O homem, desde os tempos mais remotos que o nosso grau de pesquisa pode alcançar, fez da caça uma das suas atividades primordiais. Os grupos humanos, hoje tidos por primitivos – mas há uma possibilidade razoável de que fossem os restos degenerados de outras civilizações, que tendo cumprido o seu ciclo biológico, tivessem ficado sepultados sob o esquecimento apenas paliado pelas fontes tradicionais que nos falam de uma Atlântida ou de uma Lemúria – caçavam animais e até homens de outros grupos étnicos, para obter a imprescindível alimentação rica em proteínas e calorias que exigiam os períodos gélidos, glaciações, ou a simples sobrevivência a que obriga o instinto de conservação.
O sacrifício das minorias caçadoras, em benefício do resto da comunidade, deve ter sido difícil. Nem todas as presas eram voláteis inofensivas alcançadas por redes rusticas com pedras nas pontas, ou por esses instrumentos de dinâmica aérea misteriosa, que hoje conhecemos por “boomerang”. Também tiveram de enfrentar, sem mais armas do que varas de madeira com a ponta endurecida pelo fogo ou sujeitas a um seixo mais ou menos pontiagudo, ou com bastões e machados feitos com um pau atado com nós a uma pedra afiada nas duas extremidades de uma forma rudimentar, os peludos e enormes paquidermes, grandes felinos de dentes de sabre e pavorosas manadas de grandes veados e bovídeos.
A inteligência, fator de vitória humana desde então até hoje, permitiu-lhe cavar poços dissimulados nos caminhos de calhas, cujos fundos eram eriçados com ramos cortados como lanças e guiar as feras aterrorizadas com batedores ruidosos para áreas pantanosas ou arborizadas, onde a sua mobilidade era reduzida, oferecendo assim uma zona mais segura para as suas incipientes armas.
Uma vez mortas as presas, às vezes com o custo de várias vidas humanas, eram sangradas, arrancava-se a sua pele, a sua carne, as suas vísceras e até mesmo os ossos eram cuidadosamente separados. Tudo servia, quer fosse como alimento direto ou para confecionar roupas e tendas de campanha e cortinados pesados que detivessem o vento gelado nas entradas das grutas. Os ossos serviam múltiplos fins, desde a confeção de estatuetas religiosas talhadas, até para fazer flautas musicais ou finas pontas de dardo e anzois de pesca curvos. Com os dentes faziam-se colares decorativos e amuletos. O sangue que não se bebia usava-se para misturar com terra e fazer unções de plantas para obter tintas ou tingir as palmas das mãos para fins mágicos. Resumindo: tudo se aproveitava por necessidade real; a morte do animal não tinha sido em vão. A roda da natureza girava harmoniosamente.
A caça era então uma atividade obrigatória, rentável e viril. Dados os meios utilizados, o equilíbrio ecológico não se alterava e a prova está em que desapareceram mais espécies animais nos últimos três séculos do que nos mil precedentes. Com a agravante de que os animais extintos nas épocas pré-históricas e proto-históricas, foram-no pelo próprio esgotamento natural e mudanças no habitat e clima, e os que desapareceram ultimamente, aconteceu exclusivamente devido às consequências de ávidas caçadas desportivas do homem, desejoso de adornar as suas vaidades, ou das suas superstições sobre o suposto poder afrodisíaco dos chifres do rinoceronte, por exemplo.
Antes de se aplicar o poder expansivo dos gases provenientes da explosão da pólvora para impulsionar um ou vários projéteis – a pólvora era conhecida muitos séculos antes da sua aplicação na caça – e apesar dos homens terem sentido o diabólico gosto da caça apenas para experimentar emoções violentas ou reafirmar o seu carisma perante os outros, podemos ver isto através das gravações na pedra, metal e madeiras, assim como em representações nas folhas de papel de papiro, de arroz ou de peles e pergaminhos, fazendo uma verdadeira demonstração de valor em muitos casos, pois ao enfrentar um bando de leões famintos num simples carro puxado por dois cavalos e sem mais armas do que duas lanças e uma dezena de flechas, teve de ser uma verdadeira prova de coragem. O mesmo pode dizer-se, para não abundar em exemplos, dos que com um arpão com uma corda, num pequeno barco de madeira, arremetiam contra enormes cetáceos de trinta toneladas.
Hoje tudo mudou e o chamado desporto de caça não passa de um jogo cruel, desproporcional, inútil, contra esses irmãos menores, belos e ágeis, com surpreendentes costumes familiares e de sacrifício paternal, que são os animais. Há quem afirme que não importa matá-los nem a forma de o fazer, porque são seres irracionais que não têm alma. Investigações recentes sobre psicologia animal e normas de comportamento contradizem essas afirmações, nascidas, em geral, de uma demagogia antropocêntrica digna de juízes inquisitoriais de Galileu ou da leitura da letra morta da Bíblia. É verdade que o livro hebreu-cristão não afirma que os animais tenham alma…, mas com esse critério aplicado a outros tópicos, tampouco afirma que a Terra seja um esferoide, nem que o sangue circule pelas veias, nem a existência do continente americano. E devemos negar estas coisas evidentes porque não figuram na Bíblia?
Os animais não são coisas, nem são animados por nenhuma “coisidade”; são seres vivos e são animados de vida, de sensibilidade, de emoção e de inteligência… e até talvez uma alma… Não é por não ser como as nossas, que significa que de tudo careça. Aquele que tenha desfrutado da doce companhia de um cão, um gato, um cervo ou um pássaro, sabe disso.
Fazer um chamamento para que um pobre pato movido pelo seu instinto sexual e dos seus desejos ancestrais de formar uma casa-ninho, seja traiçoeiramente abatido por um tiro feroz, é um ato indigno. Disparar uma bala munido de uma mira telescópica, inclusivamente às vezes de tipo infravermelho, para perfurar o coração de um cervo que vai beber ao final da tarde, é um crime que de desportivo nada tem.
E o que diremos do tiro ao pombo real ou pombo vivo? Em que se mantém o pássaro fechado numa caixa, com fome e sede, de modo que quando a tampa é aberta, saia cego dando voos confusos, para então o abater com uma arma de cano duplo, isto quando não são armas repetidoras que disparam numa enxurrada de tiros que se dispersam de tal maneira que até um cego acertaria. Que prazer, que valentia pode proporcionar a um homem íntegro esse massacre traiçoeiro?
Que oportunidade tem um veado contra uma Mauser 77, com mira telescópica, capaz de disparar 5 tiros em 15 segundos, cujas balas em forma de pequenos misseis o perseguem a 500 m por segundo? Que oportunidade tem o lento pombo ante a quantidade de tiros que lançam contra ele, com espingardas de calibre 12, com cartuchos que correm a uma velocidade média de 360 m por segundo? De 40 a 42 gramas de chumbo ardente saem sob uma pressão de 1200 kg… enquanto o “heroico” caçador acolchoou convenientemente a coronha para que não cause o menor dano ao ombro, também protegido por uma jaqueta acolchoada. Que valentes! Vivam os homens endurecidos!
Alguns são tão cínicos que dizem que caçam para manter o equilíbrio ecológico e que os exemplares mais fortes sobrevivem. Se aplicássemos isso aos seres humanos, com praticamente o mesmo direito à vida que os animais, teríamos de eliminar “ecologicamente” todos os velhos e doentes. Ideia tão descabida, cruel e absurda não devia passar por nenhuma cabeça humana. E quem os fez juízes da vida e da morte daqueles habitantes inocentes dos nossos prados e florestas?
Caçar por necessidade imperiosa entre escolher morrer de fome ou matar, é lícito, como o faziam os nossos antepassados, como os próprios animais o fazem, porque nem mesmo o mais feroz de todos, salvo que esteja louco devido a alguma ferida mal curada, mata por matar.
Caçar um leão com uma lança e um par de facas, pode ser um ato estúpido, mas que alguns precisam para se autoafirmarem como homens. Mas fazê-lo de uma atalaia, com uma espingarda que dispara balas tracejantes para melhor orientar o objetivo, é um ato aberrante de maldade e loucura, uma agressão covarde e implacável.
É necessária uma nova educação que predisponha as crianças e os jovens a ter amor para com os animais, uma legislação adequada ao momento histórico em que vivemos e onde o direito de matar não se compre com dinheiro. Da mesma forma, são necessárias associações de defesa dos animais, não apenas dos domésticos, que fiscalizem e colaborem no cumprimento das leis e da proteção da fauna, a nível profissional.
Jorge Ángel Livraga
Extraído do livro Artigos Jornalísticos. Edições Nova Acrópole
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Imagem de destaque: Pintura de caça à lebre com galgo. Dean Wolstenholme, the elder. Domínio Público
Que belo artigo.
Parabéns.
Só uma alma cheia de paz e luz e um coração cheio de amor escreveria tão sábias palavras.
Os meus mais sinceros cumprimentos