É um elemento tão fundamental no nosso planeta, como a parte sólida que denominamos de terra. É mais: há maior proporção de matéria líquida que de sólida na Terra, e não há parte sólida que, de certa maneira, não esteja embebida, trespassada – ou precise estar – de líquido.
O protótipo do aquoso é, para nós, o mar. O mar é como o sangue do planeta, vital, salgado, cheio de energia e dador de força ao mesmo tempo. No mar estão resumidas todas as formas da água: o sal que o compõe, o doce dos rios que nele vão entrar e as chuvas verticais que nascem pela subida do vapor e a descida das gotas líquidas…
Por isso os antigos falaram do mar como do sangue, e eles souberam que os seus muitos sais não eram motivo para fazer dele um ser inerte, pesado e quase denso nas profundezas do seu leito. Eles sabiam deste sangue vivo que, dentro dele, transportava várias correntes, frias e quentes, num e noutro sentido, para que essa enorme massa líquida não estivesse nunca em repouso, distribuindo sempre o seu rico caudal energético. Tal como o sangue que circula pelo corpo, usando canais, e dependendo muito das correntes de temperatura…
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Nesta enorme fonte de vida aquática que é o mar, desembocam as veias dos rios. Elas recolhem o seu material ao longo da terra, entre lagos e montanhas, entre bosques e desertos, e sempre, sempre, transportam a sua corrente para o mar.
Qual é o extraordinário jogo de Maya que faz com que os rios terminem sempre o seu caminho no mar? Qual é a força, a inteligência que os encoraja, para não perder nunca o seu curso? Aqui, Maya cuidou da sua ação, e não há nenhum fio de água, em nenhum canto do planeta, que não saiba como chegar a uma fonte maior que, por sua vez, desembocará noutra e noutra até chegar finalmente ao infinito mar.
É que as águas procuram as águas por afinidade; até este ponto chega o jogo de Maya. Mas as águas também têm o seu nível de evolução, e sabem que a gota mais diminuta tem igual essência que a grandiosidade do maior dos oceanos. Portanto, a pequena gota procura o seu deus, a sua meta de perfeição, e anseia chegar ao seu oceano. A doce gota, que é filha da terra, precisa converter-se finalmente na gota salgada, que é filha do céu; quando ela está pequena e separada, vale bem pouco; quando ela se confunde no mar, longe de perder a sua personalidade de pequena gota, assume, no entanto, a grandiosidade do oceano.
Por isso, os rios, as fontes e os pequenos fios de água, vão sempre morrer – ou viver? – no mar…
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Maya tem prazer em jogar com as águas. Maya – e este é um segredo que ela conta muito poucas vezes – é também de natureza aquática.
Maya joga com os rios, que parecem braços carregados de vida. Retoca primorosamente as suas margens, ou deixa-as isoladas e planas no meio de algum deserto. Às vezes, as margens confundem-se docemente com a terra; às vezes, uma ravina marca a diferença entre um e outro elemento.
Maya joga com as chuvas. Já viste como o vento inclina as gotas? Já reparaste que às vezes, por outro lado, o fio de chuva é completamente recto e vertical? Já viste como mudam as gotas, grandes e cheias de vez em quando, e finas e suaves noutras alturas? Quando o ar e o vento mudam o aspecto da chuva, é porque Maya se confundiu com o ar e com o vento.
Maya joga com o mar. Quando Maya é vento, ondula a superfície salgada, e desenha nela curiosas formas de espuma branca. Da espuma branca, Maya fez nascer Afrodite… Quando Maya é Lua, atrai as águas para ela, e o mar levanta-se procurando esse espelho no céu, que tanto se parece consigo. Quando Maya é céu, brinca com o mar a pintar nele as suas melhores cores: o mar por vezes é azul, por vezes verde, em algumas tardes é cinzento, violeta antes das tempestades, preto durante a noite.
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As águas são a própria imagem do movimento. As nuvens não param de formar-se, nem deixam de cair uma vez formadas. Os rios têm uma meta fixa e nada os priva dessa finalidade. O mar é uma massa que nunca está quieta, com ou sem ondas, mas sempre dirigindo os seus impulsos em direção à sua contraparte de terra. O mar aprendeu a brincar com Maya, e brinca com a terra comendo as suas margens: tapa-as e destapa-as, cobre-as e volta a deixá-las sós, sobe e desce, vem e vai. Este mar e esta terra são como crianças que, apesar de diferentes nas suas aparências, participam da mesma essência, e aprenderam o mesmo jogo baseado na mesma ilusão: como posso confundir-me contigo? Isto é o que diz o mar à terra, e o que dizem as areias ao mar.
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Certamente, a terra sólida alberga infinitas formas de vida. Mas quantas formas vivem no mar? As pedras, os vegetais e os animais encontraram a fórmula para se adaptarem ao elemento líquido, e aí desenvolveram aspectos variados, belos e harmoniosos como os dedos de Maya, que deixou neles também a sua cor.
Algas e corais, pedras e fetos gigantes, partilham a sua existência com uma série de peixes tão rica e tão especial, que é como se todas estas formas de vida fossem obra de um dígito muito definido da mão de Deus
O mesmo jogo da Natureza exterior se dá no mundo interior das águas. Há uma certa crueldade – pelo critério dos homens – que não é mais que a lei da vida material pelo critério da Natureza. Tudo isto, traduzido, configura o refrão tantas vezes repetido e tão pouco compreendido: “o peixe grande come o peixe pequeno”. A pequena gota anseia ser do tamanho do mar. O pequeno peixinho é alimento do grande peixe. O inseto que voa é capturado por um pássaro… todo o ínfimo gravita para o supremo; todo o supremo atrai o ínfimo, para o comer, para o cuidar, para o ampliar, para sentá-lo no trono junto de Si.
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O mar, esta criança que vimos antes a brincar com a terra, pode por momentos adquirir um aspecto terrífico, deixar de ser a criança inocente e converter-se num monstro que tudo engole e destrói. O mar em fúria é a força desatada da vida, perante a qual nada se pode opor.
Em mais do que uma ocasião, o mar lançou as suas garras sobre a terra: não só beijou as margens e namoriscou com as areias, mas engoliu cidades inteiras, com os seus homens e as suas esperanças, com os seus êxitos e os seus erros. E agora, o mar guarda nas suas profundezas mistérios ocultos que os humanos atuais não podem – e por vezes não querem – recordar. Ruínas de mundos passados, continentes que já não o são, estradas por onde já ninguém passa, barcos que nunca mais voltarão a flutuar, corpos que já se confundiram com o sal do mar… É a vida sempre ativa das águas, que destrói a vida sujeita aos ciclos da terra: a Vida que come a vida, como o peixe grande ao peixe pequeno.
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Se a terra sólida é símbolo da base e assento, a água – o mar – é símbolo de vitalidade. É a vida do corpo e é também o protótipo da vida espiritual. Quando as águas correm horizontais, sobre a terra, paralelamente à terra, é vida corporal; quando as águas caem verticais como a chuva, é o espirito que desce e anima a casca vazia corporal. Por isso o mar é Mãe e é Pai. É a grande mãe que guarda em si a semente de toda a geração; é o princípio das coisas, e talvez o fim. E tem do pai espiritual a possibilidade de elevar-se em subtil vapor para procurar no céu a essência indispensável que a vida necessita para se converter em Vida.
Corrente energética… Sangue…? Mar…? Vida…
Delia Steinberg Guzmán
Extraído do livro Os Jogos de Maya. Editorial Nova Acrópole
Imagem de destaque: A vida marinha. Creative Commons