Leonardo Coimbra foi um filósofo português do início do século XX com ideias que, creio eu, merecem ser conhecidas de todos nós, e que tornam inevitável a rendição ao que pensa. A propósito de uma oportunidade de contactar, pela primeira vez, com a filosofia preconizada por Leonardo Coimbra, surge este texto como resposta à reflexão que foi espoletada pela sua obra A Alegria, a Dor e a Graça cuja leitura foi realizada sempre com um lápis na mão, pronto fazer anotações e comentários a cada linha, tornando a partilha deste contacto, imperiosa.

A obra A Alegria, a Dor e a Graça é um tratado sobre a Vida. Vida com maiúscula porque Leonardo Coimbra percorre ao longo das três grandes secções que constituem o texto, diferentes questões relacionadas com a metafísica, a organização e leis naturais que regem o Universo e o próprio Homem. Sem nunca perder a eloquência, ritmo e roupagem poético-filosófica, naquilo que é um casamento perfeito entre a sua compreensão do sagrado e do profano, Leonardo Coimbra apresenta também pequenos apontamentos pessoais. Apontamentos estes tão bem feitos que parece dar a impressão de que todo o livro é o caminho que Leonardo percorreu na sua vida e que a partir dessas vivências conseguiu melhor entender o que a Vida é e pretendia dele. O homem atravessa a vida, numa tensão de heroísmo, de vontade de alma significativa e real (Coimbra, 2006, pp. 133).  Este entendimento relaciona-se com a compreensão do que é o Absoluto e de como ele se manifesta de diferentes formas sem que cada individualidade perca a sua unicidade. Desta feita, esta é, do meu ponto de vista, uma obra dedicada as todas as almas verídicas (Coimbra, 2006, pp. 43).

Leonardo pega-nos na mão e vai-nos guiando pelas diferentes fases da vida, evidenciando as suas características e, simultaneamente, explicando-nos o que a Vida espera de nós nestas diferentes etapas. Na secção referente à A Alegria, são abordadas a infância, a puberdade e a maturidade. Em A Dor, deparamo-nos com a finitude da vida, com a morte e com as diversas dores de crescimento inerentes a cada estádio. Na última parte da obra, A Graça, surge a compreensão de que a sucessiva superação de cada dor de crescimento, nos eleva de tal forma que nos chega a libertar. Parece-me que, também, a própria obra está construída em conformidade com aquela que é a visão de Leonardo sobre a trajetória ascensional da alma e, como tal, o texto vai ganhando cada vez mais densidade e profundidade à medida que as páginas se vão acumulando.

Começando por A Alegria, explica-nos Leonardo que a infância é como se fosse o raiar de um dia que, por sua vez, pode ser entendido como a primeira alegria que o Homem pode ter. Alegria porque as vidas não despertam, renascem; e eis porque cada alvorada é inédita, sem par. (Coimbra, 2006, pp. 45) Com a infância, diz-nos Leonardo, é muito evidente que há uma parte da origem incluída em nós e, portanto, é dever de cada um saber preservar a essência desta fase da vida a fim de que esta esteja sempre presente. Que essência é esta? A pureza de olhar, sentir, pensar e criar. Desta forma, será possível melhor compreender a Beleza dado que estaríamos em condições de produzir sensações – o corpo da beleza – mais fidedignas.

A Alegria de Viver, de Robert Delaunay (1930). WikiArt

À infância segue-se a puberdade. Explica-nos Leonardo que a puberdade é uma nova fase que, naturalmente, vai causar algum desconforto, não só pelas sensações que se vão complexificando, mas também pelos novos impulsos que vão surgindo, nomeadamente os relativos à afirmação do eu, como por exemplo, a pulsão amorosa. Ainda assim, será deste desconcerto que é possível um reencontro com a Alegria da infância, já que o Amor é um ideal de interpretação da Beleza (Coimbra, 2006, pp. 66). Mais: é na puberdade que começa a surgir o instinto unificador (Coimbra, 2006, pp. 49), que pode traduzir-se na necessidade de estar junto dos pares e da procura de uma relação amorosa cuja busca pelo prazer deverá ser relegada para um segundo plano, dando espaço para que a Alegria se possa manifestar, expressando o vigor que o reconhecimento da Unidade traz.

Por fim, surge a idade adulta, momento associado com a família. O Homem quererá um local onde possa mostrar a sua autenticidade e sentir o Amor de uma forma muito mais verdadeira. Sob a perspetiva de Leonardo, a família é esse sítio e, como tal, é uma fonte de Alegria bem insubstituível (Coimbra, 2006, pp. 91). Leonardo acaba por valorizar, parece-me a mim, muito mais a família que poderemos constituir do que a aquela da qual somos provenientes e, como tal, creio que alude ao sentimento de pertença que todos precisamos de sentir enquanto seres humanos. Isto é, todo o Homem necessita de um núcleo onde possa viver o seu verdadeiro eu de forma genuína, e, a este sítio dar-se-ia a designação de família. Com isto em mente, também me parece que Leonardo apresenta uma visão muito profunda e ampla daquilo que significa família.

Seguindo a vida e a própria obra, tudo passa, morre e repete-se (Coimbra, 2006, pp. 104). É desta forma que ingressamos no capítulo A Dor. O texto começa a adensar-se a ganhar um corpo cada vez mais metafísico. Leonardo, aqui, explicita diferentes conceitos ético-morais: morte como regressar ao informe, ao contínuo e absoluto (Coimbra, 2006, pp. 119); consciência como sendo clarão entre duas sombras (Coimbra, 2006, pp. 107); mal como uma desarmonia/desconcerto (Coimbra, 2006, pp. 113) e dor como sinal de sofrimento originado do mal. Na verdade, o autor não se atém a uma definição; vai construindo-as em conjunto com o leitor, apresentando diferentes roupagens sobre estas temáticas. Com estas múltiplas perspetivas, a morte, a consciência, o mal e a dor interconectam-se de tal forma que cresce a nossa fundura sobre o assunto.

Amor e Dor, de Edvard Munch (1895). WikiArt

Leonardo quer mostrar-nos que a Vida ultrapassa aquilo que são os limites que nós conhecemos, sejam os mais biológicos ou os mais metafísicos, ou seja, que a Vida não se esgota com a finitude do corpo. Esta noção advém de uma relação muito estreita entre alma e consciência, que para Leonardo são indissociáveis e completamente interdependentes. Assim, viver é conhecer que vimos morrendo (Coimbra, 2006, pp. 104). Chega a dizer-nos que o próprio Universo é um portador de um equivalente da consciência (Coimbra, 2006, pp. 110) dado que tem uma intencionalidade subjacente e, como tal, as suas parcelas – almas – têm, necessariamente de se comportar isomorficamente, neste sentido.

Justificar-se-ia a existência do mal no Universo com a consciência da existência dos arquétipos, já que estes são ideais, o que subjaz um carácter de ordem e perfeição, que não está ao alcance dos que são desordeiros e imperfeitos. Neste seguimento, a dor seria uma filha do mal, já que resultaria de uma alternância entre a presença e a ausência de consciência do ideal. Por isso, esta deve ser vista como uma verdadeira prova. Ou seja, a Vida está-nos a perguntar se queremos efetivamente passar para a etapa seguinte de consciência e, nesse sentido, seremos testados em conformidade para aferir a passagem. Esta perspetiva é indolor? Não, mas isso também não significa que não seja a adequada. Quem é que nos convenceu de que é bom para nós ser isento de dor? Nunca uma grande alma se sentiu desgraçada no meio da Dor (Coimbra, 2006, pp. 139).  Termina a secção, mostrando-nos, que para os que conseguem praticar este princípio, a Dor é transmutada em Alegria porque é percecionada como o melhor caminho para Deus (Coimbra, 2006, pp. 142).

Entramos no último capítulo, A Graça. Talvez o capítulo que mais apela à alma no sentido em que é o que apresenta um carácter mais denso e simultaneamente abstrato.  Aqui, Leonardo explica-nos que a Graça nasce do nosso encontro com o nosso eu mais íntimo, que nos leva, inevitável e naturalmente a uma liberdade e libertação elevando-nos a consciência a um outro patamar. A Graça é a vitória da unidade sobre a pluralidade, da qualidade sobre o número, da liberdade sobre a necessidade (Coimbra, 2006, pp. 144). Experimentar o estado de graça, é experimentar o divino em nós, é saber que há uma centelha divina cuja presença existe em todos e cada e um de nós e, como tal, há qualquer “coisa” – essa centelha – que não só se identifica com o Absoluto, mas também o compreende, sente e vivifica. Somos convidados a trazer ao quotidiano, o eterno; à parcela, o todo; ao acidente, a essência (Coimbra, 2006, pp. 149). Através desta atitude de sacralizar todos os momentos vividos, isto é, de viver com a consciência sempre presente e orientada para conhecimento daquilo que é a individualidade e, consequentemente, também mais desperta para a coletividade, deixam de existir banalidades, frugalidades e fugacidades na nossa vida. O Homem torna todos instantes vividos em aprendizagens constantes e contínuas de algo que soma à sua individualidade[1]. Desta feita, é possível constituir-se uma verdadeira civilização: Ela compõe-se dum conjunto de instrumentos da ação humana, ela é mesmo o depósito da cooperação social; mas, se o espírito criador adormece, será o conflito social, a escravidão do fim humano aos meios materiais (Coimbra, 2006, pp. 150). Verdadeiros Homens constituem verdadeiras civilizações e verdadeiras civilizações são um processo aumentativo das almas (Coimbra, 2006, pp. 177) que as integram. Assim, é dever de todos nós transformarmo-nos – ou pelo menos irmos tentando – com vista a alcançar essa meta humanizadora, esse caminho para o Absoluto.

Leonardo, traz, assim, esta ideia muito vigorosa: cada um de nós é um agente de transformação do presente e, portanto, também do futuro. E, para que isso aconteça, há que integrar o movimento inerente à própria vida, o movimento humano e humanizador. Sim porque a vida é movimento! Movimento interno e externo. O verdadeiro «q» da questão é como e para onde estamos a realizar esse movimento? Leonardo diz-nos que é o movimento em direção a si próprio e, simultaneamente, em direção a Deus. Uma alma, quando se coloca no Universo e cria a religiosa atitude do dever faz o que muitas outras já fizeram; mas não é uma repetição, porque a conquista da máxima comunicação cósmica é a própria essência de todas as almas (Coimbra, 2006, pp. 195). Quando nos posicionamos desta forma ante a Vida, a harmonia interna casa-se de tal forma com a externa – leia-se a do Universo, de Deus, do Absoluto – que a Graça emerge de forma natural e como consequência dessa atitude. Somos capazes de experimentar o sublime – o sentimento do Infinito (Coimbra, 2006, pp. 168).

As Três Graças, de Raffaello Sanzio da Urbino. Domínio Público

Contactar com Leonardo é, sem dúvida alguma, contactar com um grande pensador, filósofo e, atrevo-me a dizer, alma, dado que a profundidade e veracidade que as suas palavras imprimem só são possíveis a Homens com tal envergadura. Por isso, conhecer Leonardo é poder sentir que há algo em nós que se quer agigantar por querer pulsar conjuntamente com ele, como tão bem explica na página 118: A admiração consciente pelos grandes homens é a estima pela nossa parte de intimidade, chamada à vida pelo seu esforço e valor. (…) Os grandes homens são grandes realizações, são sementes que rasgaram o corpo da terra e vieram abrir as pétalas sob o mistério do céu (Coimbra, 2006). Com esta obra, Leonardo ensina-nos a VIVER, saibamos nós aprender!

Referências Bibliográficas

Coimbra, L. (2006). Obras Completas Vol. III – 1916-1918: Coleção Pensamento Português (Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), Ed.; 1st ed., pp. 41–201) [Review of Obras Completas Vol. III – 1916-1918]. Imprensa Nacional – Casa da Moeda (INCM).

Débora Ferrage

[1] Talvez seja interessante explicitar que a utilização da palavra individualidade não é fruto do acaso e que não deve ser entendida como personalidade, mas sim como o de mais elevado que conseguimos encontrar em nós. Como diz José Saramago em O Ensaio sobre a Cegueira: Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.

Imagem de destaque: Leonardo José Coimbra (1883-1936), Imagem composta. Creative Commons. Leonardo Coimbra. Estátua de Leonardo Coimbra. Livro.