Fotografia de Pierre Poulain / www.photos-art.org

Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.

Uma é a Arvore de Vida, a Árvore da Natureza, e a outra e a Arvore da Arte, que podemos chamar também a do Conhecimento do Bem e do Mal (pois avança-se do mal, o feio, até ao bem, à beleza, mas sempre usando a mente humana, neste caso, a mente do artista). Quando voltarão a abraçar-se até ser uma só Árvore, quando deixarão de ser rivais, eternas inimigas, ameaçando uma à outra, mas inspirando-se sempre a do conhecimento na da vida?

Nesta fotografia, os fractais dos seus ramos parecem querer beijar as suas imagens nas águas que correm (aí estão simbolicamente as duas Árvores mencionadas). A beleza de formas subjuga-nos, pois há uma perfeição de viva matemática na natureza, que não sabemos muito bem porquê, mas é como se quisesse libertar a alma da prisão da matéria em que vive, e no entanto não podemos fundir-nos nela, abandonar a mente, que é a Árvore da Ciência do Bem e do Mal.

O ensinamento da árvore, símbolo do real e permanente, que se reflete nas águas de um rio, símbolo do mundo dos sentidos, das aparências, o do sempre-a-querer-chegar-a-ser; é o que usa Platão para fazer-nos entender o que é a vida vista desde o corpo e vista desde a alma em si mesma sem impedimentos materiais. Nem todos podemos subir essa Escada de Jacob sem necessidade de apoios, e a arte, como procura e dação da Beleza é também um báculo que nos permite caminhar no invisível, através das vivências estéticas, que marcam o ritmo de avanço nesta senda.

A arte imita a natureza. Isto é o que se nos tem ensinado desde sempre, mas nem sempre se entendeu. Não significa que o pintor, por exemplo, imite, somente, o que vê com os seus olhos e tente fixá-lo numa tela. Mas que o artista, na sua ação, trabalha como o faz a natureza. A sua alma, que o fogo de Prometeu converte num Deus, opera como a alma da natureza. Ao fixar o que vê numa tela, ou numa estátua, penetra no sentido íntimo do que vê e vibra ante a luz dos mesmos Arquétipos ou Divinas Formas, que sente presentes na natureza, e cujos lampejos ou imagens recebe no espelho da sua imaginação. Brahms passeia-se num bosque reverdecido pela estação florida, e tudo se converte em música. Beethoven ouve uma toada popular e vai modelando-a com a sua imaginação até convertê-la numa sinfonia. Chopin ouve uma gota de água, persistente e quase odiosa, que não o deixa dormir, e – como a concha faz com a ínfima partícula de pó que a irrita, ao cobri-la com véus de nácar – compõe o seu famoso Prelúdio em ré bemol maior chamado, precisamente, a “Gota de Água” (opus 28). Mais tarde este músico, quiçá o mais poético dos músicos, diria que a vida é uma sucessão de ruídos que devemos converter em harmonia. O genial filósofo e poeta mexicano Amado Nervo, ouve também um fio de água e compõe um dos hinos mais sublimes às mil faces deste elemento que é a própria quintessência da vida. Intitula-o “Irmã Água” e nele explica:

Um fio de água que cai de uma chave imperfeita; um fio de água, manso e diáfano, que murmura toda a noite e todas as noites próxima do meu leito; que canta a minha solidão e nela me acompanha; um fio de água: que coisa tão singela! E, no entanto, estas gotas incessantes e sonoras ensinaram-me mais que os livros.

A alma da água falou-me na sombra – a alma santa da água – e eu ouvi-a, com recolhimento e com amor. O que me disse está escrito em páginas que podem compendiar-se assim: ser dócil, ser cristalino; esta é a lei e os profetas; e tais páginas formaram um poema.

Eu sei que quem o leia sentirá o suave prazer que eu senti ao escutá-lo dos lábios de Sor Acqua; e este será o meu galardão na prova, até que os meus ossos se regozijem na graça de Deus.

O artista, então, não só reproduz, como um ente mecânico. Depura e transmuta, como o alquimista, e através do crivo da sua imaginação e das suas mãos incansáveis passam os seres de pura luz e vida invisíveis, dignificando o mundo, e abrindo portas até à infinidade que representam, trazendo-nos mensagens das estrelas. Mas não só, como diz Platão em A República, das estrelas que vemos na noite, mas das que cintilam, sem cair nunca nem declinar, no nosso Reino Interior. Poderemos ou não vê-las; poderemos ou não chegar a elas ou seguir o raio da sua luz projetada na terra e água do que somos, na Senda; podemos virar-lhes as costas, ao desvalorizar a sua importância e minimizar a eternidade que são; poderemos fugir do seu raio quando sintamos que, na sua pureza, nos queimam; mas jamais, jamais nos vão atraiçoar: Hierocles[1], o último dos pitagóricos do mundo clássico já em ruinas, chamou-lhes: o Juramento.

Voltando à reflexão Arte versus Natureza, ou Arte igual a Natureza, ou Arte e Natureza: Apelas, o pintor escolhido pelo grande Alexandre para o imortalizar com os seus pincéis, antes de ser conhecido, apresentou-se a um concurso de pintura e não obteve nenhum prémio. Mas pintou, para “vingar-se”, um ramo de uvas contra o qual embatiam os pássaros, acreditando que era real; e disse a todos: “Vejam, ainda que vocês não, a Natureza reconhece a minha valia”.

É difícil saber porque Platão dá menos valor à pintura, por exemplo do que à escultura. Talvez tenha que ver com as projeções, pois uma escultura deve ser harmónica e bela em todos os seus planos, enquanto que a pintura, só no que exibe, e supre com a perspetiva, uma espécie de “engano”, a incapacidade de entrar no reino dos volumes que falsamente chamamos “de três dimensões”. Mas esta é uma verdade a meias, e literatos, como Hermann Hesse e místicos, mencionam que a pintura, se genial, pode chegar a converter-se numa porta pela qual se acede a uma dimensão maravilhosa onde o representado está vivo, em movimento e não é uma imagem plana, como um cromo. Porém, na verdadeira música, que é pura dança matemática, não há planos; é quase imaterial e talvez por isso seja a mais subtil das artes, e a que pulsa mais rápida e poderosamente a nossa emotividade.

Mau músico seria aquele que reproduz o rugido de um leão, mas não nos fazendo sentir o impacto que este provoca em nós; ou a canção da água, mas fôssemos incapazes de diferenciá-la da água que ouvimos correr, ou seja, que fosse como um gravador musical. E, no entanto, com arpejos musicais e estremecidamente, sentimos o fogo no leitmotiv de Wagner de Loge, ou o Arco-íris no do deus Froh, ou a voz do Destino na música da lança de Wotan, na sua fatal escada descendente. E desde logo não é uma simples imitação do que podem experimentar os nossos sentidos com o fogo, o arco-íris, etc. mas sim o que vive a nossa alma quando vê-ouve-sente estes elementos ou imagens da Natureza ou ainda do reino moral.

Claro, nem o melhor artista será capaz de superar a obra da Grande Mãe, pelo menos até que se converta de novo numa língua de fogo desta Alma da Natureza, um Dhyan Chohan, na terminologia budista. E quando possa fazê-lo, será Ela mesma, na ação, um dígito dos Deuses, segundo dizia Platão. Assim, o sábio perfeito já não necessita de ir aos museus, e extasia-se na contemplação das pegadas de Deus, que é, precisamente, a quem vê e sente refletido no espelho da Natureza. Como dizia o professor Livraga, já não necessita ler nas páginas dos livros, não há muitos exemplos iconográficos de Cristo ou Buda a ler; pode fazê-lo, se o quer, na Natureza, ou fechar os olhos e ouvidos e fazê-lo, como na meditação do Bendito, na infinidade de si mesmo.

[1] No seu excelente livro de Comentário aos Versos Áureos de Pitágoras.