É uma arte praticamente perdida. Fomos criados e educados no bulício e na alienação de uma mudança permanente, de uma caminhada perpétua sob a ameaça do aborrecimento ou das fantasias da nossa psique.

O Mundo Velho do qual todos procedemos está ainda muito agarrado a nós, com os seus hábitos vazios, as suas concessões, as suas oscilações entre formas religiosas já desprovidas de conteúdo e o materialismo bestializante.

Carecemos da capacidade de nos determos a observar ao nosso redor, que é uma das formas de nos observarmos a nós mesmos, e caminhamos, e caminhamos calcando tudo sem reflexão e sem participação real no plano da Natureza que é a manifestação do Plano do Deus que nos rege.

Também perdemos o amor pelas coisas que nos são queridas, nossas e pequenas, íntimas e próprias, que afirmam a mente e aquecem o coração.

Creio ser necessário recuperar essa arte esquecida.

Platão debaixo do braço, a “Doutrina Secreta” ao nosso alcance, uma boa biblioteca para consultas é bom… mas… será tudo?

Será que ser Filósofo é estudar, dar aulas, conferências, receber instrução sobre coisas escondidas? Sim… em parte.

É necessário viver a Realidade e para isso não bastam somente poses, abstinência ou os seus contrários. Sei que fazem falta também outras pequenas-grandes coisas.

Por isso vencendo as minhas vergonhas e inibições, quero-vos contar uma pequena experiência minha, talvez intransferível, mas ofereço-vo-la na esperança de que vos sirva de alguma coisa.

Estava há alguns meses atrás na Ilha de Maiorca, onde fui escrever o meu próximo livro e impregnar-me da velha magia do mar.

Os meus acompanhantes tinham ido fazer algumas compras necessárias para todos, mas como não havia lugar fixo para estacionar o automóvel, fiquei lá dentro, para o deslocar se fosse necessário.

Entardecia.

A multidão de turistas desfilava na minha frente pela rua principal da povoação de pescadores que, no verão, se converte em centro de férias. Da rua transversal, já escura, onde me encontrava podia tudo observar de maneira anónima, como duma outra dimensão.

Vi gente que se apressava em caminhar para a direita e outros que se cruzavam com os primeiros, caminhando para a esquerda. Automóveis, bicicletas e motorizadas transitavam como podiam entre as correntes humanas. Vi casais embebidos uns nos outros e também anciãos que partilhavam os seus vagares e talvez recordações. Algumas crianças corriam, entretidas nesses jogos que para os adultos são um enigma.

Pensei que, se a verdade estivesse nalgum lugar e à vista, todos se dirigiriam a ela na mesma direcção. Deste modo, os caminhos tomados pelas pessoas diziam-me que não era a verdade que buscavam; talvez cada um tentasse atingir a sua própria verdade, a sua aspiração ou o que quer que fosse.

Vi as primeiras estrelas caminharem também no céu e um velho veleiro imóvel no estaleiro, esperando novos rumos. Uma sensação rara apoderou-se de mim.

Creio que pude fazer Filosofia sem recordar Heráclito nem Kant.

Percebi, de algum modo, a marcha constante das coisas, dos seres, numa busca que ainda que fosse provavelmente inconsciente, não deixava de ser válida. Deus estava em todos, nos seus caminhos, nas suas esperanças e nas suas nostalgias.

Teria sido um grande erro perder a oportunidade de perceber a Deus e pior ainda o ter deixado de ser Filósofo. Porque assim pude dar-me conta destas coisas que vos conto e de outras que calo por não encontrar palavras para exprimi-las.

Senti uma grande relação com todos… Como diria Amado Nervo, todos eram de algum modo misterioso meus irmãos… Deus… eu mesmo… a Vida… o Tempo… o Espaço…

Amado Nervo, uma das figuras chave da poesia mexicana dos princípios do século XX. El Universal

Era criança e corria, jovem, e passeava enlevado e ausente, velho e arrastando os pés por ruas mil vezes percorridas, falava alemão, inglês, francês, espanhol, italiano, sueco. Estava no céu com as estrelas e ao mesmo tempo encalhado em forma de velho barco, no estaleiro.

Sei que assomei, por poucos minutos, uma grande verdade, uma certeza inamovível, uma paz e uma quietude.

Sei que fui Filósofo, para lá dos títulos, honras e livros.

Sim… nada mais que Filósofo… foi tão belo!

Por isso vos contei esta história.

E se muitos não entendem o que acima expus, não se devem preocupar. Também eu não entendo. Conto-vos simplesmente uma experiência pequena, íntima, profunda, mas que pressinto como tremendamente importante. Será ela parte dessa arte perdida de ser Filósofo em qualquer lugar e em qualquer momento?

Francamente creio que sim.

Faz uma tentativa. Não te arrependerás.