A arte superior exige a transcendência do Ego.
Abhinavaguptás

 

A arte oriental pode ser considerada como um caminho de autorrealização. Impregnada na sabedoria do yoga, esta requer pela sua execução uma preparação, uma disciplina purificadora como também a aquisição de profundos conhecimentos baseados nos fundamentos metafísicos que lhe deram origem. No Oriente a arte não é meramente considerada uma atividade técnica ou lúdica, ela constituí uma via de transmutação, uma experiencia vivencial do artista. Este deve elevar a sua consciência até à beleza ideal refletida no cânon ou conjuntos de princípios inteligíveis que se manifestam em todos os elementos da natureza. O que diferencia a arte sagrada da arte profana é o conhecimento que esta possui das leis universais que regem a vida no seu todo. O universal é aquilo que é comum para todas as etapas da Criação, em todos as dimensões se repete a mesma ordem, a mesma matemática, os mesmos procedimentos, não deixando nada ao acaso. No mundo das formas o resultado é a Beleza, no mundo dos valores é o Bom e o Justo, no mundo das ideias é o Bem, quando tudo está perfeitamente unido resulta a harmonia do Yoga supremo.

Para os Mestres da India o verdadeiro artista é aquele que realiza a obra dentro de si. Através do seu trabalho interior, ele eleva a sua consciência contemplando desde cima a imagem ou o modelo ideal para reproduzir o seu reflexo no mundo fenomenal. Toda a arte sagrada nasce de cima, no contacto com o superior, enquanto a arte profana nasce de baixo e parte do contacto com o mundo circundante e plural. Quando uma obra de arte resulta imperfeita, os mestres da India costumam dizer que o artista fraquejou na sua meditação, deixando que interferências ou imperfeições do mundo exterior corrompessem a sua obra e diminuíssem o seu esplendor. A arte sagrada não se limita unicamente à produção do gozo estético, a sua verdadeira missão reside no despertar da alma para a Verdade, por isso utiliza a linguagem dos símbolos que é comum para todos os seres humanos. Para os mestres orientais existem duas vias de criação: a primeira criação é de natureza espontânea, centrada na consciência de cada um e produzida pela sua tendência egoica ou pessoal, enquanto a outra é de alcance universal e exige o abandono do estritamente pessoal para transcender os limites do ego e expressar a totalidade do Ser. A primeira criação é realizada com o objetivo de satisfazer as necessidades do eu pessoal dando-lhe prazer, autoafirmação, prestigio ou poder temporal. A segunda revela-se no desprendimento pessoal, na dação e na fidelidade aos princípios que a rege, é libertadora e como tal proporciona a verdadeira felicidade. A liberdade da primeira reside na sua ignorância, os impulsos criativos vão e vêm com intermitências e mudam constantemente de rumo pois não tem finalidade duradoura. A liberdade da segunda resida na escolha do real sobre o efémero, é clarividente, ordenada e tem por finalidade a transcendência.

Assim a arte é um caminho de transmutação, uma experiencia vivencial para ascender ao Verdadeiro. O artista é a matéria, Prakriti, pedra angular, o embrião de ouro oferecido no altar da recreação do mundo. Na India toda a arte resulta desta finalidade alquímica, despojar a alma humana dos seus véus ilusórios ou Maya, cada escultura, cada templo, cada imagem insinua um momento de profunda meditação sobre as etapas da conquista interior.

O templo é o Homem celeste e o seu corpo é desenhado no modelo da natureza. A testa e a fronte são representadas como o ovo de galinha ou folha de betel, as sobrancelhas em forma de arco ou de folha de min para as figuras masculinas, olhos como pétalas de lótus, ou de nenúfar para sugerir a calma e serenidade das pálpebras recolhidas. As mãos e os pés são sempre associados ao lótus, as ancas das mulheres têm os contornos do tronco da bananeira e para os Deuses utiliza-se a tromba de um elefante jovem. O carácter é representado com toda a sua expressividade, ora invocando nos rostos dos seus Deuses a dignidade da Vitória, o auto domínio, a bondade, a serenidade, a alegria e até mesmo a visão do infinito tão perfeitamente reproduzida nos rostos dos seus sábios Budas com olhos perdidos no céu e o indescritível sorriso que apazigua todos os sofrimentos. Para conseguir reproduzir na pedra tanta beleza e profundidade, o artista deve possuir algo mais que a simples técnica, deverá pôr-se em comunhão íntima com a ideia, impregnar-se da sua luz, e entregar a sua energia para dar vida a esta forma mental. Neste acto mágico de contemplação não pode ocorrer interferências vindas do mundo dos sentidos que como os ventos poderiam afetar a captação da imagem e provocar uma desordem mental. Só a calma interior pode alcançar e reproduzir o estado de serenidade dos lábios de um Buda. Só aquele que pôs em movimento os seus centros de energias internos pode reproduzir o ritmo envolvente da dança de Shiva que tudo alcança e tudo renova.

Através da arte hindu, não só olhamos como também escutamos o canto das Apsaras feiticeiras que nos bosques dos sentidos sussurram-nos o amor à vida e à beleza sensual, os seus cantos de sereias assemelham-se ao choro de despedida para aqueles que se afastam do mundo. Na India, toda a arte resulta desta finalidade alquímica, despojando a alma humana dos seus véus ilusórios mayavicos. Cada templo, cada escultura, cada imagem insinuam um momento de profunda meditação sobre as etapas da conquista interior. Tantos deuses, tantos demónios e forças ocultas adormecidas neste livro que é o templo e que continua entreaberto para cada um de nós, só requerendo um passo em direção a Torana, o pórtico do peregrino devoto à Verdade. Então o peregrino dá a volta ao templo para sentir-se parte da roda da vida e tornar-se um braço deste círculo de fogo ígneo, uma mão criadora neste mundo órfão de beleza e bondade

Os corpos sinuosos revelam a plasticidade e a maneabilidade da substancia que revesta a alma, é a sakti que adere aos movimentos do fogo interior. Os filamentos que envolvem o corpo são correntes de energias que sobem e descem na semelhança dos caminhos de água que circundam a terra, cada gesto ou mudra, cada posição ou assanas indicam uma ideia, uma atitude, uma postura mental. O corpo é o livro onde Deus escreve. Nele encontramos a Trimurti sagrada: Vishnu, o Senhor que preserva em nós a esperança e que constrói novas oportunidades, novas vidas fecundas; Shiva, o Senhor que destrói a ignorância, mestre do tempo purificador; por fim Brâma, a Essência que ninguém pode alterar.

Nos templos-grutas, penetramos na origem do mundo, feito de silêncio e de recolhimento. O santuário enche-se da presença do Deus que nele habita, o eu observador dissolve-se na obscuridade, então aparece o poder vivificador do Senhor do lugar, a chama de Agni cresce e a cera desvanece, cumpriu-se a oferenda. Shiva venceu mais um obstáculo, mas a roda da vida continua a girar até que Buda desperte em nós.

Sri Aurobindo dizia que “o templo hindu, independentemente da sua divindade titular é uma realidade intima, um altar erguido ao Eu Divino, uma morada do Espirito cósmico, uma chamada e aspiração para o infinito”. Assim para entender a arte da India é preciso viajar por dentro, descer e subir as encostas do nosso mundo interior, ouvir o silêncio e afugentar os demónios do nosso mundo passional, realizando a oferenda diária de coração puro, praticar o Karma-Yoga com ações desinteressadas, o Gnani-Yoga que abre as portas da mente ao conhecimento da Verdade, o Backti-Yoga que abre o coração e derrama o amor incondicional e por fim no Rajas-Yoga para unificar-nos ao mestre interior, e ser um digito da sua vontade.

Pedra sobre pedra, a montanha se ergue. O espírito vence sempre.