1. Quem é Isadora Duncan, qual foi a sua contribuição para o mundo?

Isadora já é um nome e uma figura quase mítica, o paradigma, para não dizer a Musa de todos aqueles que na dança encontram um sentido de vida, um caminho de perfeição e de auto-conhecimento. Seguindo a tónica do pensamento nietzschiano quando diz: “Ó divino dançarino, considera perdido o dia que não dançaste”.

E se baixamos do céu à terra, ou do mito para o tempo cronológico, Isadora é uma personagem histórica, nascida em São Francisco, Califórnia, em 1877, que revolucionou a dança do século XX, dando-lhe um cariz mítico. Ou seja, tentando que a dança fosse mais do que um exercício de ginástica, um divertimento, um desafogo emocional ou mesmo um espectáculo artístico. Queria convertê-la num acto religioso, numa catarse da alma recuperando nela a dimensão espiritual, por exemplo, que poderia ter nos Mistérios de Dionísio.

Milhares de pessoas, ao vê-la dançar, encontraram uma revelação mística do sentido da vida e da senda da alma, como aquele que é arrebatado por uma visão espiritual.

Isadora Duncan no Teatro de Dionisos, Atenas / Wikimedia Commons

2. Bem, agora já entendo o interesse de uma Escola de Filosofia como a Nova Acrópole nesta personagem. Desculpe a minha ignorância, mas ao ler o título desta actividade fiquei um pouco espantado, como naquela ocasião em que fizeram uma conferência sobre Conan e a destruição da Atlântida. Porém, ao assistir à mesma compreendi o interesse por esta personagem literária de Robert E. Howard.

É natural. Muitas vezes é-nos realmente difícil não sermos vítimas e prisioneiros de certos estereótipos mentais. Nós ensinamos que a alma humana pode elevar-se rumo ao Céu de Ideais, no qual vivem o Verdadeiro, o Bom, o Belo e o Justo, como afirmava Platão. E comparamos esta ascensão com uma pirâmide, a pirâmide, símbolo do fogo civilizatório. A subida dá-se através da Ciência, da Política, da Religião e, claro, da Arte. O eixo e, portanto, síntese e natureza profunda de todas elas é a própria condição filosófica da alma humana. A busca e a vivência destes Valores Eternos, por exemplo, a Beleza que a Arte verdadeira encarna e cristaliza, é um sacerdócio, como é a do cientista que serve a verdade e não os interesses de alguém, ou a do político que procura um reino de Justiça para dignificar a tarefa humana. Isadora Duncan escolheu a via da Beleza e o seu voo foi tão poderoso que durante séculos, e talvez milénios, será, como é Safo hoje em dia, fonte de inspiração de poetas, filósofos e artistas, e de todos os que perseguirem na vida algo mais do que o mero sobreviver como bichos ou plantas. Desgraçadamente, as filmagens das suas danças são de escassos segundos e de péssima qualidade (dos anos dez). As fotografias congelam o seu movimento, mas deixam transluzir a magia do seu gesto. Só nos resta a recordação da sua dança, as palavras de quem a viu bailar e a sua auto-biografia.

Retrato de Isadora Duncan / Wikipedia

3. Esta dançarina não fez “Escola”, não deixou escrito algum método pedagógico?

O sonho da sua vida era criar uma Escola de Dança e assim o fez, primeiro na Europa e depois, convidada pelo Ministro da Cultura russo, neste país. Infelizmente, a Primeira Guerra Mundial interrompeu a primeira tentativa e as condições de extrema dificuldade económica a segunda. Mais do que uma academia de Dança era um thyasos à maneira daquele que tinha a poetisa Safo na ilha de Lesbos, uma Escola de Vida, de formação de carácter. Muito semelhante no seu espírito às Escolas de Platão, Aristóteles ou Hipátia. As suas discípulas viviam na própria Escola e os ensinamentos não eram de professor para aluno mas de mestre a discípulo. As Isadoráveis acompanharam-na no seu giro pelo mundo e para evitar complicações burocráticas na passagem pelas fronteiras (pois eram menores de idade), Isadora adoptou-as e elas carregaram durante toda a sua vida o apelido Duncan.

Thérèse Duncan na Acrópole, sua aluna e filha adotiva,1921

O seu sistema de ensino não se pode resumir só a um método ou programa, pois a chave é o Mestre, o fogo espiritual, as palavras cheias de vida e significado que vão modelando a alma do discípulo e avivando o seu fogo interior. Quando um discípulo de Platão em Siracusa, Dion, quis resumir o ensinamento do Mestre da Academia num manual que sintetizasse o seu pensamento, Platão disse que isso seria um erro grave, que o importante era despertar a vida interior do discípulo, a sua chama sagrada. Um manual em poder de quem não tivesse chegado a determinado nível de conquistas e realizações interiores não serviria de nada, senão para confundir a aturdir o estudante.

A vida dispersou as Isadoráveis. Uma delas, Anne Duncan, teve uma discípula a quem tratou como filha espiritual e transmitiu o legado de Isadora. É Lori Belilove e que criou a Companhia de Dança Isadora Duncan em New York, com resultados admiráveis, como podemos comprovar neste vídeo:

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4. Como aprendeu ela a dançar, quem a ensinou? Qual foi a inspiração da sua dança? 

A própria natureza e os seus espíritos, talvez, embora ela não fosse consciente, as próprias nereidas, ninfas e fadas, elfos e espíritos dos ventos. Assim o disse ela própria nas suas memórias, e acrescenta em que medida se sentia filha da Deusa do Amor e da sua estrela, Vénus:

“Nasci junto ao mar e já notei que todos os grandes acontecimentos da minha vida sempre ocorreram na sua proximidade. A minha primeira ideia do movimento da dança veio-me certamente do ritmo das águas. Vim ao mundo sob o signo de Afrodite, Afrodite, que também é filha do mar e quando a sua estrela sobe no céu os acontecimentos são-me propícios”.

Ainda na América, tentando descobrir desesperadamente trabalho e com cerca de 13 anos de idade, diz ao empresário artístico Augustin Daly, segundo narra no livro A Minha Vida:

“Sr. Daly, tenho uma grande ideia a expor-lhe e, provavelmente, o Sr. é o único homem neste país capaz de compreendê-la. Descobri a dança. Descobri a arte que estava perdida há dois mil anos. O Sr. conseguiu realizar um magnífico e artístico teatro, mas falta nele uma coisa que fez a grandeza do antigo teatro grego, e que é a arte da dança – o trágico chours grego. Sem isto ele tem apenas cabeça e tronco, faltando-lhe as pernas para ir adiante. Trago-lhe a dança. Trago-lhe a ideia que há-de revolucionar totalmente a nossa época. Onde foi que a descobri? À beira do Pacífico, junto das ondulantes florestas de pinheiro da Serra Nevada. Eu vi a figura ideal da mocidade americana dançando no alto das Montanhas Rochosas”.

Outras vezes, diz que a sua verdadeira inspiração foi o espírito que está por trás dos poemas de Nietzsche e de Walt Whitman, a quem considera os seus pais espirituais. Passava meses no British Museum e no Louvre, mais de dez horas diárias examinando cada uma das cerâmicas gregas e tentando captar o gesto que animava as suas figuras, era capaz de sentir o movimento e a dança de quadros como o da Primavera de Botticelli. É admirável como a sua atenção e anseio de viver a verdade desta obra de arte foram tais que chegava quase a penetrar no mesmo, como faz Mary Poppins ou as personagens de alguns contos de Hermann Hesse. Ou como dizem certas Escolas que podem fazer certos magos.

O Nascimento de Vênus, Sandro Botticelli / Wikipedia

Vale a pena ler a suas próprias palavras:

Em Veneza, passamos algumas semanas passeando e apreciando os museus, os jardins e os campos de oliveira. Por esse tempo, Botticelli era a minha única preocupação. Dias e dias, fiquei sentada diante da Primavera, que me seduzira inteiramente. Inspirada nesse quadro, criei uma dança na qual procurava reproduzir os suaves e mágicos movimentos que dele se desprendiam, a delicada ondulação da terra coberta de flores, a ronda das ninfas e o voo dos zéfiros, tudo concertado à volta da figura central, misto de Afrodite e de Madona, a cujo gesto dava-se a eclosão da primavera.

Como já disse, sentava-me por horas diante desse quadro, que nunca me cansava de admirar. Um velho e simpático guarda da pinacoteca, que se diria enternecido por aquela minha adoração, trazia-me um tamborete. Eu ali ficava até que visse, mais visse mesmo, as flores crescerem, os pés nus se agitarem, moverem-se os corpos e, depois, um anjo benfazejo que, fremindo as asas em cima de mim, incutia-me a seguinte ideia; «eu dançarei assim. Transmitirei aos outros esta imagem do amor, da Primavera e da vida, que me chegou através de tanta emoção. E há-de ser na minha dança que todos encontrarão o seu instante de êxtase.»

Aproxima-se a hora do fechamento do museu e ainda continuava diante do quadro. Esforçava-me por achar o sentido da Primavera através do mistério desse momento incomparável. Tinha a impressão que a vida não me fora mais até ali do que uma vã procura, um tactear nas trevas; que se conseguisse achar o segredo daquele quadro, poderia indicar aos outros as riquezas que trazemos em nós, a inesgotável fonte de alegria que pode ser a existência. Recordo-me que tendo meditado sobre o nosso destino, eu pensava como um homem que parte alegremente para a guerra e reflecte depois de voltar com o corpo coberto de feridas: «Por que não ensinarei aos outros um evangelho que os poupará de tantos sofrimentos?»

Tal era o curso das minhas coagitações, em Florença, diante da Primavera de Botticelli, e que mais tarde tentei transformar nos ritmos de uma dança. Oh! Doce vida pagã apenas lobrigada, em que a imagem de Afrodite se esfumava sob os contornos de uma Nossa Senhora a um só tempo mais graciosa e mais terna, em que Apolo lucilava na sombra de S. Sebastião, – em mim tu penetravas como um fluxo de alegria propiciatória e o meu mais ardente desejo era te invocar numa dança que seria a Dança do Futuro.

A primavera, Sandro Botticelli / Wikimedia Commons

 

5. Deixou algum legado escrito da sua arte ou da sua visão da dança?

Além do livro A minha vida, que narra até ao momento em que parte para a Russia, escreveu alguns opúsculos e artigos que foram, editados com o nome A Arte da Dança.

 

6. Concretizou-se o futuro da Dança que Isadora sonhou?

As sementes foram lançadas, algumas cresceram, outras esperam. Sem dúvida ela abriu o caminho para que o mundo visse a dança como mística, como um meio de entrar no reino do espírito, e também para que este possa, através do gesto, expressar-se no mundo. Quem sabe uma Nova Humanidade da Intuição e em perfeita sintonia com a Natureza, mais além destes tempos de crise que vivemos, possa fazer real o sonho de Isadora? Quem sabe se talvez em cem ou mil anos a dança seja religião com que o homem expresse o seu amor a Deus? Talvez honre e renda culto assim, dançando, as verdades que sinta crescer e viver em sua alma o nome de Isadora seja pronunciado com reverência e gratidão. Quem pode saber as formas que assumirão a ou as religiões do futuro, por que não irão, por exemplo, as flores e os seus perfumes ser o símbolo das virtudes da alma, dos Deuses que a regem, e as danças entre elas puro ritual?

Isadora Duncan / Wikimedia Commons

7. O amor de Isadora pelo espírito e a beleza grega trazem-nos à imaginação a Sofia de Mello Breyner, e o seu génio livre e independente, assim como a sua entrega amorosa a Florbela Espanca. O que nos pode dizer sobre isto?

Penso sinceramente que Isadora e Sofia de Mello Breyner são almas irmãs, se não gémeas. O filho da “poetisa do mar” revelou o vínculo profundo que unia a sua mãe com a nova sacerdotisa da dança, ainda que duvido que se conhecessem (Sofia nasceu em 1919 e Isadora morreu em 1927). Também Sofia se sentia filha do mar e dançava e dançava como o faz a personagem de um dos seus contos, em a “Menina do Mar”.

Relativamente a Florbela e a dança dos seus versos, filha da mais pura música da natureza, creio que esta poetisa portuguesa, Florbela, é em poesia o que Isadora é em dança. Alguém de extrema sensibilidade diria quiçá que sente ambas como filhas do Rei do Mundo.

 

8. De onde vem o seu interesse por Isadora Duncan?

Quando era jovem vi a película de Vanessa Redgrave (realizada em 1968) e fiquei muito impressionado, vários anos depois li a sua biografia, e a comoção foi tal que organizei e dei um ciclo de conferência em Santiago de Compostela, Corunha e Lugo, sobre os distintos aspectos da sua vida e obra.

A pureza e sinceridade da alma de Isadora Duncan, a força imbatível do seu idealismo, o profundo da sua vivencia filosófica e artística a converteram num exemplo para todo o apaixonado pela verdade.

 

Entrevista a José C. Fernández, 
Director Nacional da Nova Acrópole

Isadora Duncan / Wikimedia Commons