«Genius è la nostra vita, in quanto non ci appartiene»
Giorgio Agamben

«A mim, ele me ensinou tudo
Ele me ensinou a olhar para as coisas
Ele me aponta todas as cores que há nas flores
e me mostra como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas
damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo
o que nunca pensamos um no outro
vivemos juntos os dois com um acordo íntimo
como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer nós brincamos
às cinco pedrinhas no degrau da porta de casa
graves, como convém a um deus e a um poeta
como se cada pedra fosse todo o universo
e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair no chão»

Alberto Caeiro, dito por Maria Bethânia

§1. A música trabalha com potências. Toda a música. Porém, a música erudita e, nesta, sobretudo a instrumental, quase que totalmente, porque abstrai da voz e do seu fonologocentrismo. Ainda que, no caso do canto lírico, a técnica vocal que este implica seja, desde logo, já uma das formas em que a voz se deixa diluir para além do logocentrismo. A arte do canto lírico seria a do contorno do logocentrismo, na exacta medida da formação artística que expressa. Se é exacto que o canto lírico é uma arte derivada da poética como potência da alma, esta potência joga-se ela-mesma no limiar aberto pela fonética própria a essa arte. Talvez a técnica do pianíssimo de Montserrat Caballé fosse aqui absolutamente paradigmática. É nesta medida que a música devém potente.

Quando se ouve e se aprecia Maria Bethânia (MB), por exemplo, pode-se certamente considerar a sua música como potente. Porém, a potência da música erudita é de uma outra ordem, porque esta joga com níveis crescentes de abstracção na sensibilidade. Os enunciados que colocam MB como uma «força da natureza» e outros dentro do mesmo âmbito revelam justamente essa potência que é inerente à sua arte e que se joga, em muito, nos textos. «O raio de Iansã sou eu /sou eu / é vista quando há vento /e grande vaga, ela faz o ninho no rolar da fúria / e voa firme e certa, feito bala / as suas asas empresta à tempestade / ela faz da insegurança a sua força / e do risco de morrer, seu alimento / por isso, me parece imagem justa / para quem vive e canta no mau tempo». Tal quer dizer que a potência de MB joga ainda, em muito, na linguagem verbal, na medida em que joga o seu potencial de medialidade num rodopio de afecções de grande intensidade, cujo epicentro são as canções. Neste caso, em MB a música trabalha com a potência de tal maneira que a potencialidade não se joga só na música instrumental, mas no cruzamento que este tem com as canções. É verdade que MB joga no limiar dessa potência mesma, quando afirma que o seu show começa num sentimento ou ideia que é trabalhado no «texto» que o próprio show devém. É também nesse sentido, no entanto, que se poderia contemplar a «inclusão» – se esta palavra se coadunar – da poesia na sua música.

§2. MB tem a felicidade de resgatar, em português, a poeticidade mesma dos gregos. A sua arte assemelha-se com a técnica de rapsódia dos gregos. Não se tratando aqui, no entanto, de qualquer retorno ao helenismo, mas de uma técnica de composição textual de que a semiótica literária (Kristeva, 1969: 83-112 e 1970: 139-176) deu conta. Trata-se do fenómeno da intertextualidade que faz com que um texto seja sempre já resultado de um outro, segundo uma dinâmica de engendramento textual. Todo o texto gera texto, porque os textos contêm uma potencialidade que excede sempre o «texto» que as tece. É essa potencialidade – à qual, nos termos da semiótica textual, nos poderíamos referir enquanto «textualidade» – que permite que de um texto advenha outro, como se algo no texto o excedesse. A particularidade do trabalho de MB reside no facto de ser uma composição misteriosa de sentimento, música e poesia e que extravasa o estrito campo da linguisticidade. «Quando eu abrir minha garganta / essa força tanta / tudo o que você ouvir / esteja certo /eu estarei vivendo / veja o brilho dos meus olhos, / o tremor nas minhas mãos / e o meu corpo tão suado / transbordando toda a raça e a emoção / se eu chorar / e o sal molhar o meu sorriso / não se espante, cante / que o teu canto é a minha força / pra cantar / quando eu soltar a minha voz / por favor, entenda / é apenas o meu jeito de viver / o que é amar». Portanto, revelando toda uma dimensão do seu trabalho que não releva só de uma técnica. É este também o seu carácter irredutivelmente «moderno». Com a sua grande habilidade «discursiva», MB trabalha como uma coleccionadora de textos outros, na medida em que segue um sentimento ou desejo que superintende toda a discursividade. As poesias que declama são de outros poetas e nelas faz jogar músicas de outros artistas numa tentativa de expressão. Através das palavras de outros, MB constitui o plano de expressão do seu sentimento. Nessa transposição, MB não se neutraliza, mas, antes, nesse âmbito intertextual encontra um plano expressivo. Há quem se escandalize com o poema de Alberto Caeiro sobre o menino Jesus, mas tal não é o caso de MB. Talvez não tenham percebido, mas a visão de Caeiro era ver Jesus numa criança (ainda que uma crítica textual ao poema possa identificar duas forças no texto – até mesmo antagónicas). Tal não seria estranho até porque, no seu ensinamento, como vem relatado nos Evangelhos, o reino dos céus seria das crianças. Trata-se de, numa criança, imaginar Jesus e, na mesma maneira, de imaginar, em Jesus, uma criança. A irreverência de Jesus face aos costumes dá-se na criança que levanta as saias, por exemplo. É na apropriação que dele faz MB que esta poética infantil de Jesus se torna visível, de tal modo que a edição que o poema sofre o torna num poema outro. Tanto porque este participa num outro encadeamento enunciativo, justamente aquele que pensa os amores de Bethânia. No show de MB, o seu poema, expande infinitamente o horizonte do amor erótico em o «Doce mistério da vida».

Maria Betânia, Sebástian Freire. Flickr


§3. Mas será justo dirigirmo-nos ao show de MB como sendo apenas um «texto»? Certamente que há uma lógica inerente à textualidade do seu trabalho, pois este é um enunciado longo que trabalha incessantemente o seu ponto alfa. Porém, fenomenologicamente, a qualidade do seu texto seria apenas uma das variações do olhar do fenomenólogo que contemplaria a sua arte. O fenómeno que MB é, metamorfoseia-se constantemente e, por isso, é de uma variabilidade constante. O show de MB é uma «linguagem». É a linguagem que, não coincidindo com o texto, nos permite compreender a qualidade performativa da sua arte musical. O seu show, portanto. A força de MB no palco é quase legendária. «Pra misturar meia-noite, meio-dia / E enfim saber que cantaria a cantoria / Que há tanto tempo queria, a canção do bem querer / É belo, vês o amor sem anestesia / Dói de bom, arde de doce / Queima, acalma, mata, cria». Na verdade, o show de Bethânia é uma sinestesia na ordem das afecções que irradiam através do seu corpo, gerando um campo de transferências sensíveis. Tratam-se de blocos densos de afecções acumulados no corpo que se expandem em afectos. Trata-se do corpo-música gerado em torno de MB que revela a sua presença em palco, dando a impressão que a força é sua, com se fosse um fenómeno puramente egológico. Na verdade, o campo de afecções potenciado pela música, tem o seu epicentro no corpo-música que atravessa MB, onde um agenciamento colectivo de afecções se joga. É por isto que a música se pode dar como arrebatadora, como se um feixe estético atravessasse as subjectividades decompondo-as, mesmo que por segundos e minimamente. (Também potente era o corpo-música em Frank Sinatra que o fazia fundir-se com a orquestra, ou ainda o cœur de bois de Edith Piaf. Por outro lado, não há orquestra que possa funcionar sem que o corpo-música encontre o seu eixo no maestro ou na maestrina).

É aqui que ainda encontramos também a força rapsódica da arte de MB e que excede a pura semiótica, cujo eixo fosse estritamente linguístico. Seria pertinente efectuar uma conexão com o Íon (I.) de Platão, onde é estabelecido o trabalho do artista na sua qualidade de intérprete pela força do entusiasmo. O que aqui está aqui em jogo é um magnetismo, pois, como uma pedra magnética, é capaz de atrair para si outras tantas ao transferir para elas uma força que as faz atrair outras tantas pedras para a relação magnetizada (I. 533d3-e2), também assim actuam as musas. Também a musa produz (ποιεῖ) inspirados (ἐνθέους) que prologam a cadeia de inspiração, na medida da sua própria inspiração produzindo outros tantos inspirados (533e3-5). Todo este processo que implica tanto a poesia como a música ritual produz-se não por um saber técnico, mas por os sujeitos estarem entusiasmados e possuídos (οὐκ ἐκ τέχνης ἀλλ᾽ ἔνθεοι ὄντες καὶ κατεχόμενοι) (533e5-8). O entusiasmo é a causa da enunciação poética (533e6-7). Portanto, a condição disso é não estar em posse de si-mesmo (οὐκ ἔμφρονες): «A nós, assim, dizem os poetas que das fontes, das quais brotam mel, de certos jardins e pomares das musas, colhem as músicas como as abelhas que em torno deles voam. E falam verdadeiramente. Pois uma coisa leve, alada e sagrada é o poeta que não poetiza antes de devir entusiasmado e a consciência de si e a mente (νοῦς) não o habite mais» («λέγουσι γὰρ δήπουθεν πρὸς ἡμᾶς οἱ ποιηταὶ ὅτι ἀπὸ κρηνῶν μελιρρύτων ἐκ Μουσῶν κήπων τινῶν καὶ ναπῶν δρεπόμενοι τὰ μέλη ἡμῖν φέρουσιν ὥσπερ αἱ μέλιτται, καὶ αὐτοὶ οὕτω πετόμενοι: καὶ ἀληθῆ λέγουσι. κοῦφον γὰρ χρῆμα ποιητής ἐστιν καὶ πτηνὸν καὶ ἱερόν, καὶ οὐ πρότερον οἷός τε ποιεῖν πρὶν ἂν ἔνθεός τε γένηται καὶ ἔκφρων καὶ ὁ νοῦς μηκέτι ἐν αὐτῷ ἐνῇ» 534a7-b6). Sem esta condição não podem os homens pronunciar oráculos ou poetar (534b6-7).

Agora, tal e qual como o poeta e os videntes, também o intérprete (o caso de Ión) quando se torna intérprete, pelo entusiasmo, age não de acordo com a técnica, mas de acordo com a emoção. O intérprete é, portanto, um dos entusiasmados na cadeia do entusiasmo. Os entusiasmados são enviados divinos [θείᾳ μοίρᾳ] (534c1), portanto através de uma potência divina [θείᾳ δυνάμει] (534c6): «Por isto o deus apenas, depois de lhes ter tirado a inteligência [τὸν νοῦν], aos profetas, adivinhos divinos, usa-os como seus serventes, de modo a que nós, os ouvintes, possamos saber certamente que não são estes que falam, o que muito valor tem, pois a sua razão não mais neles vive [οἷς νοῦς μὴ πάρεστιν], mas é o próprio deus que fala e que ele só fala connosco através deles» (534c7-d4). Portanto, tal surge para que saibamos que os poemas, do enviado divino, não são humanos, mas divinos: «os poetas não são outra coisa que intérpretes dos deuses [οἱ δὲ ποιηταὶ οὐδὲν ἀλλ᾽ ἢ ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν]» (534e4-5) (533c9-535a2). Em relação aos intérpretes, quando estes declamam as poesias, diz Sócrates, que eles não estão em si, mas, antes, como refere a Íon: «devéns fora de ti mesmo e acreditas a alma estar com os objectos [ἔξω σαυτοῦ γίγνῃ καὶ παρὰ τοῖς πράγμασιν οἴεταί σου εἶναι ἡ ψυχὴ]» (535c1-2) e Íon: «Se declamo algo lastimoso, assim se enchem os meus olhos de lágrimas, mas, se for algo assustador e horrível, arrepiam-se os cabelos pelo medo e o coração salta» (535c5-8).

Dionysos, Deus do Entusiasmo, Louvre. Creative Commons


É no contexto do entusiasmo platónico que o corpo-música pode ser compreendido. É o entusiasmo a afecção que reúne diferentes sujeitos num corpo, cujo centro é a música. É a voz o motor desse corpo-música. O entusiasmo é a afecção-base do corpo-música. «Há canções e há momentos / que eu não sei como explicar / em que a voz é um instrumento / que eu não posso controlar / ela vai ao infinito / ela amarra a todos nós / e é um só sentimento / na plateia e na voz». O corpo-música poder-se-ia considerar como uma metamorfose do corpo, pois «o que se passa com certos fenómenos de “correspondência” ou de “comunicação muda” […] entre um cantor e uma sala que escuta […] [d]iremos […] que assim se constitui um novo corpo de onde se emana uma voz» (Gil, 1981: 41). Esse novo corpo é, na nossa perspectiva, o corpo-música que não coincide com o corpo egológico de MB, nem com nenhum corpo concreto dos envolvidos no seu show. O corpo-música é agenciado pela voz de MB e pela música da orquestra que a acompanha, cujo substrato são as afecções e nomeadamente o entusiasmo. O entusiasmo é a corrente de afecção, transmitida pela voz de MB, que unifica este corpo. Todos participam, na medida em que se opera uma simbiose entre público e músicos, onde se gera uma retroactividade, pela qual uns se implicam nos outros. Esta simbiose faz com que o sujeito viva uma experiência (mesmo que mínima) de despersonalização ao se deixar afectar pela voz de MB e ao se unir com a carga afeccional dessa voz. Neste sentido, o agenciamento da sua voz une-os no corpo-música que ao se expressar na voz de MB parece concentrar-se no seu corpo egológico. No entanto, tal é só uma aparência, porque o corpo-próprio é já agenciado pelo entusiasmo que rompe as fronteiras egológicas. O agenciamento pode, no caso do público, ser tanto ou mais intenso consoante a «identificação» de cada um com a música, deixando-se afectar correspondentemente com mais ou menos profundidade.

§4. José Gil (2010: 20-31) demonstrou o modo como o suprematismo russo é toda uma linguagem artística. O suprematismo russo seria justamente um dos modos de a arte, concretamente a pintura, devir linguagem. A linguagem artística, diz J. Gil, tem na «sensação» o seu grau-zero. O «Quadrado Negro» de Malevich é um negro originário da sensação. O negro é a coincidência do artista com o mundo. O «negro» de MB não é quadrado, porque a música releva de uma potência, cuja sensibilidade é de uma outra ordem. Em MB a sensação está já em osmose com o mundo. O seu grau zero é a intuição. «Sou eu mesmo, o trocado, / o emissário sem carta nem credenciais, / o palhaço sem riso, o bobo com / o grande fato de outro, / sou eu mesmo, a charada sincopada / que ninguém da roda decifra / nos serões de província. / Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. / Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. / Quanto amei ou deixei de amar / é a mesma saudade em mim. / Sou eu mesmo, a charada sincopada / Que ninguém da roda decifra / nos serões de província.» Sem decifração, porque a intuição seria uma forma-de-pensamento «divina», sendo o entusiasmo a afecção própria a esta consciência «divina». A intuição devém potente, justamente na medida em que ela se aloja na alma, por meio do entusiasmo e vibra por todo o corpo. Por isto, o corpo-música ainda que se expressando na voz de MB não é o seu corpo egológico, porque a música e a sua fenomenologia sensível derivam de uma intuição. Trata-se de uma despersonalização, na medida em que o divino é aquela projecção do humano, onde o «homem» se abandona irremediavelmente. Um deus seria o ponto máximo de uma potência humana de devir mais do que um humano poderia. É um agenciamento infinito de algo que não podendo talvez ser mais sujeito, mas sim da ordem da subjectividade. Se, como cantava Homero, ninguém ousaria olhar para os olhos de um deus, tal, poder-se-ia dizer, deve-se ao facto de, nessa ousadia, o deus se revelar sem olhos. Rosto sem olhos, porque um deus não espelha a sua alma num qualquer ponto, mas todo o corpo é alma. O deus poder-se-ia dizer é o corpo-alma, onde o humano encontra o seu limite. Um abandono irremediável. A arte não seria tanto uma transcendência, mas uma abertura ao abandono de si. A expressividade da arte é da ordem do divino e, por isso, é arte a delicada capacidade de expressar uma intuição que excede qualquer apropriação possível. O divino nomearia, assim, a abertura do humano à intuição, isto é, a uma variação radical da consciência. «Quanto nome tem a rainha do mar? / quanto nome tem a rainha do mar? (…) / Onde ela vive? / Onde ela mora? / Nas águas / na loca de pedra / num palácio encantado / no fundo do mar / O que ela gosta? / O que ela adora? / Como se saúda a rainha do mar? / Como se saúda a rainha do mar?».

Procissão dionisíaca, British Museum, Londres. Domínio Público


Em MB a sensação está já em osmose com o mundo, pois o corpo-música não vive sem ela. Mas o seu grau zero é a intuição. É por isto que permanece no escuro, longe dos holofotes do show, do carácter público da sua arte. Em «Maricotinha», o negro de MB torna-se visível e audível. A sua visibilidade é o corpo da artista e a sua voz que gera o limiar onde ele pode se tornar audível. MB que assume ser uma cantora do amor dito romântico ou erótico, torna-o a força da sua arte. Mas porquê o jogo de máscaras em «Maricotinha»? Desde que o show principia, a música revela a artista que insiste em se esconder. É o «Doce mistério da vida» que a esconde, mais uma vez. Mas porquê retornar ao negro? Se a arte pode ainda ser expressão, então na sua natureza de linguagem, a sua matéria seria a intuição. Na arte, esta revela-se e esconde-se. A arte consistiria, justamente, na possível expressividade de uma intuição que, pela sua natureza, nunca é absolutamente exprimível em qualquer semiótica. Talvez também, por isso, o quadrado de Malevich é negro. A qualidade da arte é algo que releva bem do «sonho», com o qual a memória, muitas das vezes, encontra as suas mais potentes resistências. «Súbito me encantou / A moça em contraluz / Arrisquei perguntar, / “Quem és?” / Mas fraquejou a voz / Sem jeito eu lhe pegava as mãos / Como quem desatasse um nó / Toquei seu rosto sem pensar / E o rosto se desfez em pó / Há de haver algum lugar / Um confuso casarão / Onde os sonhos serão reais / E a vida não / Por ali reinaria meu bem / Com seus risos, seus ais, sua tez / E uma cama onde à noite sonhasse comigo / Talvez».

É de arte a obra que está impregnada por um excesso que a intuição transborda. É este o mistério da arte e que revela a sua natureza indiscutivelmente «medial». Se o artista é o sujeito que assume poeticamente a sua mediunidade, então a «arte» consistiria no fazer ou na passagem dessa mediunidade para a medialidade própria à obra. Por isto dizíamos que a potencialidade de um texto é a textualidade, isto é, o limiar de abertura do texto onde este se desdobra em tantos outros. É também deste modo que, na performance, no show, o corpo-música excede MB, o seu ego, (e que justificaria de modo geral, talvez, a proximidade da música à dança) agenciando-o nos movimentos corpóreos, na expressão vocal – o canto – e expandindo-os no campo das afecções, onde todos se envolvem. Esta constituição poderia bem ser a sua arte.

§5. A «arte», do ponto de vista da filosofia, está em constante permutabilidade. É também neste sentido que se deve entender a sua tensão moderna com a tecnologia, a ciência, (alguma) economia e todo o tipo de funcionalismos. O significado da (palavra) arte altera-se significativamente consoante o polo da contemplação filosófica do qual se parte, «objectivo» ou «subjectivo». Com efeito, subjectivamente a arte é uma técnica ou τέχνη como os gregos a pensavam e que permite ao sujeito realizar algo poeticamente. Esse algo é, na sua objectividade, a obra-de-arte. O desvelamento da arte é o do próprio sujeito, o «artista», na sua qualidade de ente sensível, isto é, na sua sensibilidade. É aqui que a estética se dá subjectivamente. É, por isto, que esteticamente a arte não pode ser uma «técnica» de produção. Aquilo que está em jogo na arte dita estética é a sensibilidade mesma do sujeito. A arte seria aqui não um jogo para genialidades da pura expressividade, mas, antes, para o sujeito que abraça o risco de devir sensível, de pôr em questão a sua própria sensibilidade em diversos planos, como a «criatividade» ou a «expressividade». O artista talvez nem nomeie um «sujeito», mas um devir singular, o do gesto, onde produção e sensibilidade, artista e obra, se cruzam.

Por isto não é a filosofia da arte crítica da arte. À crítica competiria concentrar-se no estatuto artístico da arte. A filosofia da arte concentra-se no excesso da obra abandonado ao mundo. Por isso, o seu discurso não tem como referente a «obra», mas no facto de constituir esta ou aquela «obra»-de-arte algo como um paradigma. É neste sentido que se pode ainda compreender os enunciados kantianos acerca do estatuto da obra da bela-arte como obra do génio. A obra do génio dá regra à arte, na medida em que se constitui como um modelo ou, na nossa linguagem, um paradigma. Trata-se de operar um deslocamento da obra para o excesso que ela porta e donde uma obra extrai a sua «artisticidade». Assim, este texto é menos sobre MB do que aquilo que a sua obra poderia ser. Daquilo que a sua arte pode querer dizer, naquilo que nenhum ego pode apropriar. É assim que a arte é sempre abertura. O paradigma nunca reenvia para um indivíduo – o dito «artista» – mas antes para aquilo que naquele indivíduo é da ordem do pensamento, isto é, o génio como uma disposição da alma. Por isto, é, no nosso entendimento, o génio uma disposição impessoal e nunca egológica. A arte não é egológica, nem a expressão de uma autenticidade qualquer radicada no ego. A autenticidade da arte residiria justamente no esforço de despersonalização que todo o trabalho portador de uma intuição implica. «Dona do dom que Deus me deu / sei que é Ele a mim, que me possui / as pedras do que sou dilui / e eleva em nuvens de poeira / (…) plena do dom que Deus me deu / sei que é Ele a mim, que me ausenta».



Ricardo Santos


Gil, José
1981 As metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’água Editores, 1997.
2010 A arte como linguagem. A última lição. Lisboa: Relógio d’água Editores.
Kristeva, Julia
1969 Semeiotiké. Recherches pour une sémanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 2017.
1970 Le texte du roman. Approche sémiologique d’une structure discursive transformationnelle. Haia: Mounton. 1979.

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