si mesma, e a inspirações e vozes divinas que sentiam no seu coração. De onde procediam estas vozes, a quem serviam, jamais revelaram, e talvez tenham que ver com o graal da tradição artúrica, e com o que nesta mesma tradição representa Parsifal.
Também revela, Avempace, os graus ou distintos tipos de alma, que se elevam como uma pirâmide até ao ponto em que se funde com o azul sem limites, símbolo do espírito puro ou Entendimento agente, um para a natureza inteira. São estes:
- Alma bestial, que foge da dor e procura o prazer, pelo que não é capaz de suportar uma só coisa dado que ela não é simples; e assim que agora lhe produz dor, amanhã lhe causará prazer, dado que a alma bestial está próxima da natureza física e por isso não permanece sempre no mesmo estado.
- A Alma racional, propriamente humana, enamorada do conhecimento e que mantém a medida dos afetos e que por estar longe da matéria, permanece num único e mesmo estado, sem que nela se exista algum contrário, exceto que é numericamente múltipla.
- Entendimento adquirido, que é o raio de Deus na alma humana, simples e perfeito, a luz mística, que dizem os filósofos da Índia, mora nas cavernas do coração, o Som primordial ou “Voz do silêncio” dos seus tratados místicos, o Eu divino, que embora projetado no cenário do mundo, não pertence a ele; o fio de Ariadne no labirinto da vida, que enrolado em forma de fuso, como o tempo, deve finalmente converter-se numa esfera perfeita; a sabedoria pura (do hadith ou comentário atribuído a Maomé), a quem lhe foi ordenado (segundo narra o próprio Avempace) que avançasse, e avançou; e depois retrocedesse, e assim o fez; a Sofia dos gnósticos, que depois de cair sob o poder do eões e dos arcontes do mundo, irá retornar com o rei; o Cristo celeste – não o humano – das Cartas de São Paulo em direção ao qual todas as almas avançam.
As palavras de Avempace sobre este último princípio são reveladoras e queremos que sirvam para fechar este pequeno estudo:
Este entendimento adquirido, como é um único e simples sob todos os aspetos e está no summum do afastamento da matéria, não é afetado pela mútua contrariedade como o afeta a natureza física; nem é afetado pelo obrar como efeito da mútua contrariedade, como acontece à alma bestial; e nem mesmo pela marca da última contrariedade [o “pecado de Adão “O estigma da natureza humana, em si mesma, que é o fruto de uma contrariedade, Céu e Terra] como afeta à alma racional porque entende os inteligíveis materiais que são numericamente múltiplos. Ele é pois, sempre um só e simples, e mantém-se num único estado, quero dizer, em puro deleite, alegria, gozo e contentamento. Ele é o sustentador de todas as coisas e Deus mostra-se satisfeito com ele na mais perfeita complacência possível.
José Carlos Fernández
Anotações
[1] Nesta mesma obra afirma que a relação que existe entre a ideia e o impulso é a mesma que existe entre o motor e o instrumento com o qual se move.
[2] Ibn Arabi assim o afirma claramente no seu Tratado do Amor: “O estado do amante é desaparecer sob o efeito de uma afirmação do Amado (…) é o próprio Deus que afirma”.
[3] Na Doutrina Secreta de H.P. Blavatsky, a autora faz referência a um ensinamento mistérico que afirma que o Eu é o fogo escondido na natureza.