Talvez nem todos conheçamos Gianluiggi Buffon, mas a grande maioria de nós conhece-o bem – embora ainda no activo, é o guarda-redes lendário da Itália, muitas vezes considerado o melhor do Mundo. Foi campeão mundial, ganhou inúmeros campeonatos, taças. Um exemplo perfeito de sucesso, um ícone moderno de realização – uma bela carreira, fama, dinheiro, títulos; e no entanto algo ia correndo mal.

É isto que nos conta o próprio Buffon numa carta que escreveu a si mesmo, publicada em Outubro de 2019 no The Players Tribune[1]. Aqui, conta-se a história de como um ser humano, no auge do sucesso externo, hasteado ao pináculo do mundo, entrou em depressão; e como conseguiu por fim vencê-la. É uma carta muito curiosa, muito interessante, bela, filosófica, pungente; é um alerta e um levantar de véu sobre a ideia de boa vida que geralmente nos acompanha. No fundo, é uma chamada de atenção para o grande engano do ideal de vida de conforto e êxito do qual todos participamos por circunstância histórica.

Antes de avançarmos para a carta em si, tomemos um tempo para reflectir sobre o próprio acto da escrever. Esta carta a si próprio é um excelente exercício filosófico. De facto, já desde a Antiguidade mais remota que se sugeria aos discípulos da escola pitagórica e estóica, por exemplo, que dedicassem uma parte do dia a reflectir sobre a sua conduta, sobre a direcção que estavam a dar à sua vida, o que deveriam ter feito melhor, etc. Em síntese, trata-se de um momento de introspecção e de constatação.

Já bem mais próximo de nós, e desta vez no mundo da música popular, encontramos algo do género em Jim Morrison, vocalista da banda The Doors. Num dos seus cadernos foi encontrado um escrito intitulado “Auto-Entrevista”, onde diz:

“Penso que a entrevista é a nova forma de arte […] É parecido com responder a perguntas na posição da testemunha. É esse lugar estranho em que se tenta agarrar o que aconteceu no passado e lembrar com honestidade o que se estava a tentar fazer. É um exercício mental crucial. Uma entrevista dá-nos muitas vezes oportunidade de confrontar o nosso espírito com questões […].

Eu estou como que preso ao jogo da arte e da literatura; os meus heróis são artistas e escritores.”

O caso de Buffon não é uma entrevista, mas tem os elementos de diálogo consigo e com o passado e, como veremos, a ideia do herói que prende a imaginação e exerce um poder magnético sobre a vida é uma parte muito importante. Aliás, toda a carta é importante, mas não terá com certeza sido o evento mediático mais assinalável do dia em que foi publicada. E nós, muitas vezes, na azáfama do mundo, ficamos enfeitiçados pela aceleração das coisas, pelas imagens, e pese embora também divulgados, outros depoimentos valiosos ficam como que soterrados pela voragem da comunicação, quando quiçá toquem exactamente nos aspectos essenciais sobre os quais seria necessário alongar-se um pouco mais – ou haverá assim algo tão mais importante do que o próprio sentido que damos à nossa vida e a quê que a dedicamos?

Passemos então à carta de Buffon a si mesmo, carta que ele, com 41 anos, dedica a ele próprio, quando tinha os seus 17. Assim começa:

“Caro Gianluigi de dezatesse anos,

escrevo-te esta carta como um homem de 41 anos que tem muita experiência, que viu tantas coisas e cometeu tantos erros. Eu tenho uma notícia boa e uma outra má para ti. A verdade é que estou aqui para te falar da tua alma.

Sim, a tua alma. É que tu tens uma, quer acredites nisto ou não.”

Que ideia tão curiosa: meu caro, tens uma alma, quer acredites nisto ou não… que tema filosófico tão interessante: as coisas são o que são, a despeito da consciência que temos delas. Quando William Harvey entendeu com clareza o sistema circulatório, já o sangue corria em nós da forma que hoje corre. O facto de não acreditarmos nisso não fará com que o sangue passe a circular de outra forma… Mais difícil de provar com o método científico, e sem saber onde Buffon foi buscar a sua certeza e sem saber o que entende exactamente por alma, a verdade é que afirma que temos uma, quer saibamos ou nos interessemos muito por isso. Este aspecto é fundamental na sua carta, pois o que se segue é o processo de como ela fenece em nós, as consequências disso e como foi possível reanimá-la neste caso concreto.

Prosseguindo, e depois de explicar alguns comportamentos típicos da juventude dos dezassete, diz-se:

“Este é o tipo de caos que trazes por dentro, sem nenhum motivo. Há como que um fogo dentro de ti que te levará a cometer erros. Naturalmente tu pensas que isto mostra aos teus companheiros que és alguém forte e livre, mas na verdade o que estás a usar é uma máscara.

Dentro de poucos dias terás três coisas muito, muito inebriantes, mas também muito, muito perigosas.

Dinheiro, fama e o trabalho dos teus sonhos.

Ora, de certeza que estarás a pensar: como podem estas coisas serem perigosas?

Bem, este é o paradoxo.”

A máscara que todos usamos, aquilo que somos, aquilo que pensamos ser, a imagem que queremos passar e a imagem que passamos aos outros. Não poucas vezes nós também confundimos as coisas que apresentam uma linha ténue, e achamos que a arrogância e a dureza são o traço de um carácter forte, que a gentileza significa nunca dizer não, que ser honesto é ser brutal e agressivo nas palavras… e quem de nós não deseja o néctar do mundo? Dinheiro, fama, o trabalho dos nossos sonhos, como diz Buffon…  e no entanto são perigosos; muito perigosos para a alma.

Não se sabe se o nosso guarda-redes também acha que o Inverno da Alma pode ser o Verão da Personalidade, e se o Inverno desta, a dificuldade no mundo, pode eventualmente ser a janela por onde entrará o Sol para acalentar o nosso Ser Interno… mas é provável que a ideia não lhe desagradaria.

Continuando, e depois de explicar que um guarda-redes não pode ter medo, a carta segue assim:

“Por outro lado, no entanto, uma pessoa sem nenhum medo pode facilmente esquecer a sua mente. Se vives a tua vida de modo niilista, pensando somente no futebol, a tua alma começará a murchar. No fim, ficarás tão deprimido que não quererás nem sequer levantar-te da cama.

Podes rir, se quiseres, mas vai-te acontecer. Vai-te acontecer no auge da tua carreira, quando terás tudo aquilo que um homem pode desejar da vida. Terás 26 anos, serás o guarda-redes da Juventus e da Seleção Nacional italiana. Terás dinheiro e respeito. As pessoas chegarão mesmo a chamar-te de Super-Homem.

Mas tu não és um Super-Herói. És só um homem como os outros todos. E a verdade é que a pressão desta profissão pode transformar-te num robot. A tua rotina pode tornar-se uma prisão. Vais ao treino, voltas para casa, vês televisão, vais dormir. Fazes o mesmo no dia seguinte. Venceste. Perdeste. Repete-se e repete-se uma e outra vez ainda.

Uma manhã, quando te levantares da cama para ires ao treino, as pernas começarão a tremer de uma forma descontrolada. Estarás tão fraco que nem sequer terás condições para conduzir o teu carro. Ao início, pensarás que é só cansaço, ou um vírus. Mas depois ficará pior. Tudo aquilo que vais querer fazer será dormir. No treino cada defesa parecerá um esforço titânico. Durante sete meses, terás dificuldade em encontrar algo de bonito na vida.

Neste momento, convém meter em pausa. Porque sei o que estás a pensar ao ler isto, com 17 anos.

Estás com certeza a dizer: ‘Como é possível? Sou uma pessoa feliz. Sou um líder nato. Se serei o guarda-redes da Juventus, a ganhar milhões, então terei que ser feliz. É impossível estar deprimido.’”

Aquilo que o Buffon menino de 17 anos se diz a si próprio é muito provavelmente aquilo que muitos de nós pensam. Tenho dinheiro, prestígio, tudo aquilo pelo qual gasto os meus minutos – portanto, só posso estar feliz. E se não estou, é exactamente porque me faltam esses mesmos elementos. Pese embora desde há milénios que de toda a parte do mundo se nos chama a atenção que isto é mentira, hoje continuamos fascinados por ideias deste tipo, que hoje talvez tenham encontrado na nossa forma civilizacional o seu expoente. Passamos de seres humanos a consumidores, o nosso bem-estar e progresso é medido pelo pib per capita – na Catedral das Amoreiras, com os seus pilares dourados, mil vitrines reluzentes prometem-nos a sensação de satisfação que logo se esvai depois da compra; mas a música toda feita de glamour que nos envolve logo nos acalma e sentimo-nos como que num filme… até chegarmos ao parque de estacionamento, onde tudo volta ao cinzento e ao trânsito.

Buffon chama de facto a atenção para o niilismo e para o perigo de não alimentarmos a nossa mente (em Platão, como em tantos outros, encontraremos de facto a necessidade de alimentar constantemente a nossa parte superior, que não é necessariamente a nossa mente). E diz: sim, podes rir disto, podes rir até bem alto, mas olha que te vai acontecer… depois de te teres mecanizado, depois de baixares a tua consciência ao nível do quotidiano que se segue sem mais nada além da sobrevivência e da rotina, entrarás em depressão. Sim, em depressão, tu o grande, tu o magnânimo, tu que fazes as capas da imprensa e o orgulho da família.

A mecanização, o tédio, eis dois temas que também afloram bastante na poesia e na cultura popular dos últimos dois séculos. Não iremos aqui abordar como a modernidade e a industrialização desinflamaram os ânimos humanos de grandes propósitos, de como hoje cremos heróis e grandezas quase lendas dos livros de História, de como o mundo está desencantado, mas tomemos agora um tempo para olhar para alguns testemunhos da alma humana sobre estes seus estados específicos.

Capa da prova de Flores do Mal, de 1857, anotada pela mão de Charles Baudelaire. Domínio Público

Nas suas Flores do Mal, já Baudelaire iniciava o leitor ao seu spleen com a apresentação de um monstro específico… o tédio[2]:

Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,

Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,

Aos monstros ululantes e às viscosas feras,

No lodaçal de nossos vícios imortais,

 

Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo!

Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,

Da Terra, por prazer, faria um só detrito

E num bocejo imenso engoliria o mundo;

 

É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,

Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.

Tu conheces, leitor, o monstro delicado

– Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!

Daniel Balavoine, na sua canção “S.O.S de um terreste em desespero[3], clama por sua vez que não suporta o mundo mecanizado, a rotina que oprime, que fere fundo sobretudo as almas mais sensíveis:

“Gostaria de ver o mundo ao contrário

Se só por acaso fosse mais belo visto de cima […]

Eu tenho como que vontades de metamorfose

Sinto qualquer coisa que me atira para o alto

Ó grande lotaria do Universo

Eu não tirei o bom número […]

Não tenho vontade de ser um robot,

Que apanha o metro, trabalha e vai dormir […]”

O tédio, o mecânico, a rotina que também Ian Curtis imortalizou na sua Love Will Tear us Appart[4], eis os inimigos que Buffon percebeu que lhe estavam a dilacerar a alma. Como se libertou deste estado mais pesado de ânimo, eis aquilo que se segue então na carta:

“Bom, tenho que te fazer uma pergunta importante. Porquê que decidiste dedicar a tua vida ao futebol, Gigi? Lembras-te?

E, por favor, não me digas que foi só por causa do Thomas N’Kono. Tens que ir mais fundo dentro de ti. Tens que recordar cada detalhe.

Tinhas 12 anos, sim. O Campeonato do Mundo de 1990 era em Itália, pois era. O primeiro jogo foi a Argentina contra os Camarões em San Siro, foi isso.

Thomas Nkono. Creative Commons

Mas onde estavas durante o primeiro jogo? Fecha os olhos. Estavas na tua sala, absolutamente sozinho. Porquê que os teus amigos não estavam ali, como de costume? Não te consegues lembrar. A tua avó estava na cozinha, a fazer o almoço. E fazia tanto calor que naquele dia fechou todas as janelas para refrescar o quarto. Estava tudo escuro, salvo o brilho amarelo que vinha da televisão.

O que vês? Aquele nome estranho. Camarões […] há alguma coisa de mágico nos jogadores dos Camarões. Faz tanto calor debaixo deste sol de Verão, mas o guarda-redes deles veste o equipamento completo. Calças pretas e longas. Uma camisola verde com as mangas compridas, com a gola cor-de-rosa. A maneira como se move, o modo como voa lá no alto, os bigodes fantásticos. Captura o teu coração de uma forma inexplicável. […] O comentador diz que se chama Thomas N’Kono. Eis a magia.

Há um canto para a Argentina, Thomas corre entre a multidão e acerta na bola a 30 jardas de altura. Este é o momento em que tu sabes o que queres fazer da tua vida.

[…] Um minuto depois do outro, vendo o jogo, tu percebes o que queres ser. A tua vida foi escrita. […] Naquele dia nasce um fogo dentro de ti. Os Camarões existem, Thomas K’Nono existe, e tu mostrarás ao mundo que Buffon existe. Eis porquê que te tornaste um jogador de futebol. Não pelo dinheiro ou pela fama, mas pelo estilo deste homem, Thomas K’Nono. Por via da sua alma.

Só tens que te lembrar disto: dinheiro e fama não são o teu objectivo. Se não cuidas da tua alma, se não procuras inspiração fora do futebol, irás deteriorar-te. Se pudesse dar-te um conselho, seria de seres muito mais curioso para com o mundo que te rodeia enquanto ainda és jovem. Evitarás assim muita angústia para ti mesmo, mas pouparás sobretudo a tua família.”

Aquilo que se demonstra nesta passagem, uma possível leitura, é que uma das chaves para se sair do abatimento é ancorar-se no seu propósito de vida. É evidente que muitos de nós dirão que não o conhecem, sendo que no caso de Buffon o que se passou é que se havia esquecido. Havia-se esquecido de como era ter a alma inebriada de entusiasmo, de como era sentir-se plenamente vivo por um sonho, com firmeza e vigor, com vontade de se afirmar a si mesmo no mundo; não para vencer alguém, mas para ser ele próprio, para cumprir essa antiga poesia grega de Píndaro: chega a ser o que és. Hoje, não só temos que lutar contra o tédio ou a mecanização, como contra o desgaste das palavras, pois aos nossos ouvidos a palavra “sonho” já perdeu o seu sentido mais digno.

Mais uma vez bem perto de nós, em pleno século XX, contamos com o contributo da Logoterapia, de Viktor Frankl, que advoga ser o nosso eixo central o propósito de vida, o termos uma razão para existir a despeito de toda a negridão e abatimento que nos possa envolver mentalmente, das circunstâncias mais difíceis que possamos encontrar. Muitas vezes, senão sempre, a vocação profunda há-de ser o serviço aos outros. Já sabemos que haverá quem diga que Nietzsche assinalou ser o amor ao próximo um egoísmo sublimado, mas haveremos de ultrapassar a influência deste peculiar poeta-filósofo assim que percebermos que não acertou em toda a linha. Talvez Nietzsche seja sim um dos amores de juventude mais correntes, e não essa alegria de sentir a vida como algo a cumprir.

Voltando a Buffon, na sua reflexão, ele recorda como que um pacto antigo que fez, esse lampejo de certeza interior que teve quando decidiu o que seria a sua vida – recordou esse fogo que ardeu dentro dele e que o acendeu e guiou até realizar-se naquilo que haveria de se tornar ao longo dos anos. Quantos de nós não largaram os seus velhos entusiasmos como roupa velha que já não serve mais? Quantos de nós ficaram sérios e adultos, vocacionados para o horário e o pagamento correcto dos impostos? Quantos de nós não olham agora com benevolência para aqueles que ainda dizem viver para algo mais que não seja o conforto e o bem-estar, ideal tão próximo de nós que nem vemos que está por toda a parte?

Outro aspecto muito importante desta última passagem da carta: Buffon tinha um modelo, um arquétipo, um herói a seguir. É muito provável que um dos maiores mitos do nosso tempo é dizer-se que já não há mitos… esta passagem da carta mostra uma verdade que Plotino formulou há tantos e tantos séculos atrás: tornamo-nos naquilo que contemplamos. A força magnética do exemplo que nos insufla de entusiamo está então aqui bem evidente, mas parece dar-se o caso que todos aqueles que sobreviveram à poeira dos dias e que chegaram até nós de alguma forma também tinham estes modelos muito claros, iam buscar a sua inspiração a algum lado. Alexandre Magno queria ser Aquiles, César queria ser Alexandre, Napoleão queria quiçá ser os dois… Rimbaud aprendeu tanto com Baudelaire, Jim Morrison idolatrava Rimbaud… Buffon sacralizou de alguma forma Thomas K’Nono, que o influenciaria de forma indelével “por via da sua alma”.

Voltemos à carta: “Só tens que te lembrar disto: dinheiro e fama não são o teu objectivo. Se não cuidas da tua alma […] irás deteriorar-te.” Cuidar da sua alma, eis aquilo que Buffon diz ser outra das chaves para se sair da depressão. Lembrar que se pode ter fama e dinheiro, mas que isso não é o essencial – o essencial é cuidar da sua alma, saber cultivar como que o nosso jardim interior. Para que isto aconteça, é preciso quebrar a rotina, não quebrá-la com mais uma viagem a um país longínquo para ver paisagens que temos no nosso distrito, a 30 km de nós; com uma noite de álcool, com droga, com uma ida ao cinema.

Neste caso, quebrar a rotina significou para Buffon um salto de consciência e sensibilidade, um dar primazia a um apelo interno, o permitir-se entrar em contacto com um outro mundo, mais puro, mais luminoso – no seu caso, deu-se esta saída da mecanização de si através da Arte:

“No ponto mais fundo da tua depressão, uma coisa estranha e linda irá acontecer-te. Uma manhã, decidirás quebrar a rotina e ir a um outro restaurante em Turim tomar o pequeno-almoço. Farás, portanto, um caminho diferente pela cidade e passarás à frente de um museu de arte.

O cartaz lá fora dirá Chagall. Já ouviste este nome antes, mas não sabes nada de arte. Tens coisas para fazer. Deves seguir o teu caminho. Tu és o Buffon.

Mas quem é Buffon? Quem és verdadeiramente? Será que o sabes?

Esta é a parte mais importante desta carta. Tens que entrar no museu exactamente naquele dia. Será a decisão mais importante de toda a tua vida.

Se não entras naquele museu e segues em frente com a tua vida de futebolista, como um Super-Homem, então continuarás a ter todos os teus sentimentos fechados dentro de ti e a tua alma irá deteriorar-se.

Mas, se entrares, verás centenas de quadros de Chagall. […] depois verás um quadro específico que te acertará como um raio. Chama-se “O Passeio”.

O passeio, Marc Chagall. “Cortesia de www.MarcChagall.net”

 

É uma imagem quase infantil. Um homem e uma mulher estão num parque, fazem um picnic, mas tudo é mágico. A mulher está a voar pelo céu, como um anjo, e o homem está de pé no chão, dando-lhe a mão, enquanto sorri.

É como o sonho de uma criança.

Esta imagem transmitirá qualquer coisa de um outro mundo. Dar-te-á a sensação de teres voltado a ser criança, a sensação de felicidade que se encontra na simplicidade.

[…] Tens que voltar ao museu no dia seguinte. É essencial.

A mulher da bilheteira vai olhar para ti com um ar divertido. Dirá assim: “Não tinhas vindo cá só ontem?”

Não importa. Volta para dentro. Esta arte será a melhor cura para ti. Quando abrires a tua mente, o peso interior que sentes será aligeirado, como a mulher que é levantada pelo ar no quadro de Chagall.

Há uma ironia indescritível neste momento. Às vezes penso que a nossa vida já está escrita. Acontecer-te-ão coisas tão bonitas e inexplicáveis que te parecerão ligadas entre si. Esta é uma delas.”

A carta basta-se a si mesma, mas poderemos ainda salientar alguns pontos. Será que sabemos realmente quem somos? Parece que a vida já foi escrita, a cura pela Arte, o aligeirar-se pela atmosfera mágica das coisas. Ao contrário de Dorian Gray, cujo quadro se ia desfigurando ao passo que a sua alma se ia deteriorando, Buffon conseguiu o golpe de asa que o levou para uma zona mais ligeira das coisas – com a cabeça à tona do quotidiano, conseguiu respirar pela Arte. Esta é de facto uma misteriosa arte, a de saber respirar pelos dias, o saber não acabar a sua jornada a suspirar, o saber renovar-se. Há quem se renove pela poesia, com as sinfonias de Beethoven, com uma caminhada a beira-mar, com A Cidade e as Serras do Eça, ao ver de novo a Marry Poppins ou com os novos desenvolvimentos científicos, com a jardinagem, com o desporto. Cada um tem que encontrar o meio de resgatar o seu sorriso e a sua leveza, o modo de não ficar demasiado sombrio e de não deixar acumular o peso da vida dia após dia, acontecimento após acontecimento, ano após ano.

A carta a que se dedicou este artigo teria outros pontos que se poderiam ainda sublinhar, mas voltemos ao início para começarmos a encerrar: temos uma alma que precisa de ser cuidada, e o êxito do mundo, o sucesso externo não é suficiente para não cairmos verticalmente na tristeza. Há uma dimensão interna que tem que ser cuidada, que tem que ser alimentada – Buffon chama-lhe a alma, e creio que muitos dos filósofos concordariam bem com isto.

Há que se saber ser alegre, perceber o grande engano da fama e do dinheiro, o saber realmente para o que se vive. Evitar o mecânico, saber estar consciente, respirar, ser autêntico, dinâmico, vivo. Há que se evitar a atmosfera funerária que muitas vezes respiramos e cultivar a beleza, a alegria, a aventura, o risco, o sonho, pois há mais sabedoria num D.Quixote que fracassa que num Velho do Restelo que dorme a sesta ao Domingo à tarde e que acertou em tudo porque nunca mexeu em nada.

Ter um propósito, um Ideal, o saber dar-se a algo elevado, pois todos nos damos a alguma coisa seja como for. Se não conseguirmos, pelo menos que não digam de nós que não tentámos. E por isso tentemos, tentemos manter esse entusiamo, essa vontade de viver, essa tensão interior, que o filósofo Jorge Angel Livraga dizia que iluminava os rostos de alegria, que nos tornava impossíveis para o tédio e que se manifestava pelas obras concluídas e deixadas para trás.

Por isso… possa a carta de Buffon e os seus conselhos mais subtis serem de auxílio sempre que venham a ser necessários para nós e para quem nos rodeia… De resto, vamos, que a alegria é o caminho!

Antony Capitão

[1] Uma breve entrevista e o texto integral podem ser encontrados aqui: https://www.theplayerstribune.com/articles/gigi-buffon-letter-to-my-younger-self. Tradução própria a partir do italiano.

[2] Tradução retirada do documento online disponível em http://www.agr-tc.pt/bibliotecadigital/aetc/download/466/As%20Flores%20do%20Mal%20-%20Baudelaire%2C%20Charles.pdf.

[3] Podemos ouvir e ver Balavoine na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=9kZuDhuTkxE.

[4] A conhecida canção dos Joy Division começa exactamente com: “When routine bites hard and ambitions are low” (quando a rotina fere fundo e as ambições estão em baixo, tradução livre). Podemos ouvir a canção, fruto do ambiente musical da desolada Inglaterra industrial, em https://www.youtube.com/watch?v=zuuObGsB0No.