Fotografia de Pierre Poulain / www.photos-art.org

Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.

“A Água Mãe, o Grande Mar, chorou. Ela elevou-se, desapareceu na Lua, que a tinha feito nascer”.

Esta fotografia evoca na memória, quase sem o querer, estes versos das Estâncias de Dzyan da Doutrina Secreta (do corpus de textos esotéricos do Budismo Mahayana). Refere-se assim, metaforicamente, a um cataclismo geológico em que o mar quase desapareceu da superfície da Terra, elevando-se, imagino, às capas mais altas da atmosfera, e fazendo sucumbir a quase totalidade de vida no nosso planeta.

Pois que o Mar é o grande recetáculo da vida, é assim a Grande Mãe em cujo seio se gestam infinidades de seres, a grande reserva de onde se forma a água doce que permite a vida sobre a Terra. A filosofia e religião mesopotâmica fez a água doce, o Apsú, um sinónimo ou símbolo do espírito; e do mar, Tiamat, das águas da matéria. Da relação entre ambas, mais ou menos violenta, surgia o equilíbrio e a dinâmica da vida. No Génesis diz-se como Deus separou as águas de cima (céu) das de baixo (mar) fazendo assim a primeira divisão ou contraste gerador de vida, a primeira horizontal com o qual o “Homem Cósmico” ou o “Pensamento divino” forma uma cruz. Deste modo, a linha horizontal (geralmente dentro do Círculo do Espírito Universal) foi um símbolo geométrico da Grande Mãe, do Grande Amor que abraça todos os seres sem distinções, pois atende ao que são, os seus filhos, e não ao pó aderido no sofrimento do caminho: que os lava com as suas lágrimas, e os cura com a graça das suas ondas, sempre brincalhonas, e a magia da sua branca espuma. O Mar era símbolo pois da grande matriz, e do dissolvente universal que leva tudo de novo à sua condição homogénea, como homogénea é nele, a dissolução de todos os elementos nos seus iões fundamentais. Até ao ponto que se afirma que no mar estão, em maior ou menor proporção, todos os elementos da Tabela Periódica: no mar há prata, e ouro, cobre, estanho, ferro etc. etc.

Todos os hoje chamados oligoelementos, vitais para a saúde, estão nos seus sais e se a cura com base nos banhos de mar, injeções de água de mar e ainda beber (em muitas pequenas doses) água de mar, é tão atual, por algo é. O conjunto de todos os mares da Terra é uma Árvore de Vida, a maior, quiçá que possamos imaginar (com exceção da Árvore Celeste cujos frutos são as estrelas, ou inclusive as galáxias), e cada um dos oceanos ou mares menores é um ramo primário ou secundário da mesma.

No livro de ficção científica, Solaris, de Stanislaw Lem, apresenta-se a ideia de um planeta numa etapa inicial de evolução da sua vida, onde esta ainda não desdobrou em inumeráveis seres, mas que é um mar consciente, ensaiando ainda reproduzir, plasticamente, as formas que refletem ou banham no seu seio. É o oceano da Grande Vida, o que se insinua neste livro que se converterá no futuro longínquo em toda a sua biosfera. Ou seja que se apresenta que a vida realmente não está nos seres, mas que estes se encontram em, forjados de, banhando-se  na vida, que são as águas, pois sem água, tudo morre ou fica numa condição de vida latente ou suspensa, como uma semente, ou mais graficamente ainda no minúsculo tardígrado que é o “urso do mar”. Este, sem água, converte-se funcionalmente numa pedra.

Neste maravilhoso livro também, as auras ou atmosfera do dito mar, infinitamente mais subtis que este, conseguem materializar e dar vida às imagens dos sonhos e das suas recordações, algo para o qual, como sofre o protagonista, é evidente que não estamos preparados ainda.

No mar, como na vida, uns entram, outros saem, uns jogam, outros olham e outros esperam banhar-se nas suas águas, uns perdem-se nos seus labirintos de paredes ondeantes e móveis, outros afogam-se nas suas infinitas fauces. Que sábia a metáfora do Ramayana onde o mar é uma serpente de inumeráveis bocas, pois cada uma delas facilmente pode tragar-te, tantas bocas quantos aqueles que nela se banhem! Outros vêem no mar o espelho de céu, pois este reflete-se seja no tenso e brunido metal, seja nas suas crispadas ondas, tersas e serenas sempre à distância. Uma grande, majestosa horizontal, como uma linha perfeita, imóvel, difícil de encontrar terra adentro. E morrendo na praia, como reflexos ondulantes da mesma, ou como filhas de um momento da sua mãe eterna, outras horizontais espumantes e avançando no que parece ser o mar a mover-se. Tal é a geometria da luz, tal é a geometria da vida e da verdade.